sexta-feira, 3 de março de 2017

Universidade de Massa



Em meu tempo, a universidade era de elite. Predominavam as universidades federais públicas e gratuitas. Poucas vagas e vestibulares extremamente seletivos. Ao tempo em que o ensino médio público era criminosamente abandonado pelo Estado. Praticamente, só os abonados ascendiam ao ensino superior: implicava ser egresso dos melhores colégios particulares e dos mais cotados e caros cursinhos preparatórios. (Existiu, por breve período, um cursinho de primeira e de graça chancelado por uma empresa estatal: fui um de seus privilegiados alunos bolsistas.) As vagas dificilmente eram preenchidas na totalidade: boas notas no vestibular eram um imperativo. (Um exemplo eloquente: meu exame de admissão à Escola de Engenharia preencheu apenas 23 das 40 vagas.) Superada a guerra de seleção, o melhor dos mundos: boas universidades e de graça, excelentes alunos, mercado contente com o elevado nível dos formados. Handicaps: altíssimo custo per formando; e descompasso oferta (pequena) de recém-formados - procura (grande).

Hoje, é universidade de massa. Aberta a todas as classes, com muitos estudantes saídos também do ensino médio público. As universidades federais oferecem bem mais vagas. Mesmo assim, no cômputo geral o sistema educacional superior se tornou predominantemente privado. (Para a tranquilidade dos empresários da educação, os alunos sem recursos são financiados pelo programa estatal FIES, o qual no entanto se encontra à beira do esgotamento por elevada inadimplência.) Salvo destacadas exceções, o ensino e a pesquisa nas universidades de massa deixam muito a desejar: quantidade não rimando com qualidade. Apenas uma parte relativamente modesta dos alunos consegue ser assídua e interessada. A maioria tem que trabalhar e servir-se de transporte público precário: nos bancos de faculdade, é a luta para não cair de sono e cansaço. O dessintonia universidade - mercado é de novo tipo, seja por excesso de formados em certos nichos de conhecimento seja por carências de formação. De todo modo, esqueça-se a universidade de elite: a agenda imperiosa é a de ajustar e qualificar a universidade de massa.

Umberto Eco (1932 - 2016), o conhecidíssimo romancista italiano de O Nome da Rosa, foi também professor-pesquisador e diretor da Universidade de Bolonha. Ele reconhecia a inevitabilidade da universidade de massa. Dedicou a ela um importante e pequeno livro, Como se faz uma tese. Um guia autorizado de preparação de boa tese, no ambiente pouco estimulante frequentemente encontrável em universidades de massa. "Tese" para Umberto Eco é abrangente: pode se referir a pós-graduação -- tese de doutorado e dissertação de mestrado -- ou ainda a monografia de final de curso de graduação. (A ordem crescente de dificuldade é monografia - dissertação - tese. Por falta de espaço, as diferenças são omitidas: o que interessa aqui são as tarefas comuns a todo trabalho de tese.) "Orientador" é pesquisador que orienta tese. "Orientando" é aluno que elabora tese.

Os pontos cardeais de um orientando, vis-à-vis do bom desenrolar de sua tese, podem se resumir a quatro: (1) tema de interesse; (2) boas fontes de consulta; (3) cultura à altura de bem apreender as leituras; e (4) consistente plano de trabalho.

O orientador adoraria que o orientando revelasse autonomia no desenvolvimento de sua tese, já que na certa o primeiro vive sobrecarregado de tantas aulas e outros orientandos. O tema é do orientando (item 1). Na medida do possível, o orientador deve propiciar ao orientando boas condições de trabalho: se a biblioteca local é insuficiente, que use sua suposta influência para franquear o acesso de seu orientando a fontes externas compatíveis (item 2). Ah! Se o orientando tem formação deficiente desde o ensino médio, e ademais não é afeito à leitura, então fica-lhe muito difícil absorver a riqueza das fontes de consulta; não é papel do orientador fazer as vezes do orientando. A tese é do orientando. (item 3). O item 4, o plano de trabalho do orientando, merece o parágrafo seguinte.

Um modelo em etapas de plano de trabalho de tese se tornou canônico: título, introdução e estrutura do documento. "Um bom título já é um projeto" (Umberto Eco): não um título genérico, mas específico (o tema da tese stricto sensu). A introdução serve para mostrar ao orientador o que se pretende fazer, sobretudo evidenciar que já se tem as ideias em ordem. A estrutura é a hierarquia de níveis: capítulo - seção - sub seção - ... - esboço do conteúdo. Os capítulos em regra não passam de cinco: 1, Introdução; 2. Pesquisa Relacionada; 3. Objetivos Específicos; 4. Formalização do Tema; 5. Experimentação e Análise Quantitativa dos Resultados; 5. Conclusões. Note-se que os esboços de conteúdo valem para os capítulos 2-5.

Enquanto o orientando não for capaz de dar um título original à tese, escrever a introdução e estruturar todo o conteúdo, ele não poderá dizer que já domina sua tese. Por ser o plano de trabalho tão crucial para o êxito do orientando, é o momento de a interação orientador - orientando ser mais ou menos intensa. Após tantas revisões quanto necessárias, o plano de trabalho é finalmente aprovado pelo orientador. A partir de então, o orientando seria capaz de desenvolver sua tese praticamente sozinho.

Para a feitura dos capítulos 2-5, faz-se mister um cronograma realista. Os trabalhos de tese têm que ter data certa para terminar: nem pouco tempo, nem tempo demais. Algumas palavras concernentes aos capítulos 4 e 5. Que fique claro que um orientando não é um aluno qualquer; bem ao contrário, tem que ter a capacidade de abstração (modelagem formal) -- capítulo 4 da estrutura -- e de analisar e sintetizar dados (modelos estatísticos) -- capítulo 5. (Umberto Eco é um tanto vago em relação aos capítulos 4 e 5. Talvez porque sua experiência de orientador é com teses de humanidades. Entretanto, não parece ser questão de relaxar o rigor. Construir arcabouços conceituais sólidos e tratar corretamente dados experimentais -- coleta, análise e síntese -- são tão indispensáveis à pesquisa em humanidades quanto em ciências e tecnologia.).

Duas conclusões. Realizar uma boa tese exige do orientando organização, competência e tempo. Não é fácil, não é fácil, mas nada impede que as universidades de massa produzam boas teses em quantidade, quando então elas serão verdadeiramente universidades. Segundo, para que serve afinal uma tese? Em princípio, para tudo e para todo o resto da vida! Uma boa tese é um ótimo treinamento para tornar-se distinguível, não importa a atividade. O tema da tese é de somenos e logo esquecido.

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