quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A Exceção Cultural Francesa (Final)


Astérix, Escola Privada, Declínio Triunfante?


Atrevo-me a esboçar uma arqueologia mínima do espírito rebelde francês. Remontaria à Gália Romana (província do Império Romano que corresponde hoje à França e mais Bélgica e Itália Setentrional). Os gauleses eram uma continuada pedra no sapato dos césares -- Júlio César que o diga! (Justiça se faça: a Judéia, parte do Israel atual, resistiu a Roma o quanto pôde, até ser esterilizada por ela.)

Astérix é o herói ficcional emblemático desta Gália insubmissa. Em nossos dias, o mito desperta ao menos duas reações bem distintas. Para a extrema-direita lepenista, Astérix é o símbolo da resistência dos valores franceses às influências estrangeiras. Do ângulo da maioria restante, Astérix é um arauto da tolerância e da solidariedade face a toda ideia intencionalmente hegemônica. Em definitivo, eu prefiro esta última compreensão de Astérix.

Duas observações, para finalizar o assunto Astérix. A impecável revista em quadrinhos das aventuras do herói e de seus companheiros já vendeu 300 milhões de exemplares por todo o mundo, em 57 idiomas: seus leitores vão de crianças a adultos. A segunda observação é para relaxar de tão anedótica. A cadeia de fast foods McDonald´s, com certeza sem outra intenção que a de agradar, lançou uma propaganda com a turma de Astérix comendo hambúrguer e batata frita. Choveram atitudes indignadas contra o que foi considerado insulto a um patrimônio nacional. Minhas simpatias à McDonald´s.

O sistema educacional francês é um dos pilares dos valores republicanos: laico, público e gratuito em todos os níveis. O que talvez pouca gente saiba é que empresas privadas passam a exercer também um papel importante no sistema, de forma mais efetiva do que na maioria dos outros países. (Minha fonte: o hebdomadário The Economist, de Londres, em edição de maio de 2013, citando a OCDE -- Organização da Cooperação e do Desenvolvimento Econômicos.) Quero lhes falar da escola de programação de computadores École 42, em construção, a qual é financiada por um grupo de poderosos empresários ligados ao ramo da informática. Ela é gratuita e seus diplomas não serão reconhecidos pelo Estado, mas faz ruído, como reconhece o diário francês de referência Le Monde. Dois chamarizes do maior interesse: primeiro, seu alvo são jovens talentos dos subúrbios ("banlieues") que de alguma forma não se adequam aos moldes do sistema educativo estatal; segundo, os métodos de ensino privilegiarão a autonomia e a criatividade. Enfim, um sopro de ar fresco nas diretrizes oficiais, as quais, segundo críticos eminentes, são fundadas na disciplina, em detrimento da inovação.

Muito papel e voz já foram gastos sobre o propalado declínio da civilização francesa. Eu diria que ele é muito relativo, ou que é um declínio triunfante (bela expressão, sem maldade, por um colunista do jornal londrino Financial Times). O forte da questão é: a França é o que ela é porque assim é a vontade da maioria dos franceses. Os franceses sabem que os tempos são difíceis e ameaçadores, e que eles carregam o enorme peso do Estado. Mas gozam longas férias, uma boa assistência social e uma aposentadoria precoce. Eles protestariam para se assegurar que nada de fundamental mude.

Epílogo


É possível que alguns de meus mui respeitáveis leitores venham a achar um tanto exagerado três postagens seguidas sobre a França. Confesso que, no fundo, quis render homenagem ao país onde vivi estimulantes quatro anos, de 1991 a 1995 (fora outras andanças posteriores por lá). Em minha opinião, a França proporciona a melhor qualidade de vida do mundo, além de ser um dos países mais belos. Não é pouco!  


O 'blogueiro' entra em férias. Deseja aos queridos leitores muita confraternização neste final de ano, e um 2015 com ainda mais compreensão e conhecimento. Até 15 de janeiro de 2015!

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

A Exceção Cultural Francesa (II)



Trago ao frontispício do blog os comentários a respeito da exceção francesa de meus queridos amigos Jacques Sauvé e Stéphane Turc, por ordem de submissão. São ricos de detalhes e, em parte, divergentes. Por cobrir outros importantes aspectos do tema -- um exemplo: livrarias também fecham na França, como enfatizado pelos dois --,  concluo que os ditos comentários não devem ficar confinados à segunda página, para onde possivelmente nem todos vão. Não comento os comentários: que os caros leitores tirem suas próprias conclusões. (Quanto a Astérix e demais assuntos anunciados para a postagem desta semana, eles podem esperar.)
   

Os Comentários de Jacques Sauvé

De fato, a França é exceção na cultura. Sempre admirei ouvir um francês falar sua língua: eles não erram, não massacram a língua como se vê, por exemplo, em Québec (e no Brasil, claro). O francês parece se orgulhar de falar bem. Só vi a língua francesa massacrada na França ao ler os contos normandos de Guy de Maupassant; e, de quebra, descobri de onde vêm muitas expressões usadas em Québec! Leia este conto, por exemplo: http://goo.gl/SE5Oq5 (Le lapin).

Sobre o fechamento de livrarias, me parece haver um erro de avaliação de sua parte. Você compara o agregado (várias livrarias fechando em Nova York) com um caso particular (Delamain), como se o caso francês indicasse uma situação fundamentalmente diferente. Sugiro a leitura dos seguintes artigos:
     http://goo.gl/WRxXlu (Tandis que les librairies ferment en France ...)
     http://goo.gl/ciHxzg (Des librairies de plus en plus fragiles)
     http://goo.gl/cVulw1 (Faut-il laisser mourir les librairies ?)

As livrarias só parecem sobreviver com ajuda do estado -- o que confirma sua tese sobre a importância da cultura na França.

Eu não estou preocupado com a morte da livrarias: o livro não está morrendo, muito pelo contrário, pois a oferta cresce com novos processos de negócio (Merci, Amazon!). Se está em formato digital ou em cadáveres de árvores pouco me importa. Navegar numa livraria digital é muito, muito prazeroso. Uma enorme vantagem da livraria digital é que você recebe recomendações e pode examinar a opinião de quem gostou de um livro e de quem não gostou. Há várias outras vantagens já mencionadas num post anterior. Aqui mais uma: Marcus, tu peux même visiter les librairies françaises en ligne!

Termino citando o autor (ex dono de livraria) de um dos artigos citados: "Sans réflexion globale sur les librairies et sur la forme que nous leur connaissons aujourd’hui, celles-ci sont condamnées à disparaître. Ce n’est pas une prophétie. Juste un constat amer."

Pour moi, ce n'est même pas amer.

Os Comentários de Stéphane Turc

Uma precisão para seus leitores sobre a proteção do livro na França. Existe uma lei, a lei Lang, ministro da cultura de François Mitterand, que impõe um preço oficial para cada livro. Só um desconto de 5% é permitido. Assim a Amazon vende os livros somente 5% mais baratos do que numa livraria de rua. Aliás, como Jacques comentou, essa lei não impede a baixa regular do número de livrarias na França.

Voltando aos comentários do Jacques, não concordo com a visão dele sobre o papel benéfico da “mão invisível do mercado” na produção e distribuição de bens culturais. Seguinte o liberalismo econômico, o desaparecimento por causa de não competitividade dum produtor de mercadoria, pode ser visto como coisa positiva para o mercado em geral.

Ao contrário, não vejo positivo per se o fato que produtores de bens culturais não podem sobreviver porque existem outros produtores mais competitivos. O resultado é um empobrecimento da oferta e por consequência da cultura própria. Existem vários exemplos no passado: o cinema italiano, que era um dos maiores cinemas mundiais há décadas atrás, que está quase morrendo por causa da concorrência com o cinema norte-americano e a televisão local. Na França, existe uma lei que impõe a cadeias de televisão (principalmente Canal +) de financiar a produção de filmes. A simples aplicação lei do mercado teria provocado o fim da indústria cinematográfica francesa. Isso é também verdadeiro para os meios de distribuição, com o perigo até maior de seleção das obras distribuídas. O monopólio da Amazon foi o centro duma polemica há pouco tempo. Por causa de desacordo com editoras sobre o preço dos livros digitais, eles recusaram de distribuir algumas editoras, cujo era a francesa Hachette.

Não quero que seja a Amazon quem decidir o que posso ler e o que não posso ler, como a Apple decide o que pode ser instalado em seus celulares. Acho que os poderes públicos devem ter uma responsabilidade na organização da produção e distribuição das obras culturais. E não deixar isso ao mercado. E responsabilidade democrática de assegurar diversidade na produção e acesso facilitado aos bens culturais, dum jeito o mais independente possível das condições econômicas.

Uma vantagem das livrarias de rua é o conselho personalizado do livreiro (que honestamente não aproveito). O Jacques falou das opiniões dos leitores sobre a Amazon. Eu faria a comparação numa área que é mais uma exceção francesa a gastronomia. Você sabe a paixão francesa por nossos restaurantes, que podem ser considerados como lugares culturais. Aqui também temos o Tripadvisor, onde clientes podem deixar notações sobre os restaurantes. Se esses avisos podem ser uteis, nunca prevalecerão para mim os avisos dos críticos profissionais do respeitado Guide Michelin !

Para terminar sobre uma nota positiva (ta vendo Marcus !), a Internet faz que agora qualquer um pode publicar suas obras literárias ou musicais, o que acho é uma première na História. Isso deve contribuir a riqueza e diversidade da oferta cultural. A condição que os meios de distribuição sejam abertos, honestos e democráticos.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A Exceção Cultural Francesa



A exceção cultural francesa não é uma abstração mas uma política concreta de Estado. Ela é consistente com o sentimento vigoroso entre os cidadãos de que a cultura é um bem a ser preservado, cabendo ao governo protegê-la e promovê-la com energia. Nenhuma tendência política ousaria pôr em xeque esta compreensão. Como símbolo ostentatório e definitivo da importância da cultura, as personalidades culturais mais eminentes tiveram e terão uma sepultura grandiosa, o Panteão de Paris.

Proteger não é se fechar para o mundo. Nada disso: a França é abertíssima ao mundo. De outro modo, sua exceção não despertaria interesse, só opróbrio. A globalização deve ser percebida como interação intensa entre as nações, em todos os domínios da vida, porém sem a antropofagia das culturas nacionais. Nada mais atentatório ao espírito humano do que a mesmice do pensamento único.

A questão que se coloca é: por que só a França -- e com menor intensidade a Alemanha, a Escandinávia e os Países Baixos -- se protegem? Dois exemplos contrastantes ajudam a responder.

Deu no jornal norte-americano The New York Times que Manhattan é hoje um deserto de livrarias. O diário londrino The Guardian constata que em torno de 500 livrarias fecharam as portas no Reino Unido, desde 2005. As causas principais são (1) as livrarias virtuais com suas políticas agressivas de custo baixo em toda a cadeia produtiva do livro -- a Amazon é um exemplo acabado -- e (2) o livro digital. Qual tem sido em geral a reação do público norte-americano e do inglês diante de seus cemitérios de livrarias? Indiferença! Estão satisfeitos com os preços cada vez mais acessíveis dos livros impressos e com a transportabilidade dos livros digitais. Para a grande maioria, uma livraria é uma casa de comércio como outra qualquer. Desapareceu? Procura-se outra forma. Não podemos censurar.

Muda o cenário: estamos na França. A livraria Librairie Delamain,  a mais antiga de Paris, existe desde 1700 na suntuosa rua Rue du Faubourg de Saint-Honoré Ícones da vida cultural francesa como Michel Foucault, Colette e Jean Cocteau eram "habitués" desta venerada instituição. Ela vive plena de leitores que se deleitam com folhear livros raros, comprar livros não facilmente encontráveis em catálogos, ou que simplesmente adoram ler e livraria. Infelizmente e apesar de vender sempre muito bem, a Delamain sofre para honrar o caríssimo aluguel do imóvel, o qual atualmente pertence a um fundo de investimentos do Qatar.

Como em Nova Iorque e Londres, os preços de imóveis em Paris e na Côte d'Azur atingem valores siderais  Motivados pelo magnetismo da capital e da Riviera francesas, magnatas provenientes dos Estados Unidos, da Rússia e do Oriente Médio invadem o setor imobiliário só para especular. Poucos habitam no local. Este é bem o caso do imóvel ocupado pela Delamain.

Conta a jornalista Victoria Baean, em artigo para o número de setembro próximo passado do mensário norte-americano The Atlantic Monthly, que em qualquer país do mundo, salvo a França, a Delamain pereceria.  Na França, sua extinção seria um escândalo sem tamanho. As mídias francesas reverberam que é inaceitável que uma de suas joias culturais dependa de um fundo de investimento vindo do Oriente Médio para sobreviver.

Felizmente, não há sinais de que a Delamain vá ceder seu lugar.  Como livraria independente, ela recebe uma subvenção do Centro Nacional do Livro e do Ministério da Cultura. É de se prever que ela suportará o escorchante aluguel: o resto é com o leitor refinado, que certamente não lhe faltará. Insisto: a ameaça que paira sobre a Delamain se deve exclusivamente a encargos; a falta de clientes, a Amazon e o livro digital não têm nada a ver.      

Já pressinto meu amigo Stéphane sentenciar algo como "Marcus, o francês de hoje lê pouco e já não é exigente". Digo apenas que Stéphane, como todo bom francês, é um pessimista incorrigível.

*** Na sequência: Astérix, Escola Privada e Declínio Triunfante? ***