sexta-feira, 25 de março de 2016

Sanders e Trump



O democrata Bernie Sanders e o republicano Donald Trump são politicamente antípodas; na campanha presidencial dos Estados Unidos, o primeiro, pelos padrões liberais norte-americanos, é percebido como um extremista de esquerda, enquanto que o último é um deslavado extremista de direita. Não impede que eles se apresentem com um vistoso ponto em comum: ambos são tonitroantes candidatos dissidentes das cúpulas de seus respectivos partidos, o Democrata e o Republicano. Nenhum dos dois vai ganhar, mas a marca de suas candidaturas anti-establishment é indelével: fim das batalhas eleitorais insossas e acomodadas. É mister analisar o porquê do sucesso de Sanders e Trump.

Direto à explicação: "É a economia, estúpido!" [James Carville, marqueteiro -- vixe! -- de Bill Clinton]. Os Estados Unidos eram um país de classe média, sob o orgulhoso e comunitário lema todos no mesmo (luxuoso) barco. Não o são mais. Em 2015, 121 milhões de adultos compõem a categoria de renda média, menos do que os 122 milhões que caem em faixas de renda inferior ou superior. Para dar uma ideia do encolhimento da classe média, em 1971 ela era 61% dos adultos. O crash das bolsas de valores de 2008 acarretou uma queda calamitosa dos rendimentos médios dos norte-americanos, de 126.000 dólares em 2007 para 77.000 dólares em 2010. A 'retomada' do crescimento beneficiou os mais ricos graças à alta do preço das ações. Em 2012, os 1% superiores ganhavam 23% da renda nacional, ou seja, quase a mesma proporção quando da emblemática crise de 1929. A distância salarial entre os executivos e os operários atinge níveis recordes. O índice de desemprego entre os jovens diplomados chega a 12%.

Os dois grandes partidos são iguais no que concerne às consequências de suas estreitas visões econômicas. Enquanto que os republicanos são ferventes adeptos do laissez-faire, os democratas se obsedam por redução dos deficits e por tributação injusta, taxando generosamente os rendimentos das altas finanças ou dos plutocratas de Wall Street. Sanders e Trump exprimem o sentimento de injustiça social que sofrem as classes média e inferior norte-americanas: o que surpreende é que eles tenham aparecido tão tardiamente no cenário político.

Sanders empolga os jovens, sobretudo evocando ideais de solidariedade: demonstra cabalmente que o Partido Democrata não é um feudo do elitista casal Clinton. Por sua vez, e como sói acontecer com todo ultra-direitista, Trump é arrogante, desrespeitoso, cheio de si e simplista. E muito mais: xenófobo, nacionalista cego. Ele sabe que toca fundo o irado eleitor do Partido Republicano, para a grande inquietação de seus caciques dirigentes, menos radicais. Apesar dos perfis tão diferentes, e da distinção quanto à execução das propostas, os dois convergem em suas posições anti-globalização, anti-imigração e anti Wall Street.

Sanders e Trump são bem um fenômeno sócio-político norte-americano, contudo a flama da indignação contra o desemprego, as negociatas e os salários aviltantes se alastra pelo mundo inteiro. Governos e partidos políticos em xeque. Veja-se o exemplo do Brasil.

Não resta dúvida, a população brasileira tem avançado na postura cidadã. Brada, revolta-se contra o desemprego, a queda de renda, a recessão brutal sem horizonte declinante, a inflação e a corrupção (de formas variadas)  das elites políticas e econômicas. A delação corporativa da Odebrecht promete expor e já expõe as vísceras da corrupção sistêmica entranhada nos costumes brasileiros desde os albores da nação: o sabido que não deixa de espantar. Terremoto no Palácio do Planalto, no Congresso e nas empreiteiras de obras públicas.

Infelizmente, ainda é pouco, muito pouco: os alicerces do perverso e sempiterno domínio das elites brasileiras continuam de pé e movidos pelo instinto de preservação. Trama-se nos bastidores o amordaçamento da Operação Lava Jato. Trama-se pelos cantos a expansão do famigerado foro privilegiado aos ex-presidentes. Trama-se nas sombras uma mini reforma política de fancaria.

O que esperar das próximas eleições em todos os níveis, com estes trinta e nove partidos (!), uns poucos com a credibilidade perdida pela corrupção e fisiologismo, e os muitos outros simples siglas de aluguel no comércio da corrupção da vida pública? Poucos brasileiros qualificados, valorosos e honestos encontrariam motivação para se filiar e se candidatar por quaisquer destes partidos. Esfuma-se a esperança de surgimento de verdadeiros novos partidos e nova classe política, capazes de bem interpretar o clamor popular por autênticas transformações civilizatórias do país. Tomara, tomara, que eu não passe de um grande pessimista.


Fonte das estatísticas - Jornal on-line Politico, Estados Unidos www.politico.com/, em 28/02/2016

sexta-feira, 18 de março de 2016

O Tempo e o Tempo do Brasil



O 'senhor' Tempo é glamouroso:  "És um Senhor tão bonito quanto a cara de meu filho" (Caetano Veloso, esplêndido metaforista); "Detém-te. És tão belo!" (Goethe, píncaro das letras alemãs). Contudo, o que interessa aqui é o tempo como um problema filosófico essencial. Examinam-se de relance as noções de tempo metafísico e de tempo da física, para enfim chegar-se ao tempo do Brasil.

Para os metafísicos, o tempo é um conceito indefinível. Apenas é possível intuí-lo. Santo Agostinho: "O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei. Se me perguntarem, ignoro". Faz trinta séculos, Heráclito de Éfeso imaginava o tempo como uma sucessão. Até hoje, sentimo-nos perplexos como Heráclito: ninguém vai duas vezes ao mesmo rio. Porque as águas do rio fluem. e porque nós mesmos também somos um rio. Mas esse tempo que passa, não passa por inteiro. Ou seja, somos algo cambiante e algo permanente. Somos algo misterioso.

Não é de bom tom desdenhar dos grandes filósofos metafísicos: Heráclito, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Goethe, Bergson, ... . O problema de preservar a identidade em constante mudança é real e de todo o interesse. Diz-se: "A planta cresce". Não é que uma planta pequena deva ser substituída por outra maior. Em síntese, trata-se da continuidade no fugaz.

O gigante matemático e físico Newton no fundo levou ao extremo o tempo metafísico: uma única série que flui de maneira uniforme em todo o universo. Mas por que pensar em um tempo absoluto? A ideia de que possam existir vários tempos foi cultivada por outro grande matemático, Leibnitz. O gigante Einstein formalizou a ideia, e com que exuberância: deu-nos a teoria da relatividade e o tempo relativo.

Cada um de nós vive sua própria série de fatos: o tempo é individual. Quanto mais estimulante uma vida, mais rápido ela passa, e isso é muito positivo. Do contrário, é uma vida parada ou quase, e isso é ruim.  (Note-se como a inevitável morte é um fato de somenos importância!) Sem ignorar que ainda preservamos nossa identidade, quer mudemos muito ou pouco.

O que vale para as pessoas pode ser estendido aos países. O tempo da China (e de tantos outros países, emergentes ou subdesenvolvidos) flui mais célere do que o do Brasil. Fora com as aparências. A verdade é que o Brasil sempre andou devagar, ou praticamente não andou no que diz respeito às fulcrais questões civilizatórias. Sua história tem sido um círculo abjeto: mudar para não mudar, como na Sicília da época da Máfia.

Sonhei um eloquente sonho cívico. Vivíamos plena campanha eleitoral a uma assembléia nacional constituinte para elaborar uma nova carta política. As vozes ultra majoritárias das ruas estrondavam as palavras de ordem: (1) número reduzido de partidos, com programas claramente definidos sobre questões sociais, políticas e econômicas (esquerda, direita, centro, centro-esquerda e centro-direita -- para que mais?); (2) não a partidos religiosos: o Estado é laico; (3) adesão mínima a um partido: um milhão de filiados pessoas físicas; (4) tempo igual de propaganda política para todo candidato a mandato eletivo, independentemente de bandeira partidária; (5) não a financiamentos público e empresarial; (6) não a foro privilegiado; e (7) afastamento automático e preventivo de dirigente público / parlamentar investigado em processo judicial. Nesse ínterim, o Congresso vigente era dissolvido. Uma vez promulgada a nova carta e criados os novos partidos, seguir-se-ia eleição direta para o novo parlamento e para a presidência da república.

O sonho entusiasmado terminou porém em sobressalto. Quem 'governaria', e o que 'aprontaria', durante a longa transição: Lula-Dilma? Temer? Eduardo Cunha? Renan Calheiros? Um pesadelo, de ponta a ponta. Acordei entre animado e muito temeroso.

O tempo do Brasil vai finalmente correr? Demasiadas esperanças e demasiadas angústias.

sexta-feira, 11 de março de 2016

70 Anos



Maturidade. Não sou movido a certezas. Pelo contrário, muitas vezes acontece de sentir-me um completo ignorante. De constância, apenas esforço-me para aperfeiçoar o imperfeito.
   (Gilberto Gil canta belamente:
     ...
     a perfeição é a meta
     defendida pelo goleiro
     que joga na Seleção
     e eu não sou Pelé nem nada
     se muito for, sou um Tostão
     fazer um gol nesta partida
     não tá fácil, meu irmão!)
Ah! sim, tenho uma certeza: essa estória de maturidade aos 70 é pura balela.
***
Ser gauche na vida. Não me é fácil a convivência com a geração Internet: todo o mundo acha que sabe tudo sobre tudo. Todo o mundo é definitivo, certo ou errado, assim ou assado, sem deixar lugar para dúvidas. Deparo-me em situação de desestímulo e deslocamento, ou com a sensação de ser gauche na vida.
***
Amizade. Ter amigo é dispor de alguém para um papear gostoso e saudável. Ignorantes desarmados, que se estimulem mutuamente a clarificar conceitos e viver melhor. Não pode haver diálogo enriquecedor entre sabichões: conversar o quê, para quê? A anotar também a moderna tirania da falta de tempo: todo o mundo se julga 'hiper produtivo' (chamo a atenção para as aspas), em prejuízo do lazer e do convívio social. Razões pelas quais as amizades definham ao mesmo tempo que os comportamentos agressivos irrompem com intensidade impressionante. Que pena! 
***
Ser à gauche na vida. Eis-me diante de um jovem esquálido e maltrapilho -- não mais de vinte anos --, a procurar por lixo num depósito de lixo. Ele joga lixo fora, joga, joga, e não encontra nada. Deixa todo o lixo espalhado na calçada e vai-se. Um pária. Apesar da cena degradante, reflito: ele foi criança, como nós. Crianças não têm culpa, crianças não pedem para nascer. Penso ter explicado porque considero-me de esquerda (à gauche).
***
O Brasil. A aguda crise brasileira parece ser daquelas que ou vai ou racha. Tomara que vá!
***
Morar em Fortaleza. Adoro passear na praia, adoro a comida. Mas não suporto o caloraço da cidade, se bem que nascido na fornalha de meu querido Icó, no alto sertão. O calor tem me impedido de fazer uma das coisas de que mais gosto: perambular a esmo pelas ruas da cidade. Cadê as árvores protetoras? As saliências e reentrâncias das calçadas e calçadões sem conservação também me são empecilho: já desmoronei algumas vezes.
***
Sexo. Em todas as idades, faz-se sexo quando dá vontade. Me dá vontade.
***
Família. A família é parte de mim.
***
Saúde. Meus problemas de saúde são o glaucoma e a pressão alta, ambos graves porém aparentemente controlados. Se não extrapolar, ainda me restarão uns bons anos de vida.
***
Lucidez. Minhas matérias postadas neste blog acrescentam? São coerentes? A avaliação é dos queridos leitores.

sábado, 5 de março de 2016

África do Sul e Nordeste Brasileiro, Unidos na Seca



Deixando de lado as marcantes diferenças entre a África do Sul e o 'país' Nordeste Brasileiro -- é suficiente dizer que o primeiro abriga leões, elefantes e rinocerantes, enquanto que o segundo é o habitat dos pacíficos jumentos velhos de guerra (em via de extinção) --, suas interessantes similitudes merecem ser ressaltadas.

As extensões territoriais são aproximadas: Nordeste, 1.500.000 km2; África do Sul, 1.300.000 km2. Iguais, as populações: 53 milhões de habitantes, cada um. Principal cultura agrícola comum: o milho. Em ambos, o clima é predominantemente semiárido, quer dizer, baixa umidade e pouco volume pluviométrico, quando não é a seca.

A África do Sul conhece a pior seca destes últimos 100 anos. Cerca de 1.300.000 ha, metade da área plantada de milho, está perdida. Precisamente falando, toda a água para irrigação das plantações provém de grandes barragens que se aproximam perigosamente do volume morto: se não chover normalmente em 2016 -- e as previsões conduzem a isso --, será o colapso da produção do campo. A água para consumo é outro drama: todo o norte e o oeste do país, além de outras províncias, dependem de caminhões pipa, o líquido cada vez mais caro e de má qualidade.

Ao curso dos dois últimos decênios, a população da África do Sul aumentou de quase 15 milhões, mas as infraestruturas do país não seguiram o mesmo ritmo, longe disso. Os projetos de construção de novos reservatórios e canais de irrigação, bem como a ampliação de barragens existentes, não andam a contento, sucumbidos por investimentos precários, gestão ruim e corrupção. Enfim, só coisa ruim para os sul africanos.

Não é impressionante o paralelo da África do Sul com o nosso Nordeste? Já entramos no terceiro ano de seca. A meteorologia aponta que 2016 poderá ser ainda mais seco do que 2015. A agricultura de milho e feijão se encontra arrasada. Irrigações interrompidas ou em risco de sê-lo. As tristes filas em torno de caminhões pipa são cenários recorrentes em muitas cidades de todos os estados. A água para Fortaleza, a quinta maior área metropolitana do Brasil com mais de 4 milhões de habitantes, vem toda do Açude Castanhão, que está com 650 milhões de m3 ou apenas 9,5% da capacidade total: mal dá para mais um ano. Tão dramática quanto é a situação de Campina Grande. segunda maior cidade do interior do Nordeste com 400 mil habitantes e quase um milhão no entorno chamado de Compartimento da Borborema: o manancial de água é o Açude Boqueirão, atualmente com pífios 46 milhões de m3 ou 11,2% da capacidade.

A transposição do rio São Francisco, vista apressadamente como a solução para a escassez de água do Nordeste, está paralisada em grande parte por contingenciamento de verbas, descalabro administrativo e corrupção. Destaque-se que o rio São Francisco se vê, ele próprio, com sua vazão dramática e progressivamente reduzida, vitimado por assoreamento causado por desmatamento desenfreado, poluição por esgotos a céu aberto, e por inúmeros barramentos da corrente para a geração de energia elétrica.

Pobres África do Sul e Nordeste, arqueados pela incúria de seus governos e pela inclemência da natureza.