sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Yes, Nós Temos Bananas





O provérbio do ano (autor anônimo) em nossa república bananeira:


Manda quem pode; desobedece quem tem juízes




Em nome de uma fantasiosa governabilidade, como se não houvesse um abissal fosso entre os gabinetes de Brasília e  as  ruas, o Supremo se agacha à república das Alagoas de Renan Calheiros, de Fernando Collor e de Benedito de Lira. (Não por acaso, Alagoas é o pior Estado do Brasil de acordo com os indicadores sócio-econômicos.) Renan Calheiros esnoba o Supremo; Renan Calheiros pode com o Supremo. Ecoando Josias de Souza, analista político do jornal Folha de São Paulo, não há indício de semelhante desmoralização na história da Suprema Corte brasileira.


O blogueiro entra em férias. Deseja aos queridos leitores um 2017 com ainda mais compreensão, conhecimento e participação. Até 13 de janeiro de 2017!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Cuba



A Geografia. Cuba é uma comprida e encurvada ilha do Caribe -- "Oh Cuba! Oh curva de suspiro y barro!" (Federico García Lorca, pranteado poeta espanhol) --, situada a escassos 100 km da península da Flórida, extremo sudeste do colosso norte-americano.

O Povo. Os cubanos são francos, altivos. educados e saudáveis. Finos no trato pessoal e coletivo. Ocupam em massa os espaços públicos, em disponibilidade para o pleno "estar" mais do que para o consumo. Muito bacana a vida além do consumismo, mesmo que seja, em parte, uma alternativa à escassez: o atroz embargo norte-americano continua vigendo, e a produção local de bens de consumo é irrisória.
Não existem miseráveis em Cuba; somando-se à boa educação e saúde públicas, é extraordinário, em se tratando de um país da América Latina.

A Repressão Política. "Dentro da Revolução, tudo; fora da Revolução, nada": eis o lema da ditadura do único partido, o Partido Comunista Cubano. Porteira escancarada para todo tipo de perseguição aos dissidentes políticos.
Louvores às "Damas de Blanco", um numeroso grupo de mães de presos políticos que corajosamente desafia as autoridades em desfile dominical por algumas das principais ruas de Havana, protestando contra a prisão dos filhos por 'crimes' de consciência.
Os números da repressão política estarrecem. Pelo critério de mortos ou desaparecidos por cem mil habitantes, o regime cubano é ainda mais letal do que as ditaduras de direita que vigoraram na Argentina e no Chile. Já em relação aos mortos e desaparecidos por ano de regime, Cuba só perde para as citadas ditaduras da Argentina e do Chile

A Repressão aos Costumes. O governo conservador coloca Cuba na retaguarda de uma série de conquistas inerentes ao século XXI, tais como os direitos dos negros, das feministas e dos homossexuais.

A Economia. Imagine-se um país onde 80% das pessoas trabalham para o Estado. O próprio Estado reconhece finalmente que o salário que ele paga é insuficientes para se viver condignamente. Só agora surge um pequeno setor privado. Receitas cambiais típicas de economia subdesenvolvida: monocultura de cana-de-açúcar e turismo. (Há pouco tempo, o país precisou importar até açúcar!) Acrescente-se este inusitado item de comércio exterior: o país 'aluga' a outros países profissionais superiores que o Estado não consegue absorver, como os médicos cubanos servindo ao programa brasileiro Mais Médicos. 
O que se faz quando o salário não dá para tudo? Pequenas corrupções no cotidiano. Dois exemplos: (1) o gerente de farmácia (estatal) que vende remédio sem exigir a receita obrigatória e fica com o dinheiro; e (2) o motorista que rouba um pouco de gasolina e vende para outra pessoa. E há o dinheiro enviado pelos parentes que moram no estrangeiro, sobretudo Miami. 
Por que um país tão avançado em matéria social é tão fraco economicamente? A mais óbvia das respostas é a incipiência dos investimentos em tanta coisa: agricultura, indústria, infraestrutura e serviços.

O Embargo Norte-americano. Tem a mesma idade da revolução cubana no poder: 57 anos. É uma perversidade da superpotência contra o povo cubano, e pronto.

Os Irmãos Castro. Fidel Castro manteve o poder por inacreditáveis 47 anos, desde que derrubou o governo corrupto de Fulgêncio Batista em 1959, comandando uma revolução armada e popular. Atribuiu-se o papel de pai e mestre do povo, como se outros milhares de cubanos tão brilhantes não fossem capazes de governar a nação. Um pai descrente dos filhos. No final do longo abuso de poder, e somente por motivo de idade e debilidade física, transferiu o bastão a ninguém menos que seu irmão, Raúl Castro. Este último, em idade provecta, anuncia que deixará o poder em 2018, por sua própria vontade (sic).
Cuba dos Irmãos Castro, eis um anacronismo de família 'dona' de um país; excetuando-se a coitada da Síria dos Assad, que outro país é (foi) 'propriedade' de uma mesma família?

Cuba pós Fidel. Fidel, entidade física, morreu. O que será feito da singularíssima experiência histórica de Cuba? Qualquer prognóstico é (ainda) arriscado, mas uma coisa parece certa: se a economia cubana não deslanchar logo, as notáveis conquistas sociais terminarão por perigar.


Principais fontes -
1) Leonardo Padura. Escritor cubano contemporâneo, prêmio espanhol Prêmio Princesa das Astúrias de Letras. Assina uma coluna semanal no jornal Folha de São Paulo, abordando temas do cotidiano cubano. Morador de Havana.
2) Minha mulher, Djanete, que em 1989 passou dois meses em Cuba a propósito do curso para médicos latino-americanos Crecimiento y Desarrollo del Niño ("Crescimento e Desenvolvimento Infantis"), ministrado na Facultad Julio Trigo de Havana.  

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A Terra em Chamas



Trump e o Clima


O novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é um empedernido desdenhador dos gases de efeito estufa e do aquecimento global. Em sua campanha eleitoral, ele dizia disparates como o de que o aquecimento é uma invenção da China a fim de prejudicar a competitividade da indústria norte-americana.  

Prepara-se para ir à prática. Cercado de lobistas dos combustíveis fósseis, anuncia as seguintes sandices:  (1) retirar seu país dos acordos de Paris -- que visam a reduzir as emissões de gases estufa; (2) dar fim ao programa de energia limpa do presidente Obama; e (3) liberar a construção do oleoduto Keystone XL, ligando o Canadá aos Estados Unidos e atravessando este último de norte a sul. (A construção desse oleoduto fora vetada pelo governo Obama, dada a potencialidade de causar pesados danos ambientais.) Tudo isso é grave, muito grave.

Não pára aí. Para comandar a equipe de transição na Agência de Proteção ao Ambiente, Trump indicou Myron Ebell, presidente da Coller Heads Coalition, uma organização que tem por objetivo "dissipar o mito do aquecimento planetário" (sic). O orçamento da agência espacial norte-americana (NASA), no que concerne ao monitoramento de ações de devastação do planeta, vai ser redirecionado para programas completamente alheios a questões da Terra, tais como missões humanas à Lua e além.

Nota à margem - Donald Trump planeja a construção de um muro -- ôpa! o do México é outro -- para proteger sua propriedade escocesa das tempestades e da elevação do nível do mar. Um sinal de reconhecimento dos efeitos do aquecimento global? Mais adequado dizer que ele é um hipócrita e um entreguista dos interesses econômicos.


A Seca no Nordeste


Ao que muito parece indicar, o Nordeste Brasileiro vai entrar no sexto ano consecutivo de estiagem. Será a pior e mais extensa seca dos últimos 100 anos. A última grande crise assemelhada foi aquela entre 1910 e 1915, imortalizada pela escritora cearense Rachel de Queiroz em seu romance realista O Quinze, publicado em 1930. 

A área abrangida por Campina Grande na Paraíba -- 400.000 habitantes na sede e quase 1 milhão no entorno chamado de Compartimento da Borborema -- está à beira de um colapso hídrico, com falta de água para consumo humano já em abril próximo. A Grande Fortaleza, a quinta maior aglomeração urbana do Brasil, sofrerá de sede ainda em 2017. Obras estruturantes e novas adutoras não ficarão prontas a tempo de resolver o problema, que bate à porta. O paliativo ora em execução: 6.800 carros-pipa, atendendo a 3.500 localidades. 

São apenas alguns aspectos de uma catástrofe climática anunciada, que abarca uma região-país de 1.300.000 km2 e 55 milhões de habitantes.  (Meus amigos Almir Junior de Fortaleza -- um estudioso do tempo -- e Bruno Queiroz de Campina Grande ainda acreditam na melhora das condições para chuva em 2017. Ave, Ave, Junior e Bruno!)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Econoceticismoˠ

ˠ- Neologismo para designar o ceticismo face a políticas econômicas centradas em arrocho fiscal.


O econoceticismo tem sido a tônica das discussões sobre diretrizes (macro)econômicas. Às favas a ortodoxia -- a economia dominante -- que asfixia os governos de praticamente o mundo todo com suas orientações de política econômica completamente divorciadas dos grandes problemas do mundo real, tais como as desigualdades e a instabilidade financeira.

Um basta na estagnação europeia. Finalmente, Bruxelas compreendeu que, a cumprir o receituário da economia dominante de incompatibilidade entre ajuste fiscal e crescimento econômico, a saída da Grã Bretanha é só o começo da derrocada final da União Européia. Insuportável o estrangulamento econômico vivido pela Grécia e, em menor medida, por Portugal e Espanha. Itália e França também estão longe, longe, de investir o suficiente para desamarrar suas economias claudicantes.

Para evitar o desastre final da União Europeia, Bruxelas por fim encampa as novas recomendações do FMI, do G-20, do G-7 e até do Banco Central Europeu que pleiteiam um estímulo fiscal "expansivo" para todos os países em dificuldades. Chega ao ponto de afirmar que passará a fazer vista grossa aos países que claramente descumprem as metas de deficit -- casos de Espanha e Portugal --,  não deixando de drenar recursos europeus para eles. Uma maneira cabal de consumar a nova orientação desenvolvimentista (!).

Nos Estados Unidos, o presidente eleito Donald Trump propõe um estímulo a mais de um trilhão de dólares à economia, o que já causa alvoroço nos meios econômicos mundiais. (Espero ter deixado claro, de outros artigos, que minha veemente oposição a Trump não é contudo cega.)

Os economistas ortodoxos ou se reciclam ou cairão no descrédito total. Da mesma forma que o ensino de economia precisa passar por revisões profundas. Considere-se a crise financeira de 2008: foi a pior desde 1929 e os professores das matérias econômicas continuam a dar suas aulinhas repetitivas como se nada tivesse acontecido. Esquecem que o grande objetivo do estudo da economia é o de tornar o mundo melhor e não para aumentar os lucros do setor privado. Alto e bom som: mostram-se cruelmente ineficientes em apresentar previsões e soluções que beneficiem o conjunto das populações.

O fracasso mais retumbante da economia dominante foi sua incapacidade de prever o crash financeiro de 2008. Chocante, contrastando com a pretensão de ser um sistema racional e adaptativo às perturbações ocasionais. Enfim, de querer que a economia seja um conjunto imutável de regras e leis que não se pode nem questionar e nem duvidar. Uma ciência, como a Física? Não, não é.

Bem ao contrário, Economia é uma matéria por natureza contestável e interdisciplinar. Indispensável o ensino também de matérias complementares, tais como Filosofia da Economia, História da Economia e Ética. Uma formação mais pluralista, mais crítica e mais liberal. (Sem dispensar, claro, o rigor: a construção e validação de modelos econômicos não dispensam sólida familiaridade com a matemática. Modelos são indispensáveis para que seus autores demonstrem que realmente entendem do que estão falando.)

Seria pertinente falar de escolas brasileiras de pensamento econômico? Infelizmente, não. Nossos mais incensados economistas têm sido incapazes de propor modelos para o Brasil (já vai longe o tempo do grande economista paraibano, Celso Furtado). Não passam de boçais imitadores dos "dinossauros do ensino da economia" -- a expressão é do jornal londrino Financial Times --, enredados em fórmulas matemáticas e modelos abstratos desconectados do mundo real. Pior, cuja aplicação só tem infelicitado os países e os povos. Evocando o sempre atualíssimo Nelson Rodrigues: E agora, seus portadores de complexo de vira-lata? Quando vão entender que o controle dos gastos públicos é apenas uma parte -- talvez bem pequena -- da solução para o desenvolvimento do Brasil? Nossa dívida pública precisa de alívio, crescimento já!

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Presidente Trump



Pela segunda vez neste blog -- a primeira foi a postagem Repetir-se de 27/05/2016 -- a norma "não copiar-colar" do blog é ignorada para reproduzir integralmente o editorial Brexit américain ("Brexit americano") do semanário analítico francês Courrier international, a propósito da vitória de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos. Enumeram-se três motivos conjuntivos para tal: (m1) a eleição presidencial da primeira potência do planeta repercute natural e intensamente no mundo inteiro; (m2) a excepcionalidade da vitória de Trump, contra as principais médias e contra todas as pesquisas de opinião (à exceção de uma); e (m3) a agudeza e concisão da análise do Courrier: o essencial em apenas três parágrafos.

Segue-se minha tradução para o português do referido editorial, assinado por Éric Chol na edição do Courrier international de 10-16 de novembro de 2016.


     Brexit americano


Faz tempo, as médias o têm tomado por um palhaço. E elas debocham de suas travessuras, sinônimos de zumbido e de querer aparecer. Mas quando os jornais e as redes de televisão acordaram, já era tarde demais: o foguete Trump decolara. Deixando estatelados os Jeb Bush e outros rivais republicanos. O bufão se transformou em demônio da política americana, aquele que precisava ser imobilizado a qualquer preço.

Desde o início do outono, revelações têm se sucedido sobre seus desvarios sexuais e suas fraudes fiscais. Inútil: Donald Trump bem sabe escolher as palavras e o que postar no Tweeter para convencer uma população em cólera a votar nele. Sua campanha, de agressiva rudeza, foi ameaçadoramente eficaz. Fazendo explodir umas após outras as barreiras de contenção democratas. Era preciso ver, nesta noite de 8 de novembro, os semblantes desnorteados dos membros do clã Clinton, ultrapassados por um fenômeno que a ex Primeira Dama jamais soube analisar. Ora longe de ser obra do acaso, a vitória de Donald Trump soa como a resposta populista ao mal-estar profundo da sociedade americana. Um mal-estar cuidadosamente dissimulado por um crescimento econômico moderado e uma taxa de desemprego inferior a 5%.

Mas as fraturas expostas criadas pela globalização, os rasgos no tecido industrial do país, a herança maldita nunca resolvida da recessão de 2008 deram elasticidade ao ressentimento popular. Uma cólera surda, comparável àquela manifestada em junho na Grã-Bretanha [Brexit]: antes de dizer sim a Donald Trump, a América sobretudo disse não a Hillary Clinton. E é com esta América recalcitrante que o resto do mundo, consternado, vai ter que se compor.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Desamparada América Branca



É mais do que certo que arrogância, simplismo e desprezo dissimulam medo, insegurança e ódio. Enquanto a parte instruída da América Branca surfa nas ondas otimistas e revigorantes do progresso tecnológico --  "Os EUA são uma fonte impressionante de inovação. Acabei de fazer uma série de entrevistas na Amazon em Seattle e senti a inovação no ar ...", diz peremptoriamente meu amigo Jacques Sauvé --, a outra parte precariamente capacitada e desamparada da América Branca -- a América profunda -- disfarça seus medo, insegurança e ódio com manifestações de arrogância, simplismo e desprezo para com o mundo inteiro. Tudo isso se passando na principal potência nuclear do planeta, às voltas com sintomas de uma ressurgente guerra fria com a nuclearizada Rússia (e nem se fale da China). É de apavorar, sem fingimento.

Um cidadão da América profunda dificilmente encontra um bom emprego. Vê seus filhos morrerem de overdose. Não consegue confiar nas médias, nem nas elites políticas, nem em ninguém. Tem acesso a portais de notícias ultraconservadores como Breitbart News, que difunde que o presidente Barack Obama é um terrorista estrangeiro. Quase impossível a ascensão social, em uma cultura que encoraja a degradação social em vez de combatê-la. É pois falacioso afirmar que as causas da deterioração da sociedade norte-americana se devem primordialmente à economia globalizada que rouba empregos locais: pertencer à baixa classe média e à pobreza por si só engendra motivos específicos e determinantes para a degeneração.

Números estarrecedores. O consumo de heroína nos meios da América branca e pobre quadruplicou nos últimos dez anos. Não é exagero reconhecer a existência de uma verdadeira epidemia da droga, sem excluir outras pesadas como a cocaína. O fenômeno dilacera particularmente pequenas cidades e zonas rurais norte-americanas. Entre os estados mais atingidos, figuram New Hampshire (vizinho dos resplandescentes estados de Nova Iorque e Massachusetts), os estados do Meio-Oeste e aqueles da região dos Montes Apalaches.

Não deveria pois surpreender que o cidadão da América profunda detesta os detentores do poder: os Clinton, Barack Obama e os banqueiros de Wall Street. Campo fértil para dar ouvidos às grosserias sem peias de Donald Trump contra pessoas e instituições. Muitos também encontraram guarida em Bernie Sanders -- o rival de Hillary Clinton quando das eleições primárias do Partido Democrata -- que, com um discurso politizado, posicionou-se veementemente contra o establishment.

Se é bem verdade que as tensões raciais se multiplicam, ou que o racismo se escancara, é igualmente certo que grassa um processo de isolamento cultural e social das gentes da América profunda. Em sua coluna na FSP de 03/11/2016, o articulista Clóvis Rossi vai na mesma linha: "Ao contrário de culpar os eleitores quando uma derrota eleitoral se afigura, é mais razoável sugerir que se estude a alma deles [dos eleitores de Trump], para compreender -- e eventualmente corrigir -- esse difuso mal-estar que gera o 'trumpismo'".  


Principal fonte - Courrier international, 3-9/11/2016. 

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Inovação e Empreendedorismo: O Contraste China - Brasil



A China vive o florescimento ilimitado de sua alta tecnologia, em especial o setor das tecnologias de informação. É a feliz conjugação de dois fatores imprescindíveis: multidões de jovens engenheiros de computação egressos de excelentes universidades e institutos tecnológicos, e dinheiro farto para motivar jovens criativos a empreender. Fim à era de clonar serviços digitais: Baidu era uma réplica de Google, Tencent uma cópia de Yahoo, JD uma versão chinesa de Amazon. Agora, a China está igualmente na ponta da inovação.

Exemplo de diálogo corriqueiro entre um diretor executivo (sigla em inglês CEO - "Chief Executive Officer") e um tenro concebedor e implementador de aplicativos de software (Desenvolvedor). CEO: "Você tem certeza que esta sua ideia vai dar certo? Parece-me uma maluquice!"; Desenvolvedor: "Estou absolutamente convencido que vai ser um sucesso". Face à determinação e auto-confiança de seu brilhante desenvolvedor, o CEO termina por lhe dar o sinal verde para ir em frente. Quase sempre dá muito certo. Outra remarcável mudança cultural: antes. os desenvolvedores eram atraídos sobretudo por bons empregos em grandes e sólidas empresas; hoje, cheios de planos e audácia, eles preferem montar seus próprios negócios.

Cena comum na paisagem chinesa de tecnologia de ponta, investidores de capital de risco percorrem o país para financiar jovens interessados em criar suas empresas. Eles funcionam ao modo de catalisadores de startups e de hackerspaces (incubadoras). Não colocam mais seu dinheiro em Apple, Microsoft ou Google. A prioridade são as startups chinesas: injetaram nelas 15,5 bilhões de dólares em 2014. A curva dos investimentos privados é altamente ascendente no tempo, permitindo antever que em 2016 terá sido bem mais. Em relação ao governo, ele lançou um fundo de 6,5 bilhões de dólares destinado exclusivamente a amparar startups e incubadoras. A busca de novas fontes de empregos qualificados é uma das reações governamentais ao arrefecimento como um todo do crescimento econômico.

Quanto à qualidade do software chinês, não pode haver dúvida: os desenvolvedores chineses são tidos como os melhores e mais produtivos do mundo; segundo, a concorrência é feroz: cada vez que aparece uma nova categoria de serviços, logo, logo despontam dezenas e mesmo centenas de concorrentes com praticamente o mesmo poder de fogo. Aplicativos 100% chineses passam a disputar mercado tête-à-tête com seus congêneres de Google, Yahoo e Amazon, entre outros gigantes mundiais da tecnologia informática. As lojas da exigente Apple vendem software chinês.

O avanço da China em relação aos Estados Unidos é mais nítido ainda no domínio do hardware. Cidades portentosas como Shenzhen e Cantão estão 'inundadas' de fábricas de eletrônicos, desde o minúsculo atelier de três pessoas até complexos tipo Foxconn, verdadeira cidade em si onde trinta mil empregados produzem smartphones em cadeia.

Em suma, a China é a nova Meca das pessoas cheias de ideias e de dinheiro, não só chinesas mas de todo o mundo. Um pouco como o Vale do Silício de há uma geração.

Mude-se o cenário para o Brasil. O que fazem nossos doutores e mestres em computação? Levantamento de 2011 do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações revela que 80% ficavam nas universidades e 16% na administração pública. Ínfimos 4% em empresas, contando-se entre esses alguns poucos empresários.  (De lá para hoje, é bem possível uma ainda maior concentração de funcionários, face à crise que devasta a indústria.) Nem patentes, nem protótipos e muito menos produtos. De sua parte, os desenvolvedores graduados em geral se contentam com empreguinhos de sobrevivência que praticamente nada lhes acrescentam em conhecimento e experiência. A qualidade periclita: a USP, nossa universidade mais vistosa, perdeu quase 100 posições em ranking de universidades desde 2012. Todos os outros fatores que possam ser levados em conta não impedem a constatação de que o custo / benefício da formação de nossos especialistas é insuportavelmente alto. Como se o Brasil não precisasse imensamente deles para desamarrar os entraves a seu desenvolvimento científico e tecnológico. Onde estão nossos investidores de capital de risco?  (Ver também Pós-graduação e Inovação: O Descompasso Brasileiro, publicado neste blog em 19/02/2015.)

China e Brasil se perfilam nos BRICS. Enquanto que o primeiro se desenvolve célere e já é, para tantos efeitos, uma potência de primeira grandeza, o Brasil derrapa feio. A China indica caminhos. O Brasil bem que poderia se mirar na política chinesa de C&T. Indo além, inspirar-se em muito mais coisa da China, mormente no que diz respeito a questões de política econômica. (Naturalmente, as inclinações confucionistas chinesas ao totalitarismo devem ser evitadas; aliás, sobre o tema democracia, a nossa está longe de entusiasmar, não é mesmo?)

Alto e bom som: sem consistentes políticas científica, tecnológica e industrial, o Brasil não sairá do buraco. A persistir o ambiente de falta de soluções e ousadia, o rigor fiscal terá sido um sacrifício inútil.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Pós-modernismos

          A vida sem tempo é individualista.      
                                                                                         Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.)



Vive-se uma época extraordinariamente complexa e desnorteadora, a pós-modernidade. Está na moda uma "cultura de entretenimento", em franca reação à cultura moderna de transformação, prevalente até o penúltimo quarto do século passado. Tempos apressados e egoístas, sem asas para a reflexão e o social (ver também a epígrafe). Na sequência, especula-se brevemente sobre os efeitos pós-modernos nos campos da educação, literatura, turismo, tecnologia e cinema; um parágrafo para cada tema, nesta ordem.

A educação, antes autoritária, torna-se altamente permissiva na era pós-moderna. Se o autoritarismo sem excessos é até mesmo salutar à socialização dos indivíduos, a permissividade desbragada pode gerar distúrbios de comportamento praticamente incorrigíveis. É o que se nota com o aumento desmedido da violência juvenil, das drogas, etc. Para complicar, a vida das pessoas -- pais, professores -- parece uma disputa de velocidade. Azar dos filhos, que estão sendo empurrados com uma pressa neurótica. Cadê espaço para o conteúdo das coisas, a ponderação, a solidariedade e o cuidado com a natureza? E há a sedução do dinheiro, o dinheiro reina sobre tudo, tudo cheira a dinheiro. Desde a pouca idade, o único objetivo de muitos é querer ser rico, custe o que custar. Pobres jovens de nossos dias.

Enquanto que a grande literatura visa a transformar o homem pela palavra, a cultura pós-moderna busca entreter o homem pela palavra. Nas listas de best-sellers, é pouco provável encontrar novos literatas do porte de Jonathan Littell, Leonardo Padura, Sérgio Rodrigues e Rodrigo Lacerda, entre outros. Autores e escritos clássicos, ou à altura dos clássicos, perdem espaço para a literatura de entretenimento, pronta a consumir e desaparecer. Um exemplo bem ilustrativo de literatura light é o de nosso campeão de vendagens, Paulo Coelho. Cerrada propaganda ajuda a vender ainda mais seus livros como "O Alquimista" e "O Diário de um Mago". A publicidade é a alma do negócio ... também para o negócio de livros. Em Paris, vi numerosos cartazes no metrô e nos ônibus anunciando o lançamento da última 'grande obra' de Paulo Coelho. Pois é, até a rigorosa França chafurda nas águas estéreis do pós-modernismo.

O vazio pós-moderno tem levado a um pseudo turismo. Visita-se o museu do Louvre, em Paris, não pelo valor intrínseco das obras de arte lá exibidas, mas porque é um museu chique. Não é incomum ouvir-se, à saída, exclamações tais "Não achei graça na Mona Lisa!". O cúmulo da dispersão cultural é esta frase tão anódina e repetida: "Não visitar museus na cidade luz [Paris] é como ir a Roma e não ver o Papa". Um brasileiro, a quem pedi um balanço de seus quatro anos de doutoramento na França, respondeu-me com este exagero de alienação: "Rodei mais de trinta mil quilômetros pela Europa toda". Um outro doutorando, zeloso fotógrafo pré smartphone, foi ainda mais risível: "Se alguém duvidar que não passei por um certo lugar, sapeco-lhe a foto do lugar". Com tal 'cultura' do faz-de-conta, tenho que duvidar da capacidade desses doutores.

De chofre, que não se ignore os imensos benefícios das inovações tecnológicas, com destaque para a tecnologia da informação: economia de tempo e esforço na realização de múltiplas atividades, conforto em casa e no ambiente de trabalho, abundância de informação útil. Infelizmente, nossa época pós-moderna é pródiga também em abarrotar a web de lixo, em quantidade que parece até mesmo maior do que a da informação de qualidade. Acresçam-se as ameaças à privacidade, a manipulação totalitária de amplos segmentos da sociedade e a padronização para baixo de usos e costumes.

Lamentável o pouco caso pós-moderno para com filmes reflexivos como os de Luís Buñuel, Luchino Visconti, Jean Renoir e Irmãos Cohen, entre outros grandes criadores. (Nosso Glauber Rocha? Não me afino com ele: abusa das metáforas.) Uma ressalva em favor do cineasta pós-modernista Woody Allen, que oscila entre o diversionismo e o apaixonante: se é verdade que seu último filme, "Café Society", é bobão, em compensação o penúltimo, "Meia-noite em Paris", é um sublime exercício de paixão pela dourada boêmia parisiense dos tempos da belle époque. (Invoco em meu apoio o poeta Paul Valéry: "Nem sempre sou de minha opinião [contra o pós-modernismo]".)

Quanto a mim, propriamente. Perturba-me a massa de jovens açodados e anti-sociais. Afasto a baixa literatura, que nada me adiciona; ao contrário, a alta literatura me enriquece sempre, meus (poucos) clássicos bastando. ("Clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: 'Estou relendo', e nunca 'Estou lendo' " - Italo Calvino, ensaísta e romancista.) Aproveitarei meu réveillon em Buenos Aires para 'conversar' com Jorge Luis Borges na Biblioteca Nacional e na livraria que ele mais gostava. A tecnologia da informação me é indispensável, conquanto convenientemente distanciado do borborinho das redes sociais. Raramente frequento as salas de cinema, por falta de opções; felizmente, as locadoras insistem em sobreviver, com suas seções de filmes pomposamente classificados de cult.

Para os incomodados, como eu, com a evasão do pós-modernismo, recomendo a leitura dos estudos ensaísticos A Civilização do Espetáculo, de Mario Vargas Llosa (Nobel de Literatura).

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Antipolítica e Crise Econômica



Na maior cidade e capital econômica do Brasil, São Paulo, o político João Dória foi eleito prefeito em primeiro turno com o discurso antipolítico "Não sou político, sou gestor". Na socialmente exemplar Curitiba, capital do Paraná, o político Rafael Greca, provável novo prefeito, adota o slogan de campanha "Por amor a Curitiba". E por aí vai, no Brasil todo. A política virou um espantalho de votos.

O principal indutor da antipolítica é a vertiginosa queda da qualidade de vida de amplas camadas da população, na esteira da profunda recessão econômica manifestada a partir de 2012. Nos anos áureos de Lula, as classes A e B na cidade de São Paulo aumentaram de 38% para 45%. Proporcionalmente, o crescimento foi maior nas periferias. O novo cidadão consumidor passou a exigir serviços públicos eficazes para compensar os altos impostos. Em 2012, o então candidato do PT, Fernando Haddad, prometia levar os benefícios "de dentro de casa" para "fora de casa". As promessas se revelaram vazias. Péssimo pano de fundo, os escândalos de corrupção do PT nacional: mensalão, superfaturamento das obras da Copa 2014 e petrolão. O histórico antipetismo que estava hibernado, despertou.

Em 2016, João Dória ganhou em todas as seções eleitorais de São Paulo, menos duas. Impressionante. O dono e seus empregados de uma oficina de bicicletas, a 24 km do centro da cidade, votaram em Dória; todos foram Haddad em 2012. E assim em milhares de pontos comerciais e residenciais da imensa Zona Leste dos bairros populares de São Paulo. A imagem de Dória face ao novo cidadão consumidor: bom gestor e longe dos políticos tradicionais; tal e qual os eleitores dos abastados Jardins!

Como pensa o novo cidadão consumidor? Seguem-se algumas respostas. "Privatizações? Tem que privatizar. Olha o Pacaembu: só dá gasto. Nem o Corínthians joga mais lá. Investir o dinheiro das privatizações em serviços públicos". "É imoralidade uma fila de espera nos postos de saúde com 760.000 pedidos. Tem que acabar com isso". "O trânsito é um horror. Só multas, praticamente nenhuma melhoria. Para onde está indo o dinheiro?". O epitáfio político de Fernando Haddad: "Só cuidou dos ricos!" (!?). (Ressalte-se que o naufrágio eleitoral do PT não é um fenômeno especificamente paulistano: longe disso, ele se dá no país inteiro.)

A antipolítica se sustenta nas águas fartas do antipetismo. Porém, o manancial poderá em breve secar se o governo Temer não for capaz de rapidamente aliviar a profunda crise econômica. Uma controversa emenda constitucional de estancamento por vinte anos do deficit público está na ordem do dia. É a primeira posição para evitar a ameaça de inadimplência futura do Estado. A outra frente concomitante é a diminuição dos gastos públicos. Sobram carradas de dúvidas a dirimir.

O orçamento de 2017 prevê a despesa primária* de R$ 1, 316 trilhão, para a receita primária** de R$ 1, 177 trilhão. Este deficit primário de R$ 139 bilhões é R$ 1, 100 bilhão menor do que o de 2016, portanto abaixo do teto permitido pela regra do crescimento pela inflação de 2016. Mesmo assim, como a receita crescerá lentamente, se vier logo a crescer, a dívida pública imposta pelo deficit perdurará ascendendo por bom tempo ainda, com a indesejável companhia dos escorchantes juros devidos aos credores.

O esquadriamento das duas premissas cruciais ao bom funcionamento do congelamento do deficit -- o "bota aqui - tira de lá" para não aumentar o total dos gastos, e o aumento da receita -- foi deixado para depois (sic). O caos da saúde pública exige recursos muito superiores ao piso obrigatório. Idem, o péssimo nível da educação pública fundamental e média. Para compensar, tirar dinheiro da infraestrutura? da segurança? dos programas sociais? contingenciar repasses a estados e municípios? Do lado da receita, o crescimento econômico é incerto e de retorno lento em arrecadação. O combate à sonegação de impostos fraqueja. Cadê a contribuição dos ricos?! Esclarecer, esclarecer é preciso e não está sendo feito.

Para amainar a dívida pública (e os juros), é necessário ir mais além, isto é, reduzir os gastos. O governo está de olho em três coisas: (1) tornar a previdência social superavitária, algum dia; (2) arrocho imediato (seletivo?) dos vencimentos do funcionalismo público; e (3) correção abaixo da inflação de seus encargos e obrigações. Ora, medidas de tamanha impopularidade impõem um governo altamente crível. Pois credibilidade é o que faz cruelmente falta ao governo Temer, operações anticorrupção do Ministério Público que o digam.

Então, para onde olho, vejo escuro. Ruim, mas é assim que penso.


*- Sem considerar os juros da divida pública.
**- Sem contemplar as transferências a estados e municípios.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Os chineses vão às compras



Não se diga que a China é um país comunista: trata-se de capitalismo de Estado, caracterizado por forte presença na economia de empresas estatais e paraestatais. Tampouco ela é uma ditadura à africana ou à sul-americana de algumas décadas atrás: impera um sistema de partido único -- que sói autoproclamar-se comunista -- solidamente representado em todas as instâncias políticas e administrativas. A China é, sim, a mais robusta economia planetária, em plena fase imperialista: eis o tema do artigo.

Com o arrefecimento de seu crescimento interno, e com mais de três trilhões de dólares de reservas, dá-se a lógica a China sair ao estrangeiro para fazer escoar essa maré de dólares, como afirma Luiz Augusto de Castro Neves, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China. Nesse contexto, muito interessa conceder a palavra a alguns dos países que estão sendo 'comprados' pela China, a começar pelas potências Estados Unidos e Alemanha.

Estados Unidos. "Fabricado nos Estados Unidos" começa a cair de moda; agora é "Fabricado pela China ... nos Estados Unidos". Hoje em dia, mais de 90 mil trabalhadores norte-americanos o são de empresas chinesas. A vasta Bolsa de Cereais de Chicago pertence ao grupo Chongqing Casin Enterprise Group (é bem verdade que a vultosa aquisição ainda depende de aprovação do governo norte-americano). O setor imobiliário é cada vez mais controlado por fundos de investimento chineses. Infiltração chinesa para minar o rival norte-americano? Não existe tal temor por parte do governo norte-americano: segundo seus porta-vozes, o que os chineses querem mesmo é investir em sua economia aberta e estável.

Alemanha. Kuka (robótica), uma das finas flores da indústria alemã, vem de ser comprada por 4,6 bilhões de euros pela holding chinesa Midea (eletrodomésticos). "Ao menor passo em falso, Kuka será pivô de um grande escândalo político", estampou um dos veículos mais influentes da imprensa escrita germânica, incomodado -- assim como amplos setores do país -- com a aquisição. Os burocratas da União Européia em Bruxelas vão na mesma linha. Também pudera: Kuka é uma empresa inovadora por excelência, com um efetivo de 12.600 profissionais especializados. Saliente-se que os chineses não miram somente as grandes empresas alemãs: eles estão igualmente de olho nas "campeãs discretas" (pequenas e médias empresas).

Reino Unido. Projeto e construção de uma central nuclear, sua operação e venda da energia. Vivas controvérsias no Reino Unido, em razão da forte presença chinesa no estratégico setor energético.

Grécia. O país, falido e exangue, saúda entusiasticamente a chegada a todo vapor dos chineses. O emblemático e abarrotado de História porto do Pireu agora pertence ao gigante chinês Cosco; integralmente, incluindo todo o negócio turístico. Ademais, nada sobra: telecomunicações, aeroportos, ferrovias, e Alibaba, o colosso do comércio eletrônico. Atenas se vê introduzir uma Chinatown, onde a influente comunidade local edita seu próprio jornal em língua chinesa.

África. A China posa outrossim de assistencialista no continente africano, subdesenvolvimento e miséria obrigam. A ajuda se compõe de donativos, empréstimos sem juros, e de numerosos programas de formação de mão de obra. Altruísmo à parte, os negócios abundam. Fabricação de telefones na Argélia. Um parque industrial e residencial na região de Tanger, Marrocos. A China é o principal parceiro de negócios da África do Sul, o país mais importante da África. Por fim, não faltam as velhas práticas do colonialismo ocidental: exploração a baixo custo de recursos naturais do continente para revendê-los no mercado internacional, com grande margem de lucro.

México. Petroquímica e metalurgia são os focos das aquisições chinesas no México. As críticas de cabeças pensantes mexicanas à 'invasão' chinesa são alarmantes: os investidores chineses priorizam engenheiros chineses, operários chineses e insumos chineses; o que conduz ao desemprego e à desindustrialização nativa.

Brasil. O setor energético brasileiro, na esteira de sua profunda recessão econômica, atiça o apetite dos conglomerados chineses, que multiplicam suas compras. Os números da pré-falência de nossas empresas energéticas impressionam: perda recente de 67 bilhões de reais por parte das geradoras, transmissoras e distribuidoras de eletricidade; como se não bastasse, os grandes investidores nacionais do setor -- Petrobras, Eletrobras, Camargo Corrêa, Odebrecht, OAS e Queiroz Galvão -- estão ferrados pela operação anti-corrupção Lava Jato. Porteira aberta aos chineses, sem rivais no mundo em envergadura financeira.

O centro do poder mundial se inclina inexoravelmente para o Oriente, com a China, a Índia e o Japão. Ancorando-se nos ensinamentos da História, não há nada de surpreendente nisso. Quem sabe, daqui a mais ou menos uma centena de anos seria a vez do Brasil e da América do Sul? Supondo que o planetinha terá sobrevivido.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Saudade



Meu carinhoso primo [Almir] Junior criou um grupo WhatsApp -- Amigos -- reunindo parentes maternos, alguns dos quais não via faz bem mais de cinquenta anos. Tirante as novas gerações, que desconhecia inteiramente. Ao rolar a apresentação de familiares de todos os graus, dei-me conta de que estava contagiado de saudade. Saudade de quem? De quê? Minha percepção de saudade é antes estética que sentimental. Também pudera: arrancado de minha cidade natal, Icó, ainda na tenra idade, eis que me deparei com um agressivo ambiente de colégio interno, longe da solidariedade da família. Fortes motivos para desenraizar-me precocemente. De modo que só consigo falar de saudade de forma meio abstrata, ou com literatura em apoio.

O que é saudade? Os estrangeiros fora do mundo lusófono desistem de entendê-la. Não é melancolia, nem tédio, nem nostalgia, e muito menos tristeza. Etimologicamente, é uma palavra portuguesa, com pitadas de castelhano e de catalão. No Brasil, ela se livrou de alguns mistérios, ganhou outros. A saudade de Fortaleza não é a mesma da de Lisboa. Dir-se-ia que cada brasileiro pensa a saudade de seu jeito. Citem-se a respeito apenas três notáveis brasileiros. A escritora Clarice Lispector dizia: "Ah, quando eu morrer sentirei saudade de mim". E Tom Jobim musicou um poema de Vinícius de Moraes, "Chega de Saudade".

No que me concerne -- que petulância! ladear Clarice Lispector, Tom e Vinícius --, acho que uma das mais belas definições de saudade é esta: "Um retorno ao futuro". Não me lembro de quem.

Os portugueses, quanto a eles, não conseguem dissociar saudade de uma velada amargura. A cantora de fado Amália Rodrigues: "A saudade é um espinho amargo e doce". O poeta Fernando Pessoa: "A saudade é a poesia do fado".

Qual é minha saudade do Icó? Quase não vivi lá. Meu périplo, por ordem: Cajazeiras-PB (internato), Fortaleza, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Campina Grande, Montpellier-França, Campina Grande e Fortaleza. Em todo esse período de andarilho e sobretudo após as mortes prematuras de meus pais, poucas e rápidas passagens pela cidade. Resta-me o conforto de saber que a Icó de agora está muito mais bonita do que a Icó de minha infância, aos bons cuidados do Patrimônio Histórico. E isso é muita coisa! A imagem abaixo dá uma ideia da beleza da cidade.


Icó: Teatro Municipal, Sobrado do Barão e Igreja do Bonfim.

Literatura à parte, eu queria mesmo era sentir saudade.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

A Era do Antropoceno



Os geólogos batem o martelo: nosso planeta sofre uma inaudita catástrofe ecológica. Mais precisamente, a Terra está à mercê de uma agressão sem paralelo no tempo geológico, provocada pela 'civilização' humana.

O gênero humano nasceu e se transforma desde mais de cinco milhões de anos. Esse vasto período é dividido em eras geológicas, como mostrado na tabela a seguir.
Os valores da coluna Início são aproximações. Por exemplo, a era do Plioceno começou há aproximadamente cinco milhões e trezentos mil anos e terminou faz um milhão e oitocentos mil anos, quando iniciou-se a era do Plistoceno. A era do Antropoceno, ressaltada em vermelho forte, se encontra em seus albores: a partir de 1950 ou há infinitesimais sessenta e seis anos na escala geológica.

As eras geológicas são definidas por constâncias específicas, com alcance planetário. Elas deixam seus rastros em partes as mais diversas. Para ilustrar, os gelos eternos da Groenlândia são verdadeiros arquivos geológicos, cada era representada por uma nítida camada, em ordem descendente de antiguidade do fundo para a superfície. Considere-se a extinção dos dinossauros, há mais de sessenta milhões de anos, muito antes portanto do Plioceno (ver a Tabela). A camada de gelo da era dos dinossauros, por demais abaixo da do Plioceno, assinala uma forte presença de irídio, um metal encontrável no mundo inteiro, originado de um meteorito que colidiu com a Terra à época. Ressalte-se que as camadas ainda mais inferiores não registram a presença de irídio.

No que diz respeito ao Antropoceno, o gelo dos depósitos de neve a partir de 1950 acusam elementos radioativos provenientes de explosões de bombas nucleares, ejetados primeiro na atmosfera e depois trazidos à Terra. Isso por si só distingue a camada do Antropoceno da anterior, Holoceno (ver a Tabela). Outros sinais abundam em ritmo explosivo. Tudo agora é perversamente alucinante: formidável aumento das emissões de dióxido de carbono; elevação rápida do nível dos oceanos; extinção maciça de espécies animais e vegetais; e esterilização dos solos pelo desflorestamento desenfreado. Poluição dos cursos d'água e dos oceanos, transformados de forma vertiginosa em depósitos de plástico, alumínio e outros materiais não biodegradáveis; altos níveis de azoto e de fosfatos nos solos, provenientes de adubos químicos utilizados desregradamente. A Terra se ruboriza de calor por efeito da concentração velozmente crescente de gases estufa na atmosfera. Até quando os gelos da Groenlândia?!

Em suma, a Terra muda com tal rapidez, desde 1950, que o jovem Holoceno já cedeu lugar ao Antropoceno. A pane do sistema terrestre é a característica do Antropoceno.

Os negacionistas do Antropoceno -- entre eles, o notório Donald Trump -- argumentam que seria muito cedo para admitir uma nova era geológica. Entretanto, um especialista honesto redarguirá: as alterações em curso são irreversíveis. O ser humano destrói, em míseros anos, o que a metamorfose natural levaria milhares ou milhões de anos para fazê-lo.

O termo antropoceno é do ano 2000, e foi criado pelo holandês Paul Crutzen, prêmio Nobel de química de 1995. Em 2011, ele proclamou: "A transição do Holoceno para o Antropoceno faz sublinhar a enorme responsabilidade da Humanidade em sua condição de guardiã da Terra."

Paul Crutzen teria incorrido em demasiado otimismo. Parece assustadoramente perene a máxima do escritor clássico Jonathan Swift ("As Viagens de Gulliver"), que viveu de 1667 a 1745: "O ser humano é basicamente irracional, com apenas alguns lampejos de racionalidade." Nós não merecemos nosso lindo e acolhedor planetinha Terra.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Ascensão e Declínio do Lulopetismo



Não faz muito tempo, era 2009, a conceituada revista inglesa The Economist estampava um laudatório do Brasil: apesar da crise mundial, "O Brasil decola"; pano de fundo, o Cristo Redentor arrancando do Corcovado como se fosse um foguete, rumo ao seleto grupo dos países desenvolvidos. O futuro parecia enfim chegar ao "país do futuro", expressão dos idos de 1941 do escritor austríaco Stefan Zweig.

Em 2016, a realidade brasileira é toda outra. O país se encontra em profunda recessão econômica e moral, desde o segundo trimestre de 2014. Como as expectativas do Brasil puderam mudar assim tão rapidamente? Para tentar responder, é mister recuar no tempo.

Em 1994, o governo do presidente Itamar Franco lançou, sob a batuta do então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso (FHC), o chamado Plano Real, que ensejou derrubar a hiperinflação reinante. Seguiram-se os governos FHC (1995 - 2002), que puseram em prática várias outras medidas importantes: reforma do sistema de aposentadoria dos funcionários públicos; programa de ajuda às famílias carentes com filhos na escola; e lei da responsabilidade fiscal, para arrefecer o rombo das contas públicas. Se, por um lado, o período FHC se caracteriza por baixas taxas de crescimento em meio a turbulências internacionais, por outro lado as desigualdades sociais começam a declinar pela primeira vez em trinta anos.

Luiz Inácio Lula da Silva -- Lula --, em seus mandatos de 2003 a 2010, estendeu as reformas de FHC: Bolsa Família, Farmácia Popular, Pronatec, Fundeb, Fies. Sorte de Lula, o cenário internacional lhe foi extremamente favorável até 2009, com poupança externa sobrando a rodo. Balança comercial altamente superavitária e liquidação da dívida para com o FMI. O real valorizado. Pela primeira vez em cinquenta anos o Brasil conhecia simultaneamente crescimento econômico e redução da pobreza e das desigualdades. No auge do entusiasmo e da popularidade, diante da crise que ressurgia feroz nos Estados Unidos já em 2008, Lula brincava que apenas marolas do tsunami econômico-financeiro norte-americano atingiriam o Brasil.

Infelizmente, Lula estava profundamente equivocado. No campo estritamente econômico, a poupança interna se voltara para o consumo em detrimento de investimentos em infraestrutura e em produtividade empresarial. As exportações se basearam quase que exclusivamente em matérias primas (commodities), altamente valorizadas à época, porém de histórica volatilidade de preço. Importações maciças de manufaturados. Até que a crise econômica mundial avassalou, abalando fatalmente a tripla consumo-commodities-importação. As consequências deletérias não se fizeram demorar em demasia.

Em 2011, chega ao poder Dilma Rousseff, sem nenhuma experiência política, ungida por obra e graça de Lula, em flagrante abuso de popularidade. Logo veio a mostrar-se amadora também na gestão da coisa pública, ignorando até à esquizofrenia a falência do tripé econômico lulista. Em sua reeleição de 2014, Dilma dissimulou a deterioração da situação orçamentária. O estelionato eleitoral se escancarou: o país iludido se viu, como que de repente, em recessão profunda. Desemprego. Benefícios sociais restringidos ou ameaçados. Inflação. Com quase total reprovação popular, e constatada sua irresponsabilidade fiscal, Dilma foi apeada prematuramente do poder, por deliberação de mais de dois terços da Câmara dos Deputados e mais de dois terços do Senado.

Quanto a Lula, seu declínio assume tons mais dramáticos. O queremismo lhe poupara de condenação em um dos dois magnos escândalos de corrupção de seu governo, o Mensalão; de lambuja, propiciou-lhe a reeleição. Eis que se revela, já em pleno governo Dilma Rousseff, o segundo maremoto, o Petrolão. Não teve mais jeito. Lula agora enfrenta a lei. Seja como réu seja como investigado, os vários processos de corrupção lhe atormentam o sono. A perspectiva de prisão lhe ronda os passos. Abrigar-se sob o manto da popularidade não mais seria antídoto: embora permaneça o político com o melhor índice de aceitação nas pesquisas, amarga no entanto mais de 50% de rejeição. O PT definha. É duro.

Duas reflexões, para terminar. A primeira, o Brasil precisa de reformas institucionais profundas. Uma das mais delicadas concerne ao sistema político. Com quase trinta partidos no Congresso, torna-se extremamente difícil governar. Campo fértil para a corrupção dos governos e dos políticos, como tem sido mais do que espantosamente demonstrado. Lamentavelmente, há poucas razões de ser otimista e de acreditar que esses problemas serão tratados com a seriedade e profundidade devidas. Impossível mesmo, com este Congresso manchado. Uma absolutamente prioritária Assembléia Constituinte da Reforma Política, eleita diretamente, não acontecerá senão por via de grandes manifestações populares pró-constituinte, que infelizmente não estão à vista.

Segunda reflexão. É certo que o PT tem sido muito bom para Lula, mas o inverso dificilmente é verdadeiro. O personalismo de Lula e a 'adoração' a ele por parte dos militantes passionais tiveram o efeito de inibir a geração de novas lideranças políticas, condição indispensável à própria sobrevivência do partido. Mas não, o projeto político de Lula é Lula e pronto, ao PT restando o papel de caudatário. Existe (em declínio) o lulopetismo, não existe o PT.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O Mal-Estar da Civilização Norte-americana



Os Estados Unidos vivem uma escalada de tensões sociais que espanta o mundo. Como que se iguala à China em intolerância. As duas icônicas imagens abaixo exibem um paralelo aterrador.
À esquerda, Baton Rouge - USA, 2016: uma consciente enfermeira norte-americana encara, olhos nos olhos, policiais em pé de guerra que terminarão por prendê-la; seu 'crime', participar de uma manifestação de movimentos negros contra a violência policial de tintura racista. À direita, Pequim - China, 1989: um estudante chinês põe-se, com altivez, diante dos tanques mortíferos do exército que ameaçam varrê-lo; seu 'crime', participar de uma manifestação pela democracia.

Violências raciais escancaradas. Xenofobia. Bolsões de pobreza nas grandes cidades, onde quase não há esperança de promoção social. Empobrecimento das classes médias. Obsessão maldita da população por armas de fogo. Sistema político carcomido por financiamento de candidatos ligados a poderosos grupos de interesse que não estão nem aí para os deixados-por-conta. O diretor da revista Foreign Policy, David Rothkopf, é contundente em artigo do último 14 de julho: "Como exigir de outro país maior atenção aos direitos civis quando nosso próprio país desrespeita seu povo?" É como se o resto do mundo reclamasse: "Quem sois vós para nos julgar?".

O candidato presidencial republicano Donald Trump, em ascensão para ganhar as eleições, simboliza "O Americano Feio" (The Ugly American) para a imprensa internacional. Um perigo para o mundo. Nem é preciso recorrer à opinião externa aos Estados Unidos. Segundo o respeitado jornal The New York Times, Trump é "um irresponsável", e que "truculento, não suporta nenhuma crítica pessoal". E mais, Trump "não tem nem a personalidade, nem os valores, nem a experiência para ser presidente". Dando a palavra de novo a David Rothkopf, "Trump é um bufão racista, xenófobo, misógino e despótico".

Que a imperiosa crítica a Trump não seja tomada por acolhimento à candidata democrata Hillary Clinton. Ela é a 'queridinha' dos financistas de Wall Street: sua campanha arrecada muitíssimo mais do que a de Donald Trump. Sinal de que as possantes confrarias anti-populares continuarão a ter vida fácil sob um governo Clinton.

Diante de tal quadro, o legado de Barack Obama não se prenuncia virtuoso. É bem verdade que ele tem se posicionado de maneira eloquente em prol das relações inter-étnicas e do controle das armas de fogo. Os robustos lobbies, de diversos tipos, lhe causam desconforto. Contudo, é fato que esses problemas só pioraram em seu governo. Num mundo que muito tem necessidade de mudanças profundas, a começar pelos Estados Unidos, faltou a Obama sobretudo coragem e determinação, estima o hebdomadário italiano Internazionale: "Em seus dois mandatos, ele preferiu deliberadamente evitar o conflito". Lamentável, em se tratando do primeiro presidente negro, e que por isso mesmo despertara tantas esperanças.

Os Estados Unidos se mantêm firmes como o grande centro planetário de inovação tecnológica e como os mais fortes disseminadores de cultura de massa. Sua supremacia nos domínios da finança e da Internet é incontestável. O maior arsenal bélico. Mas os tempos políticos não lhes são mais tão favoráveis. Os agudos problemas internos dos Estados Unidos corroem seu papel de "líder do mundo". Em consequência, outros países emergem, politicamente fortes. A multi-polarização é bem-vinda!

sábado, 3 de setembro de 2016

Democracia



Dediquei horas a assistir às sessões da Comissão Senatorial do Impeachment da Presidente Dilma Rousseff (em compensação, as plenárias me cansaram logo). Prestei atenção especial à aguerrida senadora Vanessa Grazziotin (Grazziotin) porque ela é comunista do Partido Comunista do Brasil (PC do B), partido pelo qual militei nos idos de 1966 a 1969. Buscava compreender o que significa ser comunista, hoje. Para minha surpresa, em seu afã quixotesco de tentar salvar o mandato de Dilma, Grazziotin evocava à exaustão e de modo candente respeito à democracia e ao Estado Democrático de Direito, que estariam sendo violados por senadores chamados por ela de golpistas. Surpresa porque suponho que todo comunista é marxista (a recíproca não é verdadeira).  Não que o marxismo seja incompatível com a democracia, muito pelo contrário; a questão é bem outra.

O esforço é grande de explicar democracia marxista em um único parágrafo, mas é preciso e vamos tentar. O cerne da interpretação marxista da História é a luta de classes. A rigor, dois arquétipos de classe com interesses antagônicos: proprietário de meio de produção (patrão) e quem aluga ao patrão sua força de trabalho (assalariado, contemporaneamente). O patrão, se puder, paga menos salário; o assalariado, se puder, ganha mais salário. O corolário desse antagonismo é o relativismo da democracia: democracia dos patrões ou das elites, e democracia dos assalariados ou popular. Uma em oposição à outra. O embate político deveria girar em torno de qual democracia prevalecerá. Por outro lado, seduz admitir a viabilidade de harmonizar as reivindicações das elites com as populares sob a proteção de uma democracia absoluta ou acima das classes; contudo, quem pensa assim definitivamente não é marxista.

Grazziotin é comunista e, portanto, marxista. Qual democracia ela defendia tão ardorosamente, na comissão do impeachment? Em princípio, o dever maior de um comunista é pugnar por uma democracia popular. Entretanto, por apoiar-se em tantos e tantos artigos da constituição vigente, ela sem dúvida abraçava a democracia real, das elites. Desvio ideológico? Não necessariamente. Atente-se para o que diz Marx, nesta passagem de sua obra As lutas de classe na França de 1848 a 1850: "Ao mesmo tempo que sanciona o poder das elites*, a democracia das elites põe limites a esse poder, impondo-lhe condições democráticas que podem contribuir para a vitória das classes que lhe são hostis."  É bem possível que Grazziotin, politizada e culta como se fazia demonstrar, tenha se embasado neste texto de Marx para suas verberações políticas, com o horizonte na vitória das classes populares. Bom que nossos comunistas possam atuar livremente, sob a égide da constituição cidadã de Ulysses Guimarães. Nos tempos ditatoriais de minha militância, o PC do B era terminantemente proibido.

Não vislumbrei a resposta de Grazziotin para minha segunda pergunta: qual seria seu modelo de comunismo? Subentende-se um novo, porque o comunismo russo se apagou e a China deprime quando o quesito é democracia. Um comunismo democrático, pois não?! (Anote-se que o PC do B de meu tempo era ferrenhamente pró-comunismo chinês.) Resta-me ficar de olho em sua nova etapa parlamentar de opositora acérrima do governo Temer, como alardeia. Espero o mesmo fervor democrático e constitucional com que batalhou por Dilma Rousseff e seu governo. E que finalmente Grazziotin revele seu comunismo (democrático?).


*- No texto original, onde aparece "das elites" é "da burguesia". "Elites" é mais abrangente do que "Burguesia", só por isso mudei.
    

domingo, 28 de agosto de 2016

Brejo Santo



Brejo Santo é uma pequena cidade do sudeste do Ceará. À primeira vista, parece-se com tantas e tantas outras da hinterlândia nordestina, às voltas com a sobrevivência. (A propósito, "Seca Excepcional no Ceará" é a calamitosa manchete deste 17 de agosto do jornal OPovo, de Fortaleza.) Mas há uma fulgurância que distingue Brejo Santo das demais cidades, não só do Nordeste como também de todo o Brasil: a excelência de seu ensino fundamental, atestada por aferição do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica -- Ideb -- do Ministério da Educação. O Ideb mede o desempenho em português e matemática dos alunos da rede pública.

A escola de ensino fundamental Maria Leite de Araújo -- modestas cinco salas e cento e oitenta alunos -- fica na zona rural de Brejo Santo. Ela recebeu a nota Ideb 9,6. É a maior do Brasil, cuja média pouco passa da metade, ou 5,2; no âmbito do município de Brejo Santo, a média é 7,2. "Não existe nada de miraculoso para o êxito da escola, basta fazer bem o feijão-com-arroz", assevera a secretária municipal de Educação, Ana Jacqueline Braga. Acompanhamento pedagógico dos alunos; atenção especial aos que se atrasam no aprendizado. Café da manhã e almoço substanciosos. Adequadamente assistidos e nutridos, os alunos tendem a desenvolver ao máximo suas capacidades mentais.

Os alunos da escola Maria Leite de Araújo não aprendem com auxílio de tablets, e antes de 2014 não tinham acesso à internet. Atividades tecnológicas tais como construir robôs, nem pensar, ainda que possam ser coisa simples. De acordo com Maria das Graças Bezerra, diretora da escola, as novas tecnologias não fazem falta ao aprendizado dos alunos. O foco é no conhecimento e na leitura. "Quem interpreta bem um texto consegue aprender e executar a contento qualquer coisa", complementa a diretora. Diariamente e nos intervalos, os alunos vão para a sombra de um grande juazeiro contar histórias e dramatizar contos, com uso de fantoches. Os professores, quanto a eles, são avaliados e promovidos por mérito; os salários estão entre os melhores da categoria no Ceará.

A evasão escolar em Brejo Santo já foi uma das maiores do Brasil. Atualmente, 99% das crianças e adolescentes estão na escola. Os recursos são parcos, porém aproveitados com toda a eficiência: repasses do Fundeb, Fundo de Educação Básica do Governo Federal; 27,5% das receitas do município alocadas à educação; transporte escolar gratuito para os alunos da zona rural; e bolsas assistenciais dos governos federal e estadual para os mais pobres. Agricultores familiares abastecem as escolas públicas, o que garante a qualidade de frutas e verduras no prato dos alunos, além de movimentar a economia local.

Por que inumeráveis municípios com semelhantes carências não conseguem o rendimento escolar de Brejo Santo? A boa resposta vem do próprio Brejo Santo: prioridade da administração municipal à educação; competência e dedicação dos professores e do pessoal administrativo; e lisura no trato do dinheiro público.

Sequer conheço Brejo Santo. Dá-me vontade de ir lá e felicitar a secretária municipal de Educação, a diretora da escola Maria Leite de Araújo, seus professores e alunos. Aprender de viva voz como tirar, de pedra, água puríssima. Bravo, Brejo Santo!

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Olimpíada, Meu Conforto em Primeiro



Não obstante suas imensas mazelas infra-estruturais e de segurança, o Rio de Janeiro é estonteantemente bonito. Emoldurada por esse deslumbrante cenário, a olimpíada Rio-2016 só poderia ser bacana, e está bacana. Milhares de turistas, de todos os cantos, dão vivas à beleza da cidade, e não só à graça das evoluções dos ginastas. Ao ponto de suportar com bom humor as disfunções da urbe e a desorganização da Rio-2016. Tirante, bem entendido, as pessoas riquíssimas, que não abrem mão de exigências extremas de conforto. Para ilustrar, como se hospedam para as olimpíadas?

Hotéis 6 ou 5 estrelas? Nem pensar: muita gente circulando, atendimento demorado, enfim são muito 'populares'. Que tal um espaçoso refúgio à beira-mar ou cercado de montanhas? Custa uma fortuna, mas não importa, é tudo o que os miliardários procuram.

Bairro do Joá, lançando-se das montanhas sobre o mar. Casa ocupando uma área de 8.000 m2, jardins de Burle Marx, isolamento total, só o cantar dos passarinhos, luxuosa: alugada por US$ 40 mil ou cerca de R$ 130 mil ... a diária. Quem alugou? Um magnata árabe.

Jardim Botânico, montanhas e 'selva', Cristo Redentor no alto. Embaixada itinerante do Qatar: um conjunto de seis mansões. A área toda cheira a rosas. Mansão principal: 7.000 m2, sete suítes, escritório suspenso por cabos de aço. Privacidade total. Valor do aluguel não divulgado, mas pode-se especular.

São Conrado, orla de Leblon / Ipanema e Lagoa: outros locais dos sonhos dos estrangeiros. Ambientes decorados com obras de arte, madeira em profusão integrando concreto e natureza. Vistas panorâmicas de tirar o fôlego. Preço mínimo de locação por temporada olímpica: R$ 2 milhões.

As imobiliárias do setor de alto luxo excedem. Disponibilidade de funcionários poliglotas 24 horas por dia. É comum atender a pedidos tais como troca de lençóis no meio da noite, ou ir para a cozinha de madrugada preparar uma lagosta ao termidor. "Poolboys", especialistas em drinques, sempre à disposição. Tudo devidamente cobrado à parte.

Quanto aos milionários (bilionários?) locadores brasileiros, haja grana a receber.

A anotar que os preços estão desinflacionados de 20% em relação à Copa de 2014. Para os potentados, não existe crise, ou então a crise (dos outros) é oportunidade para ganhar e gastar ainda mais dinheiro.

Chega de falar de ricaços. Para os bilhões de pessoas como nós, as estrelas olímpicas em primeiríssimo. Viva a Rio-2016 de Ma Long, Michael Phelps e Simone Biles!

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Desafiando a Fugacidade da Vida



O filósofo existencialista Albert Camus vaticina: o suicídio é a única grande questão filosófica. O que faz alguém ter a coragem de encurtar a vida, quando (quase) todo o mundo sonha em prolongá-la? Ainda que a vida não passe de uma tragédia, na acepção grega. A angústia filosófica de Camus, pois, se justifica.

Vida que queremos vida. Se a morte é inevitável então os conselhos do imperador-filósofo da Roma antiga, Marco Aurélio, amenizam: "A morte nos sorri a todos. Não podemos fazer outra coisa a não ser sorrir para ela." A menos que exista uma outra opção. Será?!

No tempo de Marco Aurélio, a vida média dos romanos era de apenas trinta anos. Mais de dois mil anos decorridos, ela mais que dobrou nos países desenvolvidos: acima de setenta anos. Porém continua pouco, pouquíssimo. Atingirá o dobro, ou mais, ou menos, nos próximos dois mil anos, supondo que a espécie humana resistirá? Impossível antecipar: é desafio dificílimo propiciar saltos de longevidade. Não convém, todavia, subestimar a petulância humana. Uma nova técnica de dar cabo à morte se anuncia: um corpo definhante por doença incurável entraria em hibernação até que aparecesse a cura do mal, quando então ele seria reanimado. A hibernação se repetiria, sempre que ela fosse necessária. Vida estendida ad infinitum, em princípio. Aos detalhes.

Trata-se de criogenia, uma técnica de preservação por congelamento a uma temperatura muito baixa (-196 graus centígrados) e por imersão em azoto líquido. Em março de 2015, Aaron Winborn, 47 anos, encontrava-se à morte, paralisado por uma doença neurológica, o mal de Charcot. A família e um médico se postavam ao redor do leito. Um especialista do Instituto de Criogenia de Detroit - USA aguardava, munido de 14 sacos de gelo de 7,2 kg cada um. Tão logo o médico cortou a respiração artificial, o corpo de Aaron foi colocado em meio aos sacos de gelo e transportado em camionete de Harrisburg até Detroit, 800 km distante. Finalmente, deu-se o congelamento do corpo no azoto, na esperança de que os médicos daqui a cinquenta, cem, quinhentos anos, quem sabe, poderão acordá-lo e curá-lo. Aaron Winborn é o paciente número 132 do Instituto de Criogenia.

Há uma outra empresa dedicada à criogenia nos Estados Unidos, Alcor, de Phoenix. O total de pessoas em estado de criogenia se eleva a 280. Não somente americanas: também alemãs, britânicas, francesas e canadenses. Do mundo inteiro, quase 2.500 pessoas fizeram reserva em uma das duas empresas. Quem são os adeptos da criogenia? Sobretudo homens de formação superior, via de regra naturalistas, ateus ou agnósticos, sem excluir -- surpresa -- algumas pessoas com credo religioso. Todo o processo de criogenia custa 28.000 dólares.

Não tem faltado dinheiro para a pesquisa em criogenia. Milhões de dólares já investidos, inclusive de investidores a risco do Vale do Silício. O mais célebre entusiasta da criogenia se chama Peter Thiel, o miliardário cofundador da empresa PayPal e principal investidor do Facebook.

Aos senões. Eis três. Como restaurar os corpos em maioria encarquilhados de setentões e oitentões? Esperar o elixir da longa vida? É mister aceitar que isso permanecerá no domínio dos contos de fada por numerosíssimas gerações vindouras. Dois: é imperioso não massificar a criogenia; do contrário, resultaria em uma explosão demográfica de dimensões malthusianas. Em terceiro lugar, nada evidencia que a técnica funciona; por outro lado, não é possível provar que ela não funciona.

Alargando os poéticos pensamentos do imperador Marco Aurélio, o que podemos fazer a mais é lutar por vida saudável e durável, com inteligência e humanidade. Mesmo que venha a ser batalha perdida.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Brexit vem do século XVIII


          Meu pai sempre me dizia
          Meu filho tome cuidado
          Quando eu penso no futuro
          Não esqueço o meu passado

                                                         Dança da Solidão, Paulinho da Viola


Brexit -- saída da Grã-Bretanha (Inglaterra, fundamentalmente) da Comunidade Europeia (parte da Europa continental, ou simplesmente Europa) -- é naturalmente tema abundante na imprensa escrita, falada e televisada do Brasil e alhures. Aqui e alhures outrossim, chama a atenção a ignorância, proposital ou não, do passado inglês para uma melhor compreensão do Brexit. Os sábios conselhos de nosso querido compositor/cantor Paulinho da Viola (ver a epígrafe) são solenemente esquecidos. Bem ao contrário do razoável, apresentam a rica, politizada e orgulhosa Inglaterra como se ela fosse um país ingênuo ou à deriva, incapaz de saber o que quer (sic). Em apoio a Paulinho da Viola, e mudando o foco para a diplomacia mundial, diga-se o seguinte: prescrutar como os estadistas lidaram no passado com as crises não significa entendimento completo da política contemporânea, mas pode ajudar bastante.

Examinem-se brevemente as relações da Inglaterra com a Europa em duas fases históricas: séculos XVIII-XIX, e o depois.

No século XVIII, a Inglaterra e a França eram as duas grandes potências. No século XIX, a Inglaterra era a primeira potência. Na vida da Inglaterra como potência mundial, todos os primeiros-ministros ingleses, à exceção de William Gladstone, desprezaram a Europa como parceira confiável. Literalmente. O sacrossanto mandamento da política externa inglesa era: tudo contra uma Europa unida, que poderia voltar-se contra a Inglaterra. Quando os interesses de um aliado circunstancial feriam os da Inglaterra, ela trocava de lado ou fazia aliança com antigos inimigos. Tudo pela raison d'état (direito de Estado). Esplêndido isolamento. A Inglaterra era senhora dos mares e marcava presença firme por quase todo o canto fora da Europa: Mediterrâneo africano oriental, África Oriental, África do Sul, Oriente Médio, sul e sudeste asiáticos. Era o que lhe bastava, e quanto: a Europa pois não passava de estorvo a sua segurança e seu imperialismo. Essa egoísta visão geopolítica lhe valeu o apelido de Pérfida Albion que, com tintas menos carregadas, perdura até hoje. Voltando ao infortunado Gladstone, não por acaso ele foi um primeiro-ministro extremamente contestado e impopular.

Robert Castlereagh foi outro raro diplomata inglês de primeira linha que, como Gladstone, entendeu a importância da Europa. Desalentado com o virar as costas ao continente de seus políticos e de seu povo, disse Castlereagh em sua última entrevista com o rei: " ... é necessário dar adeus à Europa ... ninguém mais além de mim compreende os assuntos do continente". Quatro dias depois, suicidou-se. Um infortunado a mais.

O equilíbrio entre as potências do continente europeu -- França, Rússia, Áustria e Prússia --, cláusula pétrea da politica inglesa para impedir que um país europeu claramente hegemônico ameaçasse a Inglaterra, ruiu com a unificação da Confederação Germânica em volta da Prússia em 1871 -- resultado da derrota da França para a Prússia --, que fez nascer a Alemanha hegemônica. Desabou o equilíbrio de poder na Europa, tão caro à Inglaterra. O primeiro-ministro inglês Benjamim Disraeli foi o primeiro a entender e temer o impacto da unificação germânica: " ... episódio político maior do que a Revolução Francesa ... Não há uma só tradição diplomática que não tenha sido varrida. É um mundo novo: o equilíbrio de poder foi totalmente destruído".

Deu no que deu. Duas horrendas guerras mundiais, desencadeadas pela Alemanha semi absolutista (primeira guerra) e totalitária (segunda).  O planetinha não explodiu pelo espaço porque não havia ainda armas atômicas em massa.

Está-se na segunda metade do século XX. Inglaterra e Europa exangues e cansadas de guerra. Com a Rússia geopoliticamente afastada, o poder mundial deslocou-se todo para fora da Europa: Estados Unidos, China e Rússia são as novas grandes potências militares. Que restaria à Europa senão unir-se em Comunidade Europeia (CE), com a desejável inclusão da Inglaterra? Desde então acompanha-se a infindável crise da CE, fazendo água por todos os lados. Nenhum país membro admite perder sua identidade: corolário da antiga raison d'état, com foco natimorto no equilíbrio econômico. A Alemanha tem sido sempre dominante em capacidade industrial, todavia vê erodir o ideal de união europeia. A França continua forte mas assiste impotente à impulsão interna de poderosas forças anti união. Os países que eram fracos economicamente continuam fracos economicamente, bem mais que antes. A Grécia já quis sair da CE, mas vai se aguentando, sabe-se lá como. A vez de Portugal: ou é perdoado de pesadas multas por não poder cumprir escorchantes metas ficais, ou marcará um plebiscito para cair fora. Ventos pressagos sopram da Itália. CE em grande perigo existencial.

Em tal cenário, a egocêntrica e orgulhosa Inglaterra escolhe deixar a Comunidade Europeia, ela que nunca entrou direito: rejeitou a moeda única e tem sido oposição renitente tanto na comissão como no parlamento europeus. Com todo o seu passado de desdém pela Europa em apoio. No que concerne ao futuro, a Inglaterra é uma potência média e, tudo indica, assim permanecerá. Relações com a CE no pós Brexit? É suficiente responder que a Inglaterra é o quarto maior comprador mundial de produtos alemães. A Alemanha vai querer perder este seu opulento mercado? A raison d'état obriga que não. Em suma, não parece o caso de temer pela Inglaterra, como a imprensa quer fazer acreditar. A Comunidade Europeia, esta sim, que se cuide.

Que lições tirar para o Brasil? Infelizmente, personalidades como Gladstone e Castlereagh, que ambicionavam fazer política externa norteada por princípios éticos (Woodrow Wilson, dos Estados Unidos, é um outro exemplo), foram afundadas por prevalentes imperativos de raison d'état. Bem entendido, a raison d'état não impede que haja prosperidade e paz gerais, ao menos por um tempo, porém compete a cada país conquistar resolutamente seu espaço, ancorado sobretudo nos próprios meios. Qual é a raison d'état do Brasil? Não sei, caro leitor, você sabe?!?


Fonte principal - Diplomacia, Henry Kissinger. Editora Saraiva, 4a. Edição Brasileira, 2015.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Ilogismo da História



O semanário O Pasquim (26/06/1969 - 11/11/1991), sério e sadio jornal humorístico de um dos períodos mais doentes da vida política brasileira, é um marco na história de nossa imprensa escrita. Reuniu uma brilhante equipe de jornalistas e cartunistas: entre outros, Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa, Henfil, Flávio Rangel e Paulo Francis. Palavras de Jaguar, sobre os primórdios do hebdô: "Em pleno Ato Institucional No. 5*, falávamos mal do governo. Só tinha uma explicação: privação coletiva dos sentidos".

Folheando uma antologia d'O Pasquim, deparo-me com um saboroso artigo do também teatrólogo Flávio Rangel -- Ferro na História, No. 61, 08/1970 --, em que ele 'corrige' os compêndios de História, por suposta falta de lógica. Com verve, graça e erudição. Eis um pequeno rol de boutades rangelianas.

O Rubicão era um rio? Melhor contando, teria sido um cassino. César disse lá: "A sorte está lançada" e "Cheguei, vi e venci". Frases típicas de jogador. Ele deve ter ganhado uma nota nos dados, com isso equipou suas legiões, entrou em Roma e tomou o poder.
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Arquimedes dizia: "Deem-me uma alavanca que moverei o mundo". Ninguém deu. Então, como acreditar que a Grécia era um poderoso país à época? Josta de país onde nem sequer existia uma alavanca.
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Parece falácia afirmar que os pontos altos da Renascença pós Medievalismo foram as artes, as ciências e os descobrimentos. Jules Michelet escreveu: "Idade Média: mil anos sem banho". Logo, a invenção mais importante da Renascença foi o sabonete.
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Os ingleses são muito tolos. Pavoneiam-se que a Câmara de Deputados deles se chama House of Lords. Ora, até as crianças sabem que House of Lords é marca de uísque.
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Os historiadores franceses apresentam Napoleão como um grande e sábio homem. Essa nos mata. Era um tremendo grosso. Vivia com a mão direita dentro do colete, quer dizer, cumprimentava as damas com a mão esquerda! Na Rússia, podia-se até perdoar: sentia frio, tinha perdido uma luva, ou outro motivo que o valha. Mas em Paris?!? Grosso, grosso.
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Em assuntos referentes à Igreja, enrolam-nos dizendo que o Papa Leão deteve diante de Roma o terrível guerreiro huno, Átila. A verdade se insinua toda outra. Como ninguém podia com Átila, arranjaram um leão. O leão botou o pavoroso huno para correr. O povo de Roma, agradecido, o transformou em papa. Papa Leão. Elementar.
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Nesse negócio de ciência tem muito idiota. Charles Darwin fez grande sucesso porque afirmou que o homem descende do macaco. Passou a vida inteira estudando macaco, quando tem tanta Jane Fonda por aí.  Acham Einstein um gênio só porque disse que E = MC**2. Balela: E sempre foi igual a E mesmo. E Newton? Ficou lelé da cuca quando uma maçã caiu no cocuruto dele. Maçã, de uma certa altura, lesiona o cérebro.
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Sobre política, então ... . Acusam o marxismo de dissolver a família. Que loucura! Marx proclamava: "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!". Não sugere que desejava todo mundo bem casado? Quem quer dissolver a família é o Sindicato dos Lojistas: inventaram o Dia das Mães em maio e o Dia dos Pais em agosto. Separaram as mães dos pais.
***
Os historiadores perderam de tal modo a vergonha que querem nos fazer crer em entidades que jamais viram a luz. Falam muito de uma ONU, que seria uma Organização das Nações Unidas, e de uma Declaração dos Direitos do Homem, que sabemos que não vai pegar.


*- O ato que institucionalizou a ditadura militar.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Inteligência Artificial


     Eu não posso tornar um computador feliz ao lhe oferecer uma torta de morango.
     Seria uma idiotice. Ele não tem consciência da felicidade. Não há espírito em uma 
     máquina. Não há nada.
                                                                 David Gelernter, cientista da computação


O espírito humano é um sistema eminentemente complexo, misterioso e maravilhoso. Não está ao alcance da compreensão humana, longe, muito longe disso. Embora assim, uma teoria, o computacionalismo, concebe um programa de computador apto a agir como um espírito. Contra o que reage David Gelernter, cientista da computação* e professor de informática da Universidade de Yale - USA: o computacionalismo incorre em um despautério (ver a epígrafe).

O espírito humano não é acionável por um simples toque. Ele se agita, divaga, sonha, preguiça. Sofre alucinações e pesadelos. E, claro, raciocina. Os computadores são capazes de simular, no máximo, o raciocínio. Com imensas limitações, ressalte-se. Da mesma forma que um grande ator interpretando Getúlio Vargas ou Clarice Lispector, por mais perfeita que seja sua interpretação, não se transforma em um ou outro.

Apesar de impregnada de computacionalismo, é impossível desconhecer que a inteligência artificial tem progredido notavelmente. O problema é que ela esbarra em um gap tecnológico, qual seja, o ainda corrente computador clássico de Von Neumann. Porque este é 'apenas' um possante e extraordinariamente eficiente tratador de dados. O processamento de linguagens lógicas ou programação em lógica -- base da inteligência artificial -- não deixa de ser um tipo de cálculo, por efetuação de regras bem definidas no decorrer das diferentes etapas do processamento. Enfim, se é verdade que um computador poderia ter um quociente intelectual mil vezes superior ao de um ser humano, no entanto ele não passaria de um zumbi, filosoficamente falando.

A insurgência de David Galernter é com relação à ambição desmedida e falsa de querer-se alçar a inteligência artificial  à altura de espírito artificial. O espírito artificial é e será, por vastíssimo tempo, uma quimera. Demandaria, primeiro, mudar a cabeça dos cientistas obcecados de computacionalismo. Por exemplo, eles ousam pretender modelar o senso artístico por meio de regras fundadas em processos bioquímicos ou neuropsicológicos, ignorando a incompreensível fenomenologia das sensações. Insistindo nesses enfoques mecanicistas, poderão dar com os burros n'água. Segundo, impõe-se uma máquina dotada de emotividade. Uma arquitetura de computador inteiramente nova para a qual não se tem, em futuro previsível, a menor ideia de como seria. Não é pois questão de achar que David Galernter é um incorrigível pessimista, característica aliás destoante da necessária mente aberta e ousada de um pesquisador.

Atento às emoções difusas,  David Galernter tem Freud em alta conta. Entusiasma-o o Freud observador meticuloso do mais profundo de nosso espírito, por via da análise dos sonhos e dos pensamentos. Faria bem aos computacionalistas interessar-se por Freud como método de trabalho. Tanto mais que ler Freud é extremamente enriquecedor: ele merece figurar na galeria dos grandes dramaturgos e dos grandes escritores.

Do lado de baixo do Equador, nosso poeta e cronista Ferreira Gullar, tal David Galernter, se extasia com o espírito humano:  O espírito é um grande e espantoso mistério. Há gente que enlouquece por não conseguir entendê-lo. Eu, ao contrário, me maravilho: como bicho homem, sou capaz de me encantar vendo a "Noite Ilustrada" de Van Gogh e ouvindo as bachianas de Villa-Lobos.


*- Contribuições maiores: programação paralela e sistema de programação Linda.


Nota à margem - Horror, terror, horror ... . Não há limites geográficos para a insanidade humana: Buenos Aires, Nova Iorque, Orlando, Londres, Bruxelas, Paris, Nice, Madri, Moscou, Istambul, Trípoli, Nairóbi, Beirute, Bagdá, Bombaim, Daca, Cabul, Carachi. Sem falar do horror implícito e cotidiano da miséria extrema. Dá vontade de parar com o blog. Escrever, para quê?!

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Fim dos Medos?!



As crises da psicanálise freudiana e da psiquiatria se explicam simplificadamente da seguinte forma: a psicanálise pode curar nossos males mentais -- nossos medos --, porém ao preço de um tratamento longuíssimo e caríssimo (quem muito pode faz psicanálise a vida inteira, auto-conhecimento é bom); a assistência psiquiátrica pode ser muito menos longa e muito menos cara, mas não cura, só alivia. Não surpreendem pois os intensos esforços de pesquisa científica em busca da cura do medo, de maneira rápida e barata. A psicóloga Merel Kindt, pesquisadora de psicologia clínica da Universidade de Amsterdan - Holanda, vem de desenvolver uma pílula contra o medo: é só tomá-la que o medo passa. Os testes têm sido tão positivos que sua comercialização está a caminho. Que maravilha!

Um exemplo de como a pílula funciona. Em uma certa noite, a pessoa X se deparou com um assaltante armado em seu quarto de dormir: não morreu, contudo se viu 'depenada' de valores materiais. Parecia-lhe impossível voltar à vida normal: X ficava nervosa em presença de gente desconhecida, assustava-se com o menor ruído, não conseguia dormir com o barulho do vento na cortina de seu quarto. Típico estado de estresse pós-traumático. Merel Kindt instou X a reviver a noite da agressão. As angústias de X foram então revividas, de forma intensa. Em meio ao descontrole, Merel Kindt a fez ingerir um comprimido, com um pouco de água. Nesse dia, X dormiu cedo e bem. Ao acordar, relembrou-se daquela noite, entretanto, pela primeira vez, as lembranças não lhe causaram nem sofrimento e nem pânico.

Tudo dentro das boas normas de validação estatística, a pílula de Merel Kindt funcionou bem em centenas de casos de estresse pós-traumático dos mais variados motivos, a ponto de merecer elogios rasgados e encorajadores de grandes nomes da pesquisa em psico-farmacologia. O princípio básico é o seguinte: em uma situação traumática, o cérebro, por meio de uma síntese de proteínas (não me perguntem sobre o que é exatamente isso!), armazena as lembranças para orientar o corpo sobre o comportamento a adotar. A ingestão da pílula em momento de tensão concernente mexe com o modus operandi cerebral: mais precisamente, a síntese original é manipulada, resultando agora em efeitos mais 'brandos' sobre o corpo. A manipulação é chamada de reconsolidação do medo. Palavras de Merel Kindt: O medo é uma emoção que tem uma função adaptativa muito importante.  

Um avanço incrível. Infelizmente, não cobre os medos mais desnorteadores, ou seja, os recalcados no inconsciente. Seja o exemplo do segundo parágrafo: a pessoa X não teve nenhuma dificuldade de se recordar do ladrão em seu quarto de dormir; tais medos objetivos podem ser curados ao ingerir um simples comprimido, Merel Kindt o demonstrou. Já os grandes medos inconscientes -- nossas neuroses -- permanecem à larga, necessitando de (longa) psicanálise para virem à tona e serem curados. Freud sobrevive.

É tempo de ressaltar que numerosos medos objetivos são benéficos a nossa sobrevivência e bem-estar: medo de gente objetivamente mal-intencionada, de covis de assaltantes e criminosos, de atravessar a rua sem a observância dos carros, de animais selvagens e carnívoros, etc., etc., etc. São medos que não devem ser reconsolidados de jeito nenhum, ou que não se tome a pílula de Merel Kindt contra eles.

Vontade de fazer uma saudação. Salve Freud e Merel Kindt!


Fonte -  Courrier International, 23-29 junho/2016.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Furor Evangélico



Até 1970, o Brasil era um país eminentemente católico. Uma parte muito respeitável da Igreja de Roma tomara a defesa dos pobres e desfavorecidos, sob o manto da chamada Teologia da Libertação. Os governantes militares -- Castelo Branco, Costa e Silva e Garrastazu Médici -- detestavam e perseguiam os padres alinhados com a teologia, considerando-os comunistas. Para piorar, eis que João Paulo II iniciava seu papado. Os teólogos da libertação e seus seguidores o irritavam. João Paulo II os atormentava, dispersava e ameaçava.

Em contexto assim tão favorável à desconstrução da igreja dos pobres, começou a grande invasão dos evangélicos, apoiados por seitas norte-americanas. Para atrair os milhões de católicos desiludidos, uma ideia genial: em vez da teologia da pobreza, a teologia da prosperidade. O novo discurso: a pobreza é obra do diabo; o enriquecimento é obra de Deus. Irresistível: a riqueza seria acessível a todos. Atualmente, estima-se que as diferentes igrejas protestantes agrupam mais de 50 milhões de brasileiros.

Os pastores evangélicos são hábeis pregadores e aliciadores. Distribuem a Bíblia: os pobres analfabetos ficam felizes por possuir um livro. Oferecem balas para as crianças. Montam ambulatórios, pequenas escolas. Praticam milagres no 'atacado', com solenidade, gritos, canções e histeria. A televisão é o meio primordial. Dizem que Deus é amor, e que tudo acabará dando certo. Ou então lutam com o diabo, batendo-lhe duro. Bradam o Apocalipse, ao anunciar a batalha final entre o Bem e o Mal, com a vitória do Bem. Advertem, no entanto -- aí é que entra a artimanha --, que ninguém deve se apressar. Pelo contrário, todos devem esperar paciente e alegremente pela salvação, quiçá pela riqueza terrena.

E há o dízimo. Os fieis o pagam com todo o prazer, pontualmente. De dízimo em dízimo, chega-se aos bilhões. Tome-se o exemplo de Edir Macedo, o poderoso chefão da Igreja Universal do Reino de Deus. Ele amealhou uma fortuna de 2 bilhões de dólares. Sua casa de São Paulo (existem outras) tem dezoito suítes. Dono da rede de televisão Record (24 canais), 41 estações de rádio, 2 jornais diários, uma agência imobiliária, 600 veículos, perto de 5 mil templos e 8 milhões de adeptos. Deve dormir tranquilo, dando um jeito de acomodar que seu enriquecimento é obra de Deus. Porém a Justiça desconfia. A acusação lhe é pesada: lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Até hoje, no entanto, Edir Macedo tem se escafedido.

No Congresso Nacional, a Frente Parlamentar Evangélica conta com pelo menos 90 deputados, misturando à saciedade política com religião. Abriga a bancada da bala. Ferozmente conservadora em matéria de costumes, ao menos para consumo externo. Tem sido paparicada pelos governos em princípio laicos, neste nosso debochado presidencialismo de coalizão. O expoente da Frente é Eduardo Cunha, o impuro. Jair Bolsonaro, fervoroso simpatizante da Frente, é homofóbico -- não impede que tenha um fã clube gay: nada espantável, Freud explica --, e potencial estuprador seletivo.

Em geral, as massas cooptadas padecem de ingenuidade e baixo nível de instrução. A visão sobre a mulher que lhes é imposta por algumas das seitas é a de um ser desprezível. As mulheres não devem cortar seus cabelos, pois a honra do marido são os cabelos da mulher. Cristo é a cabeça do homem; ora, o homem é a cabeça da mulher. As mulheres devem se vestir de maneira decente; que sua indumentária, modesta e reservada, não seja feita de cabelos trançados, de ouro, de pedras e de roupas suntuosas. Durante uma instrução, a mulher deve permanecer em silêncio, em toda submissão. Não é permitido à mulher ensinar e fazer a lei do homem. Adão foi feito primeiro, Eva em segundo; e não foi Adão que se deixou seduzir, foi Eva.

Constata-se que as igrejas evangélicas prosperam com ainda mais facilidade na imensidão da Amazônia. Essa floresta delirante nos faz sentir simultaneamente no inferno e no paraíso. Euclides da Cunha lhe dedica esta alegoria: "A Amazônia é a última página do Gênesis que está por ser escrita".