sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

França: Direita, volver



A potência sócio-econômica francesa tem involuído -- é isso mesmo, involução -- na era da globalização e da expansão da União Europeia (UE). É suficiente prestar atenção a dois indicadores chave: desemprego e desigualdade de renda.


O gráfico da taxa de desemprego no período 1980-2020 mostra que, a partir de 1992, só em breves intervalos a taxa foi inferior a 9%; na maior parte do tempo, valores muito superiores a 9%, chegando ao pico de 11% (ver os pontos do gráfico acima da linha horizontal para a cota 9). 1980 foi o último ano comparativamente virtuoso, com sua taxa de desemprego em torno de 6,35% -- a seta no gráfico aponta para o ponto (1980, 6,35). Face ao longínquo 2020, a previsão ainda é de 9%.

Com notável consistência, o economista francês Thomas Piketty, em seu indispensável livro O Capital no Século XXI, prova que 1980 foi o ano da inflexão da distribuição de renda: antes de 1980, a desigualdade de renda decrescia quase monotonicamente; depois de 1980, a desigualdade passou a crescer de forma aproximadamente monotônica, com fortes evidências de manter a tendência.

A baixa política tem acompanhado a débâcle social e econômica. Os sucessivos governos democráticos de direita e de esquerda fracassaram rotundamente em encontrar saídas para o marasmo crônico da sociedade francesa; particularmente, as figuras políticas de Nicolas Sarkozy (direita) e François Hollande (esquerda) deixaram seus militantes republicanos e socialistas completamente sem bússola, além do descrédito da opinião pública.

Tem mais. A imigração desenfreada causa perplexidade e temor. A insegurança física está na ordem do dia, depois da série de atentados dos últimos vinte meses: a "guerra contra o terrorismo" de François Hollande não convenceu a nação, que espera aflita a próxima ação terrorista. Os valores e os símbolos nacionais, outrora tão caros aos franceses, estão em xeque: um número crescente de empresas busca seus lucros deslocando-se para países mais pobres; quantos jovens altamente capacitados procuram emprego seja no Reino Unido seja nos Estados Unidos.

Campo fertilizado para a floração rápida da extrema direita de Marine Le Pen, abundantemente irrigado pela extrema direita de Donald Trump, no poder dos Estados Unidos. Um terço do eleitorado francês é lepenista do partido Frente Nacional. O discurso é feroz: combate irracional aos muçulmanos e aos islamistas; anti-semitismo; não total à imigração; barreiras comerciais protecionistas; saída da UE. 

Que ninguém se engane com Marine Le Pen: tal como Donald Trump, ela não é um reles político folclórico. Ao contrário, ela compreende as dificuldades das pessoas ordinárias -- o paralelo com Trump se ressalta --, diferentemente aos diplomados das grandes escolas das elites que oscilam entre a função pública e os partidos tradicionais carcomidos. É também hábil no plano tático: em resposta a uma proposta de Sarkozy para isolar sem julgamento os indivíduos suspeitos de radicalização, ela lembrou a importância de respeitar o Estado de Direito; e manteve suas distâncias em relação ao acirrado debate em torno da lei sobre o casamento homossexual.

Marine Le Pen encontra eco lá onde as chamadas elites pensantes não conseguem se fazer entender. Sua Frente Nacional é mais aceita junto à classe operária do que qualquer outro partido. Marine Le Pen agora ocupa um lugar central na política francesa, ganhe ou não as eleições presidenciais que acontecerão em futuro próximo: direita, volver!

Reflexões. Análises simplistas dificilmente funcionam em matéria de economia. Porém é fácil constatar o seguinte: no fundo, os verdadeiros ganhadores da globalização se resumem à China e, em menor medida, à Índia. (O Brasil -- um BRIC como China e Índia -- ensaiou agarrar a oportunidade, contudo insistindo em ser apenas um país exportador de produtos primários, desperdiçou a chance.) Os países desenvolvidos vivem sua crise sem fim, em maior ou menor monta.  Tirante as elites transnacionais e as classes médias que adoram consumir bem e barato, o grosso das populações tem mais é a lamentar a deterioração do nível de vida, quando não o desemprego ou o subemprego. Em sua obra de 1998 já seminal e premonitória -- L'illusion économique : essai sur la stagnation des sociétés développées ("A ilusão econômica: ensaio sobre a estagnação das sociedades desenvolvidas") --, o cientista político e historiador francês Emmanuel Todd analisa com argumentação forte e embasada os fatores da globalização que levariam às crises existenciais dos países desenvolvidos, afinal claramente percebidas. Em verdade, Todd faz uma reflexão econômica e filosófica sobre a decadência das democracias ocidentais, que estariam sendo solapadas pela impulsão dos extremismos (de direita). Qualquer semelhança com os tempos atuais não é mera coincidência

Nas águas agitadas do "Abaixo a globalização!", os extremismos de direita navegam de vento em popa. Alarmante! Eles devem ser combatidos na luta política devido a seu caráter autoritário, racista e xenófobo (o extremismo de Trump é, ademais, mentiroso e torturador). Todavia, muita atenção: o povo não entende e não gosta de discursos abstratos.

3 comentários:

  1. Caro Marcus,
    Para completar sua análise, eis um gráfico comparando taxa de desemprego entre a França e a UE (não sei se consigo inserir um link):
    https://www.contrepoints.org/wp-content/uploads/2015/02/Taux-de-ch%C3%B4mage-compar%C3%A9.jpg
    As evoluções comparadas não são tão diferentes.
    As ultimas noticias aqui preveem eleições presidenciais em maio muitas imprevisíveis. A esquerda está dividida e desacreditada depois do mandato Hollande. O candidato eleito na primeira da direita republicana está no meio dum escândalo de empregos públicos de assistentes que ele deu a sua esposa e seus filhos. O favorito nas pesquisas é agora o Emmanuel Macron, ex ministro de Hollande que agora se diz nem de direita nem de esquerda. Ele é claramente pro globalização e liberalização na economia. Se os franceses votaram como os ingleses e os americanos, Marine Le Pen será eleita.
    O que seria um verdadeiro pesadelo para mim e muitos franceses...

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    1. Caro Stéphane,
      O link funciona, sim.
      Em meu artigo "A Alemanha vista de dentro", também mostro que a situação da Alemanha não é tão rósea como julgam os analistas apressados, longe disso.
      O que achas de Benoît Hamon? Tomara que ele seja uma novidade promissora na vida política francesa.
      Um abraço,
      Marcus

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    2. Benoit Hamon ganhou as primarias socialistas um pouco por surpresa. Ele é jovem, foi ministro de Hollande antes de se opor a política do governo. Ele pertence a ala esquerda do partido socialista. O programa de Hamon é o mais criativo: renda mínima universal, reforma constitucional, transição ecológica...
      Acho que a maioria de seus eleitores na Primaria pensavam que ele terá nenhuma chance de ser eleito Presidente da República. Assim, seu programa não necessitou ficar complementarmente realista financeiramente e planejado.
      Nunca vi uma eleição tão imprevisível. Temos a impressão que quase qualquer candidato poderá ser eleito: Emmanuel Macron, François Fillon, Benoit Hamon e evidentemente Marine Le Pen.
      Depois de votar para o presidente, votaremos para deputados. E assim alguns pensam que o presidente eleito, especialmente se for Marine Le Pen, poderia não conseguir uma maioria de deputados. Seguiria uma crise política e institucional...

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