quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A Exceção Cultural Francesa



A exceção cultural francesa não é uma abstração mas uma política concreta de Estado. Ela é consistente com o sentimento vigoroso entre os cidadãos de que a cultura é um bem a ser preservado, cabendo ao governo protegê-la e promovê-la com energia. Nenhuma tendência política ousaria pôr em xeque esta compreensão. Como símbolo ostentatório e definitivo da importância da cultura, as personalidades culturais mais eminentes tiveram e terão uma sepultura grandiosa, o Panteão de Paris.

Proteger não é se fechar para o mundo. Nada disso: a França é abertíssima ao mundo. De outro modo, sua exceção não despertaria interesse, só opróbrio. A globalização deve ser percebida como interação intensa entre as nações, em todos os domínios da vida, porém sem a antropofagia das culturas nacionais. Nada mais atentatório ao espírito humano do que a mesmice do pensamento único.

A questão que se coloca é: por que só a França -- e com menor intensidade a Alemanha, a Escandinávia e os Países Baixos -- se protegem? Dois exemplos contrastantes ajudam a responder.

Deu no jornal norte-americano The New York Times que Manhattan é hoje um deserto de livrarias. O diário londrino The Guardian constata que em torno de 500 livrarias fecharam as portas no Reino Unido, desde 2005. As causas principais são (1) as livrarias virtuais com suas políticas agressivas de custo baixo em toda a cadeia produtiva do livro -- a Amazon é um exemplo acabado -- e (2) o livro digital. Qual tem sido em geral a reação do público norte-americano e do inglês diante de seus cemitérios de livrarias? Indiferença! Estão satisfeitos com os preços cada vez mais acessíveis dos livros impressos e com a transportabilidade dos livros digitais. Para a grande maioria, uma livraria é uma casa de comércio como outra qualquer. Desapareceu? Procura-se outra forma. Não podemos censurar.

Muda o cenário: estamos na França. A livraria Librairie Delamain,  a mais antiga de Paris, existe desde 1700 na suntuosa rua Rue du Faubourg de Saint-Honoré Ícones da vida cultural francesa como Michel Foucault, Colette e Jean Cocteau eram "habitués" desta venerada instituição. Ela vive plena de leitores que se deleitam com folhear livros raros, comprar livros não facilmente encontráveis em catálogos, ou que simplesmente adoram ler e livraria. Infelizmente e apesar de vender sempre muito bem, a Delamain sofre para honrar o caríssimo aluguel do imóvel, o qual atualmente pertence a um fundo de investimentos do Qatar.

Como em Nova Iorque e Londres, os preços de imóveis em Paris e na Côte d'Azur atingem valores siderais  Motivados pelo magnetismo da capital e da Riviera francesas, magnatas provenientes dos Estados Unidos, da Rússia e do Oriente Médio invadem o setor imobiliário só para especular. Poucos habitam no local. Este é bem o caso do imóvel ocupado pela Delamain.

Conta a jornalista Victoria Baean, em artigo para o número de setembro próximo passado do mensário norte-americano The Atlantic Monthly, que em qualquer país do mundo, salvo a França, a Delamain pereceria.  Na França, sua extinção seria um escândalo sem tamanho. As mídias francesas reverberam que é inaceitável que uma de suas joias culturais dependa de um fundo de investimento vindo do Oriente Médio para sobreviver.

Felizmente, não há sinais de que a Delamain vá ceder seu lugar.  Como livraria independente, ela recebe uma subvenção do Centro Nacional do Livro e do Ministério da Cultura. É de se prever que ela suportará o escorchante aluguel: o resto é com o leitor refinado, que certamente não lhe faltará. Insisto: a ameaça que paira sobre a Delamain se deve exclusivamente a encargos; a falta de clientes, a Amazon e o livro digital não têm nada a ver.      

Já pressinto meu amigo Stéphane sentenciar algo como "Marcus, o francês de hoje lê pouco e já não é exigente". Digo apenas que Stéphane, como todo bom francês, é um pessimista incorrigível.

*** Na sequência: Astérix, Escola Privada e Declínio Triunfante? ***  

5 comentários:

  1. Marcus,
    De fato, a França é exceção na cultura. Sempre admirei ouvir um francês falar sua língua: eles não erram, não massacram a língua como se vê, por exemplo, em Québec (e no Brasil, claro). O francês parece se orgulhar de falar bem.
    Só vi a língua francesa massacrada na França ao ler os contos normandos de Guy de Maupassant; e, de quebra, descobri de onde vêm muitas expressões usadas em Québec! Leia este conto, por exemplo: http://goo.gl/SE5Oq5 (Le lapin)

    Sobre o fechamento de livrarias, me parece haver um erro de avaliação de sua parte. Você compara o agregado (várias livrarias fechando em Nova York) com um caso particular (Delamain), como se o caso francês indicasse uma situação fundamentalmente diferente. Sugiro a leitura dos seguintes artigos:

    http://goo.gl/WRxXlu (Tandis que les librairies ferment en France ...)
    http://goo.gl/ciHxzg (Des librairies de plus en plus fragiles)
    http://goo.gl/cVulw1 (Faut-il laisser mourir les librairies ?)

    As livrarias só parecem sobreviver com ajuda do estado -- o que confirma sua tese sobre a importância da cultura na França.

    Eu não estou preocupado com a morte da livrarias: o livro não está morrendo, muito pelo contrário, pois a oferta cresce com nossos processos de negócio (Merci, Amazon!) . Se está em formato digital ou em cadáveres de árvores pouco me importa. Navegar numa livraria digital é muito, muito prazeroso. Uma enorme vantagem da livraria digital é que você recebe recomendações e pode examinar a opinião de quem gostou de um livro e de quem não gostou. Há várias outras vantagens já mencionadas num post anterior. Aqui mais uma: Marcus, tu peux même visiter les librairies françaises en ligne!

    Termino citando o autor (ex dono de livraria) de um dos artigos citados: "Sans réflexion globale sur les librairies et sur la forme que nous leur connaissons aujourd’hui, celles-ci sont condamnées à disparaître. Ce n’est pas une prophétie. Juste un constat amer."

    Pour moi, ce n'est même pas amer.
    Salut, mon ami!

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    1. * com novos processos de negócio

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    2. Caro Jacques,

      Seus comentários são tão fundamentados e necessários que eles vão virar ipsis litteris a postagem da próxima semana, sob o título "A Exceção ... (II): Os Comentários de Jacques Sauvé". Levo em conta que muitos leitores não descem aos comentários, onde eles normalmente se encontram.

      Aproveitando, Fortaleza está com várias grandes livrarias (chamadas de "mega stores"): Cultura, Saraiva (3 filiais) e recentemente Leitura. Todas elas têm suas congêneres virtuais, o que não parece interferir no sucesso das livrarias 'de papel'. Tentarei ouvir seus gerentes: talvez isso renda uma boa matéria.

      Um abraço.

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  2. Caro Marcus,
    Uma precisão para seus leitores sobre a proteção do livra na França. Existe uma lei, a lei Lang, ministro da cultura de François Mitterand, que impõe um preço oficial para cada livro. Só um desconto de 5% é permitido. Assim a Amazon vende os livros somente 5% mais baratos do que numa livraria de rua.
    Aliás, como Jacques comentou, essa lei não impede a baixa regular do número de livrarias na França.
    Voltando aos comentários do Jacques, não concordo com a visão dele sobre o papel benéfico da “mão invisível do mercado” na produção e distribuição de bens culturais.
    Seguinte o liberalismo econômico, o desaparecimento por causa de não competitividade dum produtor de mercadoria, pode ser visto como coisa positiva para o mercado em geral.
    Ao contrário, não vejo positivo per se o fato que produtores de bens culturais não podem sobreviver porque existem outros produtores mais competitivos. O resultado é um empobrecimento da oferta e por consequência da cultura própria. Existem vários exemplos no passado: o cinema italiano, que era um dos maiores cinemas mundiais há décadas atrás, que está quase morrendo por causa da concorrência com o cinema norte-americano e a televisão local. Na França, existe uma lei que impõe a cadeias de televisão (principalmente Canal +) de financiar a produção de filmes. A simples aplicação lei do mercado teria provocado o fim da indústria cinematográfica francesa.
    Isso é também verdadeiro para os meios de distribuição, com o perigo até maior de seleção das obras distribuídas. O monopólio da Amazon foi o centro duma polemica há pouco tempo. Por causa de desacordo com editoras sobre o preço dos livros digitais, eles recusaram de distribuir algumas editoras, cujo era a francesa Hachette.
    Não quero que seja a Amazon quem decidir o que posso ler e o que não posso ler, como a Apple decide o que pode ser instalado em seus celulares.
    Acho que os poderes públicos devem ter uma responsabilidade na organização da produção e distribuição das obras culturais. E não deixar isso ao mercado. E responsabilidade democrática de assegurar diversidade na produção e acesso facilitado aos bens culturais, dum jeito o mais independente possível das condições econômicas.
    Uma vantagem das livrarias de rua é o conselho personalizado do livreiro (que honestamente não aproveito). O Jacques falou das opiniões dos leitores sobre a Amazon. Eu faria a comparação numa área que é mais uma exceção francesa a gastronomia. Você sabe a paixão francesa por nossos restaurantes, que podem ser considerados como lugares culturais. Aqui também temos o Tripadvisor, onde clientes podem deixar notações sobre os restaurantes. Se esses avisos podem ser uteis, nunca prevalecerão para mim os avisos dos críticos profissionais do respeitado Guide Michelin !
    Para terminar sobre uma nota positiva (ta vendo Marcus !), a Internet faz que agora qualquer um pode publicar suas obras literárias ou musicais, o que acho é uma première na História. Isso deve contribuir a riqueza e diversidade da oferta cultural. A condição que os meios de distribuição sejam abertos, honestos e democráticos.

    PS: peço desculpas a seus leitores para meu português de “bárbaro”. A única vantagem é de contrastar com sua língua erudita 

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    1. Caro Stéphane,

      Nós dois concordamos plenamente. Seus comentários são ricos de detalhes. Junto com os de Jacques, eles -- salvo o PS, que não é verdadeiro -- comporão a postagem desta semana. (Admite-se que muitos visitadores do blog não chegam até os comentários.) Deixemos que eles, leitores, tirem suas próprias conclusões.

      Um abraço,
      Marcus

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