domingo, 29 de novembro de 2015

Gente com Graça

     Sou viramundo virado na ronda das maravilhas
     Cortando a faca e facão os desatinos da vida
     ...
    Prefiro ter toda a vida a vida como inimiga
    A ter na morte da vida minha sorte decidida
                                                                                          Viramundo, Gilberto Gil


Só falando de gente sem graça, quase o ano inteiro. De políticos miúdos, de empresários aéticos, de governanças nacionais medíocres (há diferenças, bem entendido, mas o quadro geral é desolador) e de governança global à deriva. Os leitores devem me achar um casmurro. Calma lá!: não sou tão mal-humorado assim. Dou um exemplo: quero tratar, hoje, de gente com graça.

O adolescente Viramundo, abalado por sentir-se culpado da morte de um seu companheiro de traquinagens, decidiu isolar-se do mundo entrando para um seminário católico. Lá, praticava seu ascetismo: ficava excitando-se mentalmente, a pensar nas maiores putarias, até que o sexo lhe doía de tanto desejo; mãos atrás das costas, recusava-se; quando fracassava (o que ocorreu quase todas as vezes), martirizava o corpo. Encurtando a narrativa 'seminaresca', chegou a bancar um padre em um confessionário, entre outros pecados inafiançáveis. Saiu do seminário, onde nunca devia ter entrado.

Viramundo, já bem crescido (28 anos), tornou-se querido dos estudantes da cidade universitária de Ouro Preto. Quando percebia uma roda de universitários em um bar ou restaurante, entrava, fazia uma refeição rápida e dirigia-se-lhes educadamente:
 -- Chamo a atenção de vocês para minha pequena consumação, ali naquela mesa. Por
     favor, paguem-na, porque vocês dispõem do numerário para tal, o que não acontece
     comigo.
E com uma reverência, afastava-se. De bom grado os estudantes o atendiam, quase sempre depois de algum remoque pitoresco.

Viramundo e seus estudantes de Ouro Preto, de novo. Arranjaram-lhe convite, roupa, sapato e brilhantina para ir a uma recepção a um governador de Minas Gerais, em visita à cidade. Refastelou-se. Comeu, comeu desbragadamente. Apertou-se ... precisou aliviar-se. Os toaletes estavam todos ocupados. Descobriu uma escada para um sótão. Premido pela urgência, mal pôde dirigir-se à boca de um cano e já baixava as calças. Acontece que o cano era entrada para um ventilador que girava diretamente sobre o salão de baile. Quando Viramundo retornou ao salão, o baile já havia terminado, pois o governador fora o primeiro a retirar-se, vociferando:
 -- Vamos embora pessoal, que já está chovendo bosta!

Disputa charadista em Barbacena: Viramundo (V) vs. Professor Praxedes Borba Gato (BG).
 BG: O que é que quanto mais se tira, maior fica? V: Buraco. (V 1x0 BG)
 V: O que é que, quanto maior, menos se vê? BG: Escuridão. (V 1x1 BG)
 BG: O que é que vai daqui a Belo Horizonte sem sair do lugar? V: Estrada. (V 2x1 BG)
 BG: Por que cachorro entra na igreja? V: Porque encontra a porta aberta. (V 3x1 BG)
 V: Por que cachorro sai da igreja? BG: Porque encontra a porta aberta.
 V: Não senhor. Sai, porque entrou.
 V: De que cor era o cavalo branco de Napoleão? BG: Branco.
 V: Napoleão não andava a cavalo. Sofria de hemorroidas.
 V: Nabucodonosor, Rei da Babilônia. Escreva isto com 4 letras. BG: Impossível!
 V: I-S-T-O
Viramundo venceu, 3x1! Aplausos entusiasmados da torcida barbacenense.

E mais não dá das peripécias de Viramundo, falta de espaço. A anotar apenas que ele entrou no Esquadrão de Cavalaria em Juiz de Fora, com suas façanhas nas manobras militares acabando por devolvê-lo à vida civil; que teve passagem musical em São João del Rei; uma crise espiritual em Congonhas do Campo; que pegou touro a unha em Uberaba, passou a noite com um fantasma e quase morreu de paixão por uma mulher; e que Viramundo terminou em Belo Horizonte, entre retirantes, mulheres, doidos e mendigos. Viramundo foi um portentoso vira mundo mineiro.

O leitor atento bem percebeu que o personagem focado é de ficção. No entanto, pleno de humanismo, é como se fosse real, dessa estirpe que recusa a desumanização. Em verdade, Viramundo é o herói do pequeno - belo romance picaresco do escritor mineiro Fernando Sabino (1923 - 2004)*. Sua leitura me foi um oásis revigorante, em meio a um deserto de gente e coisas sem graça. Auguro que o prezado leitor tenha relaxado um pouco.


*- O Grande Mentecapto - 6a. Edição, Fernando Sabino, Editora Record, 1980.

sábado, 21 de novembro de 2015

Às Almas, Cidadãos*



Principia-se por corroborar um fato, para logo em seguida refutá-lo veementemente como justificativa para a barbaridade cometida contra a cidade mais charmosa e emblemática do mundo, Paris.

O fato. As potências europeias praticaram ao longo de séculos uma política colonialista de pilhagem de riquezas e de preconceitos étnico e cultural no Norte da África e no Oriente Médio (para não falar da África do Sul, da Índia, da China, do Vietnã). Em nossos dias, a França leva uma guerra meio secreta contra djihadistas no Mali e na Argélia; encontra-se também profundamente envolvida em campanhas bélicas anti djihadistas na Síria e no Iraque, em tanto que participante expressiva de uma coalização internacional liderada pelo Estados Unidos.

Na esteira de tudo isso, é natural que perdurem entre os povos outrora colonizados ressentimentos de todo tipo, defensáveis ou não. Na caso da França, 8% de sua população têm raízes diretas ou indiretas com ex-colônias. Via de regra, professam a religião islâmica. O 'djihadismo' é sua vertente fundamentalista, minoritária porém ultra-militante. Sua crua simbologia não se coaduna com  os valores laicos da República Francesa: dá-se o choque emocional (e físico) laicismo vs. 'djihadismo'. E ainda tem a persistente crise econômica ... . O cenário político francês adquire contornos dramáticos.

Abra-se outra cortina. Atente-se para este impressionante cortejo de mortandade em atentados terroristas somente em 2015, todos praticados por djihadistas: Paris, janeiro, 17 mortos; Tunis, março, 22 mortos; Sousse (Tunísia), junho, 38 mortos; Suruç (Turquia), julho, 33 mortos; Sadr (Iraque), julho, 90 mortos; Ankara, outubro, 97 mortos; Sinai (avião comercial russo), outubro, 224 mortos; Beirute, novembro, 43 mortos; Paris, novembro, 129 mortos. Como é fácil de perceber, tudo pode ser alvo, não só as 'odiadas' potências. Qualquer pessoa, em qualquer lugar, é vítima potencial. Covardia. A discussão dos segundo e terceiro parágrafos se refreia: as carnificinas, dirigidas a torto, são insanidade pura, barbárie. Devem ser enfrentadas como tal.

Além da solidariedade irrestrita ao povo francês -- e aos de outros 17 países representados por seus mortos no massacre deste novembro, Paris é carrefour do mundo --, o que fazer?

Os djihadistas constituíram um grande espaço físico, parte na Síria parte no Iraque: o auto proclamado Estado Islâmico (EI). Todos os atentados enumerados foram arquitetados no EI, e quase todos os seus autores foram treinados lá. Uma central do terror. Urge destruí-la. De que maneira? Aí começam os obstáculos.  O EI é forte em dinheiro -- venda de petróleo contrabandeado --, forte em armas -- os traficantes de armas operam sem peias --, e forte em motivação ideológica -- por incompreensível que nos seja. Derrotá-lo será uma empreitada muito difícil. Os Estados Unidos vacilam: é-lhes impossível apagar os rescaldos de suas desastrosas intervenções terrestres no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque de Saddam Hussein. A nova aliança militar França-Rússia começa com corrosão: a Rússia sustenta o sanguinário ditador sírio Assad; a França se empenha em destituí-lo. A União Europeia permanece, para efeitos práticos, uma abstração. O bilhão de islâmicos não djihadistas sente-se desamparado, no fogo cruzado entre os djihadistas e os violentados por eles.

A guerra contra o Estado Islâmico  é de caráter geral. O Mundo, carente de governança política crível e decidida, aderna. (Assombração: depois da Al-Qaeda, Estado Islâmico; após o Estado Islâmico, interrogação.)


*- Título angustiado e bonito do semanário francês Courrier international, de 18/11/2015. Parafraseando o solene e guerreiro Às Armas, Cidadãos! do hino nacional da França.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Governança Empresarial em Crise (II)



Na postagem Governança Empresarial em Crise de 14/05/2015, explica-se que as remunerações estratosféricas dos grandes executivos empresariais nada têm a ver com uma lógica racional de produtividade. Bem ao contrário, o custo / benefício é enorme. Conclui-se pela falência da governança empresarial. Novas evidências, e a recordação de uma multitude de fatos, só reforçam a conclusão. Tem mais: a impunidade dá a tônica no reino dos big bosses.

O Dieselgate da Volks(wagen). Decidida a todo custo a triplicar as vendas nos Estados Unidos de seus veículos a diesel, a Volks driblou as autoridades norte-americanas de regulação instalando em pelo menos 482.000 viaturas um software mentiroso sobre as emissões de poluição, desta forma permitindo que seus carros rodassem propagando quarenta vezes mais poluentes do que a legislação autoriza. O presidente mundial da Volks, Martin Winterkorn, ao menos não é um Eduardo Cunha da vida: pediu demissão do cargo, não deixando de declarar que "Fizemos merda!" -- literalmente. Mas não basta, não basta: ele deveria ir para a prisão e sofrer o sequestro de suas mansões e iates. Afinal, é inaceitável ganhar impunemente 16 milhões de euros anuais (sic). Possibilidade remota de punição exemplar, entretanto. O homem tem 'costas largas': o reputado semanário alemão Der Spiegel denuncia as estreitas e cúmplices relações do governo alemão com os CEOs dos grandes grupos campeões de exportação. E vai ainda mais fundo: a classe dirigente germânica sempre fechou os olhos para as falcatruas comprovadas de seus grandes patrões privados.

Outros escândalos na indústria automobilística. Em 1972, a Ford foi temporariamente proibida de produzir toda uma linha de carros porque se esmerava na manutenção dos veículos de teste, os quais dessa forma emitiam menos poluentes do que nas condições reais de uso. Em 1974, a Chrysler teve que recolher 800.000 automóveis por ter instalado dispositivos capazes de desativar os sistemas de controle anti poluição. Mais Ford e Chrysler. Em 1978, a Ford foi obrigada a retirar de circulação 1,5 milhão de carros do modelo Pinto: os tanques de combustível tendiam a pegar fogo em colisões. Em 1987, a Chrysler foi acusada de adulterar a quilometragem dos carros usados por seus executivos, para ainda vendê-los como se fossem novos. O caso Ford-Firestone, final dos anos 90: 271 acidentes mortais causados por estouro de pneus defeituosos. 2014: as coreanas Hyundai e Kia foram multadas pelo Ministério da Justiça norte-americano por subestimar o consumo de 1,2 milhão de seus veículos vendidos nos Estados Unidos. Certos tipos de veículo da alemã BMW e da Opel, braço europeu da General Motors, poluem 10 vezes mais nas estradas do que nos testes de laboratório.

Qualquer que seja o delito, as multas aplicadas aos fabricantes de automóveis são sempre relativamente leves. Os dirigentes não são encarcerados. Em se defendendo, eles, os dirigentes, repetem o desmoralizado e incompetente "Não sabia de nada!". Mas The Observer, de Londres, observa mui justamente: nas grandes empresas, é impossível fraudar sem o conhecimento de muitas pessoas, sobretudo executivos. The New York Times estampa que, graças ao lobby dos fabricantes norte-americanos de veículos, a lei não prevê nenhuma sanção criminal específica pela venda de carros defeituosos ou desconformes com a legislação para o setor.

Instituições bancárias como vilãs. A revista alemã Stern é implacável: nestes últimos anos, o Deutsche Bank (Banco da Alemanha) tem sido a fonte de tantos escândalos que fica até difícil de enumerar. O mais impactante foi a manipulação de taxas interbancárias, que servem de referência para as cotações do mercado financeiro. Do mesmo crime foi desmascarado outro peso pesado das finanças multinacionais, o Barclays Bank. Punição? Afastamento temporário, auto-demissão, porém os respectivos ex-CEOS continuam por aí, soltinhos da silva e com fortunas preservadas para gozar as delícias da vida.

O afogado Rio Doce. No Brasil, o que acontecerá aos executivos da mineradora subsidiária das gigantes brasileira Vale e anglo-australiana BHP, a qual provocou um tsumani de lama provavelmente tóxica descendo pelo vale do rio Doce - Minas Gerais -, destruindo uma cidade inteira e fazendo mortos e duas dezenas de desaparecidos? Sem contar as centenas ou milhares de pessoas possivelmente contaminadas e condenadas à morte lenta. E o que dizer dos prejuízos materiais? E da imensidão do desastre ambiental? (Até o momento: 3 cidades de 300.000 habitantes cada uma em colapso de abastecimento d´água.) Bom, não é difícil projetar que os ditos executivos terão sido (levemente) condenados, e depois recorrido ad infinitum até a prescrição das penas. Eis a ordem desnatural do proceder jurídico brasileiro. (Executivos de grandes empreiteiras brasileiras, réus na Operação Lava-Jato, receberam condenações exemplares. Primeira Instância, porém. Há que se temer os numerosos recursos que virão, e o tempo que isso vai tomar.)

A crise da governança política tem ensejado a ocupação da governança empresarial (ela própria em crise, c.q.d) no seio dos governos das nações. A expressão "A emenda saiu pior do que o soneto" se aplica à maravilha ao contexto. Alto e bom som, a espúria aliança políticos-empresários é nefasta: sua continuidade levará ainda mais rapidamente nosso mundo à catástrofe.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Estocar o Sol?!



A presidente Dilma Rousseff -- parece que finalmente despertada para o ocaso da energia do petróleo -- propôs estocar o vento, em um país de ventos eternos. Mais uma de suas trapalhadas, ela que as comete aos borbotões. Primeiro, a Presidente se expressou mal: tratar-se-ia de armazenar a energia do vento (eólica); infelizmente, a concernente tecnologia baseada em gás comprimido foi abandonada, tal seu exorbitante custo / benefício. Segundo, energia eólica no Brasil pode ser produzida noite-e-dia todo o ano, sem necessidade portanto de estocagem. (Outra recente e tremenda gafe de Dona Dilma: ela decretou que "homo sapiens" designa o gênero masculino; clamou então que se desse igual atenção à "mulher sapiens". Nem que fosse de brincadeira!)

O assunto, entretanto, é energia solar. Parodiando Dilma Rousseff, seria preciso estocar o Sol?!* Não é estapafúrdio, em princípio: há enormes extensões do globo terrestre em que o Sol é uma preciosidade rara e frágil: exemplo, o chamado Grande Norte russo**.

Batagaï, 6.000 habitantes, é uma cidade remanescente de uma antiga mina de estanho, bem no interior do Círculo Polar Ártico. Hoje, vive em torno de seu aeroporto, que é o único em uma terra erma e sem fim. Tirante o transporte aéreo, a única maneira de se chegar lá é por caminhões deslizando vagarosa e penosamente sobre rios, quando congelados. Seus longos invernos têm dias muito curtos, o Sol desaparecendo por volta das 14 horas; a temperatura atinge quase diariamente 50 graus negativos. Levar combustível (óleo diesel) para a central térmica do lugar é complicadíssimo e muito caro: consequência, a eletricidade em Batagaï é 10 vezes mais cara do que em Moscou. Alternativa: energia local, limpa e renovável. Qual? Solar. Cadê o Sol?! Não precisa (estocar o Sol)!

A central solar de Batagaï, recém-inaugurada, é constituída de 3.000 painéis solares ultramodernos, com potência total de 1 MW (logo será ampliada para 4 MW). Sua construção se deve a engenheiros russos, mas a tecnologia dos painéis solares é chinesa. Os painéis são ultra sensíveis às radiações solares, funcionando perfeitamente no largo intervalo de -50 a +40 graus centígrados. Pouca manutenção, principalmente remoção de depósitos de neve. Durabilidade: 25 anos.

A energia solar instalada é suficiente para Batagaï, salvo no inverno. No período invernoso, a central solar complementa a central térmica, permitindo economizar 300 toneladas de combustível tradicional, o que é considerável em se tratando do Ártico.

No quesito custo, o diretor do programa russo para o desenvolvimento de energias renováveis afirma que os preços têm estado em baixa constante, no decorrer dos últimos 50 anos: logo, eles competirão com a energia fóssil. Não é repetitivo lembrar que, em todos os demais critérios -- e eles são bem conhecidos --, as energias solar e eólica são infinitamente mais benfazejas. A meta do programa russo é instalar proximamente mais 170 centrais solares no Grande Norte.

A Rússia e a China merecem os parabéns pelos vultosos esforços de investimento em energias limpas e renováveis. Principalmente a China, líder mundial em tecnologias solar e eólica. O reconhecimento se acentua se for levado em conta que as duas potências são ainda ávidas de petróleo e gás, a Rússia como produtor e a China em tanto que consumidor. As duas não ignoram que a suja energia fóssil está com seus dias contados, por força da rejeição mundial; acertadamente, preparam-se para um futuro verde.

No Brasil, é bem verdade que pululam centrais eólicas em certos trechos de nosso infindável litoral. Não obstante, inexiste planejamento top-down, mais precisamente um plano a longo prazo para o desenvolvimento de energias renováveis, limpas e sem danos ambientais. A quantas a participação dessas energias na matriz energética brasileira, daqui a 10, 20, 50 anos? Tudo se passaria como se o Governo flertasse com energias alternativas, sem abdicar no entanto do namoro profundo com as sujas energias do petróleo e do gás. No caso específico da energia solar, no país do Sol (além do vento), sequer cogita-se dela. Nossas gerações vindouras teriam que pagar muito caro pela incúria. 


*- Bem subentendido, a energia do Sol (solar).
**- Este artigo homenageia meus numerosos leitores russos, ou da Rússia. Quem são? Não sei responder. Só posso dizer que são extremamente bem-vindos.

domingo, 1 de novembro de 2015

O Paraguai e a Felicidade



O Paraguai é o país mais feliz do mundo. O Paraguai é um país com baixo nível de escolaridade. "A ignorância é a felicidade", diz o poeta inglês Thomas Gray. Thomas Gray está certo? Sim ou não. Se é um aforisma jocoso então ele está errado. Afinal de contas, o que é felicidade? Quem não pode ser feliz?

Ninguém saberia definir felicidade. Todavia, os efeitos de um venturoso estado de espírito não são difíceis de identificar e mensurar. Pensai em vosso dia de ontem: descansastes bem? fostes tratados com respeito? ristes? divertistes-vos? aprendestes algo interessante? A coleção de perguntas do tipo pode se alongar. Se vós pudésseis responder positivamente a todas ou à maioria das questões, significaria que vosso índice de emoções positivas é alto: pelo menos em vosso ontem vós estáveis felizes. Simples assim. Muito importante, não impede que vós sejais cidadãos de qualquer latitude e longitude. Ótimo: o Paraguai bem que existe e é o país mais feliz do mundo, ao menos segundo um prestigioso instituto de pesquisa.

Ensaiemos de entender o Paraguai. Para começo de conversa, parece que a felicidade exige um décor exuberante. Apenas 7 milhões de habitantes em um território que é o dobro da Alemanha; terras generosamente férteis: lamaçal nativo de mangas, abacates e outros frutos tropicais; o mate; o gado que se esbalda, o país exportando mais carne do que a Argentina; fartura de água; grandes rios; energia elétrica infinita gerada pela hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do mundo. Ora, direis, o Canadá é também rarefeito de gente e ainda mais aquinhoado pela natureza do que o Paraguai. Mas o primeiro nem aparece na lista dos 10 mais felizes. O décor não explica tudo.

O Paraguai não foge aos clichês de país subdesenvolvido: concentração de renda, corrupção, justiça só para os importantes, escolaridade precária. A elite não se restringe a descendentes de espanhóis: alemães, irlandeses e finlandeses também lá se estabeleceram em tempos idos. Já o grosso da população é autóctone: sangue índio guarani. A alma guarani é plácida: Paraguai quer dizer "terra sem males"; na língua guarani -- que quase todos falam -- não existe uma palavra para amanhã, só o aqui e o agora importam. Descansar, conviver, rir, divertir-se. Aprender a sobreviver. A abundância da terra sem males é antídoto contra a pobreza extrema. Antes, eu sentenciaria "azar deles"; hoje, jactância afastada, eu digo "sorte deles!".

Impõe-se agora relativizar o conceito de Felicidade. O índice de emoções positivas é apenas um dos critérios, com esta notável abertura: ele está ao alcance das pessoas ignorantes (do contrário, seria uma tremenda malvadeza). No outro extremo da escala de conhecimento humano, os cientistas saboreiam o prazer das coisas insatisfeitas -- quaisquer que sejam -- porque o cientista é um ser que busca, mesmo que muitas vezes os resultados não sejam palpáveis (o paraibano Sílvio Meira, conhecido e feliz cientista da computação, tem estado muito deprimido com a incapacidade brasileira de fazer boa ciência, vide silvioMeiraDeprimido). Os franceses, vivendo num país belíssimo e que convida à alegria e ao otimismo, são de um modo geral dominados pelo temperamento rabugento; talvez a rabugice seja um ingrediente do bem-estar à francesa pour incroyable que cela puisse paraître! A felicidade do prêmio nobel de literatura, Mario Vargas Llosa: "Escrevo para fugir da solidão".

Enfim, que cada um ache sua felicidade, sem empanar a dos outros. E que o Paraguai permaneça um país feliz.