sexta-feira, 27 de maio de 2016

Repetir-se



A sobressaltada vida política nacional agora é sacudida pelos grampos das conversas entre figurões da cúpula do PMDB -- o partido do governo interino de Michel Temer --, empenhados até a tampa em "estancar a sangria" da Operação Lava Jato, a qual desnuda a corrupção atroz de políticos do PP, do PMDB e do PT, e de altos empresários, ao longo dos governos petistas de Lula e Dilma Rousseff. (É sempre bom lembrar que Dilma e Lula não podem posar só de assistentes das bandalheiras de sua 'base aliada': foram denunciados por tentativa de obstruir a Justiça.) Acrescentem-se insinuações inquietantes de envolvimento de parte do Supremo Tribunal Federal "no pacto anti Lava Jato" .

Minha reação instintiva foi rever a premonitória postagem Michel Fabrizio Temer, de 14/04/2016. Verifico, outrossim, que o artigo atraiu pouca atenção de meus leitores. Por quê? Não sei! Répétition oblige, decido republicá-lo. Procedimento excepcional, garanto.


   Michel Fabrizio Temer    


Abra-se uma exceção à cláusula pétrea "não copiar - colar" deste blog (Primeira Postagem, 11/09/2014) para reproduzir um trecho do artigo definitivo do jornalista Elio Gaspari, A fala do trono de Temer FSP 13/04/2016. No artigo, Elio Gaspari expõe com todas as tintas o cheiro forte de tramoia da elite oligárquica, visando a apropriar-se da gestão da profunda crise brasileira para operar não mais do que um simulacro de solução da mesma. A oligarquia do mantra "mudar para não mudar" que o romancista italiano Tomasi di Lampedusa coloca na boca de seu personagem Dom Fabrizio, o príncipe siciliano do célebre romance O Leopardo (Il Gattopardo). Michel (Temer) e Fabrizio na prática se fundem em Michel Fabrizio.

Aspas para Elio Gaspari, a propósito do discurso de posse presuntiva do vice-presidente Michel Temer. "Corrupção. Faltou não só a palavra, faltou qualquer referência ao tema. Pode ter sido esquecimento, o que não é pouca coisa, pois nesse caso Michel Temer seria o único brasileiro capaz de falar durante 14 minutos sobre a crise política, pedindo um governo de 'salvação nacional', sem quaisquer referências às iniciativas que feriram a oligarquia política e econômica brasileira. Uma coisa é o destino da doutora Dilma. Bem outra são a Lava Jato e subsidiárias que estão encurralando oligarcas. É insultuoso supor que uma pessoa queira defenestrar a doutora e o PT para travar a Lava Jato, mas quem quer freá-la pode achar que uma troca é uma boa ideia. É necessário reconhecer que a cena do deputado Eduardo Cunha e do senador Romero Jucá de mãos dadas e braços erguidos comemorando o rompimento do PMDB com o Planalto mostra para onde vão os interesses de uma banda da oligarquia. Se houvesse qualquer referência ao combate à corrupção no seu discurso de posse presuntiva, Temer mostraria coragem e disposição de incomodar correligionários. Esqueceu-se, tudo bem, mas não deve pedir aos ouvintes que não percebam. Como se sabe desde que a palavra impeachment entrou no vocabulário político, tirar Dilma é uma coisa, quem botar no lugar é outra". Preocupante, terrivelmente preocupante.

A Folha de São Paulo, em editorial na primeira página da edição de 03/04/2016, revela seu incômodo com o prosseguimento do mandato esfacelado de Dilma Rousseff. Tampouco tranquiliza-se com sua substituição pelo vice Michel Temer, como se buscasse Elio Gaspari em apoio. Roga que Dilma e Temer façam o gesto nobre de renunciar, e que a população seja convocada a participar de nova eleição presidencial, no prazo de 90  dias.

Em minha postagem O Tempo e o Tempo do Brasil de 18/03/2016, vou bem além: renúncia igualmente de todos os congressistas, e convocação de eleições gerais. Eleições precedidas por uma profunda reforma política, via assembléia constituinte específica. Vá lá que tudo isso durasse mais de 90 dias, porém não haveria por que ser muito mais. Um sonho distante, certo, mas que mereceria ser alardeado à exaustão.

Só o clamor consciente e propositivo das ruas poderá impulsionar as imperiosas reformas civilizatórias de que o Brasil tão urgentemente necessita. Queiram ou não as elites. Mudar para mudar!

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Israel

     Israel é a única nação do Ocidente que mantém outro povo sob ocupação. 
     Por outro lado, Israel é a única nação do Ocidente cuja existência está ameaçada.
                                                                                       Ari Shavit, jornalista israelense


O inefável cantor-compositor Dorival Caymmi gostava de repetir: "Acontece que eu sou baiano". Apraz-me dizer: acontece que são todos judeus meus grandes intelectuais Marx, Freud, Einstein, Hannah Arendt, Isaiah Berlin e Raymond Aron; e acontece que meus melhores amigos do tempo em que morava em São Paulo são todos de origem judaica. Razões suficientes para nutrir um pendor emocional por Israel ameaçado, ao mesmo tempo que cheíssimo de desconfianças para com Israel conquistador (ver a epígrafe).

O mal original de Israel: milhares e milhares de palestinos foram expulsos da antiga Palestina pelo Palmach, o exército de ocupação sionista. Limpeza étnica, ponto final. O mal de origem não se afigura expiável. Desde sua fundação em 1948, Israel ocupante jamais teve paz.

O território inicial conquistado se expandiu com a bem posterior anexação do reduto palestino da Cisjordânia, e com o cerco ao amontoado palestino conhecido por Faixa de Gaza. Muito ódio palestino. Tensão máxima, permanente. A existência ameaçada de Israel, frente à qual seu poderio militar se reduz à impotência, é o enorme preço a pagar. O jornalista Ari Shavit, em livro recente*, narra com riqueza de detalhes e muita emoção o viver acossado em um Israel ao mesmo tempo triunfante e trágico.

Israel é um país avançado, com uma pujante e diversificada economia high tech. Educação de alta qualidade e pleno emprego. Este é o triunfo de Israel. Não é suficiente, porém, para que o país possa ter vida normal, por força de grilhões tanto externos quanto internos.

Israel é um Estado judeu em um mundo árabe, um Estado ocidental em um mundo islâmico, e uma democracia em meio a regimes autocráticos ou autoritários. Latente estado de guerra de civilizações. Como se não bastasse, o país se encontra politicamente debilitado, à mercê de invencíveis disputas internas. Os colonos judeus emigrados da Europa e dos Estados Unidos se insurgem contra a disciplina e a moderação política; os pacifistas bradam contra a criação de novas colônias nos territórios ocupados; os liberais têm ojeriza ao Estado todo-poderoso; judeus orientais contra a dominação ocidental; ultraortodoxos contra o secularismo; individualistas contra o sufocante coletivismo sionista; israelenses palestinos (sim, eles existem) contra o nacionalismo judaico. O mal-estar é profundo. Os partidos políticos não têm propostas abrangentes para enfrentar os enormes e complexos desafios que se apresentam; curto e grosso, os políticos não se salvam da mediocridade. Nos dizeres de Ari Shavit, em sua sétima década Israel é um Estado-nação bem menos sólido do que era quando tinha dez anos de existência.  

Viver em um país de prontidão militar ininterrupta: não enlouquecer é preciso. Refiramos-nos apenas aos jovens soldados. Nas noites de sábado, eles ocupam a eletrizante capital, Tel Aviv. Nada de bebida alcoólica: só água e laranja. Mesmo assim, entram em frenesi nas pistas de dança das boates de todas as cores, da meia-noite até às seis da manhã. E quando a noitada termina, eles correm para os veículos militares que os esperam para levá-los de volta ao Líbano, aos territórios ocupados da Cisjordânia, aos arredores de Gaza ou ao quinto dos infernos. Meninos soldados que se despedem das namoradas, vestem seus uniformes e partem sem a certeza de estar vivo no sábado seguinte: é de amargar. E o que se passaria em sua psique? Ainda que ótimos soldados na acepção militar, eles estão é de saco cheio do papo furado das natimortas negociações de paz, da política, dos ataques terroristas, dos fanáticos religiosos, dos territórios ocupados e do serviço militar. (As meninas soldados de Israel existem e são numerosas: vale para elas o que foi dito sobre os meninos.)

Meninas e meninos de Israel, meninas e meninos palestinos, vocês são a derradeira esperança de paz genuína entre israelenses e palestinos.


*- Minha Terra Prometida -- O Triunfo e a Tragédia de Israel, Ari Shavit, Editora Três Estrelas, 2016.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Freud



Sigmund Freud (06/05/1856 - 23/09/1939), Pai da Psicanálise, é uma das mentes gigantes da Humanidade. Decorridos quase 80 anos de sua morte, a psicanálise continua viva através da prática de numerosos profissionais de saúde mental, os psicanalistas freudianos. Tão vigorosas também, as metáforas mitológicas empregadas na construção da teoria psicanalítica têm regalado e propiciado ainda mais luxuosidade à grande literatura. Pari passu, todo o sistema de Freud tem sido foco de um intenso e rico debate revisionista, o que não deixa de ser muito natural e salutar. O espectro das discussões é amplo. Dediquemos atenção a duas correntes de crítica: (1) o negativismo face ao autor e sua obra e (2) o inventário do que é perene e do que é descartável no edifício freudiano.

O historiador inglês Paul Johnson adotou como método examinar primeiro a vida íntima das personalidades históricas que ele retratou em seu livro, Os Intelectuais. Moralista desumano que é (qual o seu quinhão de hipocrisia?) e desconfiado dos intelectuais, ele não encontra dificuldade para ver em seus biografados sinais de 'personalidade pervertida', a fim de chegar aonde queria: que os legados deles, intelectuais, são obrigatoriamente 'perversos'. Opinião de Paul Johnson, claro. Tudo de maneira brilhante, reconheça-se. Faz escola.

A psicanálise, sendo uma doutrina sobre o papel proeminente da sexualidade -- desde a tenra infância -- na formação da personalidade, é passível de assustar. O que dizem da vida privada de Freud seus pesquisadores à Paul Johnson? Um burguês libidinoso, frequentador de bordéis, punheteiro (pois é, até a masturbação), incestuoso (teria engravidado a cunhada). Mesmo que sem prova nenhuma, botaram na cabeça que Freud era uma espécie de Dona Bela "Só pensa naquilo!", do grande humorista Chico Anysio. Daí a vislumbrar a psicanálise com olhos enviesados é só um passo. Entretanto, em se tratando de ilustres críticos, o discurso anti Freud é muito mais rebuscado. Por exemplo, o espanhol Javier Sampedro, doutor em genética e biologia molecular e inclinado ao cientificismo, assinala que a teoria psicanalítica não tem base científica: não é um modelo que possa ser provado correto ou falso por observação ou experimentação. Convém-lhe pois ignorar que a prática psicanalítica, bem sucedida em tantos casos, basta para atestar a validade -- sem rigor formal -- da doutrina.

Passemos à outra corrente de crítica, pontuada pela reputada especialista francesa em psicanálise, Élisabeth Roudinesco. Ela também acha imprescindível saber como havia sido a vida particular de Freud. O que lhe parece fora de dúvidas: ateu, mas de forte cultura judaica; nem puritano e nem libertário: acreditava que as pessoas deveriam controlar suas pulsões sexuais; no plano político, um conservador. Freud não era um homem sedutor e tampouco tinha suficiente ímpeto sexual, palavras de Élisabeth Roudinesco. Prossigamos com ela.

Mentor de uma revolução libertária e que conduziu à modernidade, Freud era um incoerente? Como todo ser humano, ele errou muito e enfrentou mil contradições, porém conseguiu criar uma doutrina "a meio caminho entre o saber racional e o pensamento selvagem, entre a medicina da alma e a técnica da confissão". Um século atrás, um perturbado mental era enfiado em um sanatório, entupido de remédios e tratado como um louco. Hoje, o mandamento da psicanálise é: "Cuide de si mesmo. Não deixe que o tratem como um sujeito que consome medicamentos passivamente". Quem não é capaz de verbalizar sua história pessoal está condenado à estupidez.

Não impede de reconhecer que a psicanálise precisa mudar para sobreviver. Tem que se transformar. Não é mais aceitável deitar-se em um divã três vezes por semana durante até vinte anos (sic). Custos caríssimos em tempo e dinheiro. Ao contrário, deve apostar em tratamentos bem mais curtos e ao alcance financeiro de uma ampla gama de pessoas. A interação psicanalista - paciente deve se dar cara a cara. Abaixo o divã anônimo! Ademais, inteligência e cultura permanecem requisitos sine qua non à boa formação de um psicanalista.

Concedamos a palavra final a Élisabeth Roudinesco: Freud nos tornou heróis de nossas vidas.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Sobre pesquisa científica e pesquisadores



Existem variados perfis de pesquisadores. Interessam-me sobretudo aqueles que valorizam mais a beleza da ciência do que propriamente suas aplicações. Eles se maravilham com novidades de qualquer natureza ou de domínios do conhecimento que não são necessariamente os seus. Eis meu pesquisador, e espero que também seja o de meus leitores.

Um prêmio Nobel de física nos conta esta história de sua infância. Ele morava às margens do mar Negro e tinha o hábito de passear de barco ladeado por golfinhos. Um belo dia, e só neste belíssimo dia, alguns dos golfinhos se encostaram longamente no barco e se deixaram acariciar por ele. Como, tratando-se afinal de contas de animais selvagens?! Esta novidade tão forte, tão inacreditável, tão bonita o impactou pelo resto da vida. Ele não se tornou pesquisador de golfinhos, mas é pesquisador graças a eles.

Outro pesquisador dos meus declara que o ato de pesquisar é como brincar de Sherlock Holmes, o brilhante detetive da imaginação do escritor Arthur Conan Doyle. Fazer descobertas antes que outros as façam. O que acontecerá se eu jogar água sobre um ímã? As propriedades da água vão se modificar devido à presença de um campo magnético mais intenso do que aquele em condições normais? A perfeita aderência das patas das lagartixas muito ajudaria a conceber materiais perfeitamente aderentes. Quais propriedades teria uma peça muito delgada de grafite (grafeno)? São interrogações bem distintas: nenhuma delas faz parte da especialidade do pesquisador. Tudo isso para ressaltar como é importante não ficar confinado a uma especialidade. Ser observador astuto e livre, antes de mais nada. Propor bem é tão importante quanto fazer bem.

No que diz respeito a aplicações de resultados da pesquisa, impõe-se paciência. Trinta, quarenta anos, um século às vezes, antes de encontrar aplicações úteis de um novo material. O alumínio aguardou quarenta anos: dispunha-se desse material leve e sólido, mas não se sabia como utilizá-lo. Finalmente, apareceram aplicações verdadeiramente revolucionárias, por exemplo as aeronaves. Já o grafeno se encontra à espera de suas aplicações revolucionárias.

OK, que maravilha!, mas que pena!, a dura realidade da vida trama contra a sagrada liberdade de meu pesquisador. Constata-se que, em particular em grandes grupos econômicos, a inovação sofre duplamente, quer por enfoques ultra pragmáticos e imediatistas quer por exiguidade de aporte financeiro. O sistema sócio-econômico tem forçado muitas empresas a suprimir suas atividades de pesquisa e desenvolvimento. O mantra são os dividendos, a rentabilidade de hoje. Danem-se as inovações e os pesquisadores.

As universidades, quanto a elas, deveriam parar de formar doutores com mentalidade de funcionário. Os orientadores precisam incentivar seus doutorandos a assumir riscos, a empreender. Martelar-lhes sem tergiversação algo assim: "Agora que você se doutorou, decida entre o desemprego (ou bico em universidades inexpressivas em inovação) e a criação de sua empresa inovadora, podendo contar neste caso com meu apoio logístico". Claro, só a segunda alternativa é a extremamente desejável. Nesta linha, os Estados Unidos parecem levar nítida vantagem sobre a Europa e demais continentes, por força de uma cultura empreendedora fortemente enraizada lá, e vacilante cá.

À guisa de rápido balanço de minha vida de doutor em informática, reconheço-me principalmente na condição de funcionário. Talvez não pudesse ter sido de outro modo, porém não é para servir de desculpa.