sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Quatro Anos em Montpellier



Refletindo sobre qualidade de vida, eis que Montpellier ressurge em meus pensamentos. Cidade do sudeste da França, às margens do Mediterrâneo de intenso azul (belo como o mar da Bahia). Trezentos mil habitantes na sede, seiscentos mil com o entorno. Lá vivi estimulantes quatro anos, entre 1991 e 1995, culminando com minha tese de doutorado em informática, outorgada pela Universidade de Montpellier II - Ciência e Tecnologia.

Segundo polo universitário da França, vai uma pequena galeria de estudantes famosos, ao longo de sua vida acadêmica quase milenar: Auguste Comte (Positivismo), Rabelais ("Ciência sem consciência não é senão ruína da alma"), Nostradamus (Apocalipse), Jean Moulin (herói da resistência francesa à ocupação nazista), Paul Valéry ("Nem sempre sou de minha opinião") e Enver Hoxha (dirigente comunista albanês). Sessenta mil universitários, dos quais dez mil estrangeiros sobretudo do Magrebe (Marrocos, Argélia e Tunísia), da África Negra (Costa do Marfim, Gabão, Guiné, Mali, Mauritânia e Senegal) e da Europa nórdica (suecos e alemães). Uns cinquenta brasileiros: Bar Brasil, feijoadas em parques, carnaval na zona rural (Lei do Silêncio obriga). On se sent bien à Montpellier*, reconhecem todos. Como nada é perfeito, os brasileiros fazem uma grave reclamação: o feijão preto, comprado em lojas de produtos 'exóticos', torna-se esbranquiçado após o cozimento -- feijão Michael Jackson, nossa verve não perdoa!

Minhas duas maiores emoções, nos primeiros momentos, reportam-se a queridas semelhanças com nosso Nordeste. A vegetação típica, la garrigue, de uma parte da região Languedoc-Roussillon (Montpellier é a capital) parece nossa caatinga: arbustos ralos, paisagem áspera e seca. Aqui e acolá, escarpas e picos majestosos. Adicionado o conforto -- estradas ótimas, graciosas habitações e às vezes convidativos casarões no estilo provençal -- mas --, restaurantes requintados que nada devem aos da cidade, limpeza --, então tudo fica ainda muito mais bonito. E há o cassoulet, ah o cassoulet! Pois não é que é igualzinho a nossa mui apreciada dobradinha? Sem faltar o almoço no templo do cassoulet, o château Saint-Martin, na cidade medieval de Carcassonne.

Montpellier. (1) Transporte público excelente: ônibus numerosos, limpos, amplos e novos; VLTs; só passageiros sentados em todo o sistema; auto-serviço de pagamento; pontualíssimos (Fiz o teste, repetidas vezes. Chegava em uma estação momentos antes do horário exibido: sem furar, o ônibus / VLT aparecia. E sempre tinha uma cadeira vazia, dada a profusão do transporte.) Aos indolentes, que insistem em ir de carro ao Centro, as garagens subterrâneas, onipresentes e amplas; proibido estacionar na superfície da maioria das ruas centrais. (2) Educação pública de qualidade em todos os níveis. Obrigatória até aos dezesseis anos. Horário integral nos níveis fundamental e médio. As multidões de crianças e muito jovens só invadem as praças e parques nas folgas: quartas e sábados à tarde e domingos. As escolas privadas são 'castigo' aos renitentemente mal-avaliados nas escolas públicas. (3) A cidade é aconchegante. Arborização inusitada: ciprestes esculturais, oliveiras, tamareiras, limoeiros e palmeiras. O Jardin des Plantes: tesouros da flora mediterrânea. A cultura do bistrot (café): inumeráveis e regurgitando de jovens. Trinta e quatro cinemas; os cinemas de arte Diagonal. Teatro-Ópera. (4) A cidade é bela. O Centro Histórico, reservado aos pedestres, é magnífico, abrindo-se para a Praça da Comédia e a Esplanada Charles de Gaulle. O parque La Promenade du Peyrou. O imponente aqueduto de 1754. Cidade laboratório de arquitetos e paisagistas internacionais: Hôtel de Ville (prefeitura departamental); Quartier Antigone (conjunto habitacional); Liceu de Artes e Ofícios; Préfecture (prefeitura regional); Esplanada da Europa; jardins das margens do rio Lez.

E não falei de vinho**. Nem precisa.

Duas notas, à guisa de conclusão. A regra de ouro da urbanização à francesa: o novo não destrói o velho. Mais precisamente, as fachadas das edificações antigas devem ser conservadas, enquanto que seus interiores podem ser reformados. Nada de demolição. Ganham a cidade e os visitantes. Entrar em Montpellier (ou em outra cidade média ou grande) é um excitante passeio no tempo, desde a periferia futurista -- com os arranha-céus de linhas arrojadas, as grandes lojas e os super-mercados -- até o centro histórico. O centro distingue as cidades; morar nele é o objeto de desejo ... de quem pode.

A qualidade de vida das cidades francesas se apoia em três pilares interdependentes: leis; meios para cumprir as leis; cidadania. As leis de trânsito são duríssimas e o julgamento de infrações é sumário: um amigo perdeu a carteira de motorista por três meses, por atravessar um sinal vermelho; ai de quem invadir as faixas exclusivas de ônibus (principalmente por isso os ônibus são pontuais). Montpellier é limpa, sem prescindir de lixeiras e advertências em todo lugar. Quem não achar lugar para seu carro em rua do centro, sabe que encontrá-lo-á em uma das numerosas e imensas garagens subterrâneas. Nada disso porém seria suficiente sem educação cidadã, traduzida em respeito ao bem público. Cidadania é a maior conquista dos povos em avançado estágio civilizatório.

O Brasil deveria concentrar todos os seus esforços em dar condições de fazer valer as leis e em promover a cidadania. Eu costumo me dizer: "Brasil, tão longe e tão perto da França". Faz-lhe sentido?!

*- "A gente se sente bem em Montpellier".
**- O Languedoc produz bons vinhos artesanais. Não é privilégio exclusivo de Bordeaux e Bourgogne.

9 comentários:

  1. Você sabia que, no Brasil, a matrícula na escola é obrigatória até os 17 anos? Cumprir a lei é outra coisa. Ter escola de qualidade também.

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    1. O caro programa de equipar as escolas públicas foi sabotado por desleixo na conservação dos equipamentos doados e por vandalismo. O problema crucial da falta de educação cívica.

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    2. Caro amigo Marcus,

      Em meio a questionários, seminários de pesquisas e viagens de trem e num momento de pausa nos estudos aqui na "Bibliothèque Nationale de France", li atrasadamente o seu texto sobre Montpellier. Um primor. Me faz repetir a pergunta: por que no Brasil é tão dificil copiar/adaptar de forma criativa o que funciona em outras latitudes ? Cartas para a redação. Abraço forte, CM

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    3. Caro Cláudio,
      Seja sempre bem-vindo!
      Um grande abraço.

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  2. Caro Marcus,
    Lendo sua descrição de Montpellier, a cidade parece um antegosto do paraíso!
    Infelizmente, a cidade e sua região tem alguns problemas econômicos e sociais: mais de 14 % de desemprego (cerca de 10% no pais), uma qualidade do ensino público em declino nos estabelecimentos da periferia, uma criminalidade (principalmente prejuízo aos bens, roubos e assaltos) bem superiora à média nacional (e claramente longe dos números no Brasil).
    Embora, é claramente uma cidade onde muitos querem morar. E uma cidade onde gostávamos de viver. A nostalgia de nossos anos universitários embelece também nossa memória dessa época. Para fazer um paralelo com tuas experiências, temos igualmente uma excelente lembrança da nossa estadia no Brasil.
    Hoje Montpellier cresceu muito, com mais problemas de engarrafamentos, um litoral mais urbanizado e outras dificuldades já mencionadas. Não sei se gostaríamos de retornar morar lá. O risco seria de perceber que não somente a cidade evolui, mas que não somos mais os estudantes da época!

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    1. Caro Stéphane,
      A necessidade de preservar o que é bom nos faz cada vez mais nostálgicos. Como você diz muito bem, a cidade não tem evoluído como gostaríamos.
      No mais, adorei todo seu belo e muito enriquecedor comentário.
      Um grande abraço.

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  3. Grande Marcus,
    Parabéns por mais esse excelente artigo. É realmente lamentável, o fato de que o Brasil continua cada vez mais indo em direção oposta ao que está acontecendo na Europa e em outros Países desenvolvidos. Não vou entrar em detalhes, mas fique certo, que bastaria um pouquinho de vergonha na cara dos políticos, para o Brasil ingressar na relação dos Países mais ricos e promissores do mundo.
    Ao ler as suas recordações, me lembrei de Dortmund e Bremen na Alemanha, onde morei dois anos. As diferenças entre essas cidades e Montpellier devem ser muito poucas, o que provocou em mim muitas saudades... E a cerveja e o vinho alemães também são EXCELENTES!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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  4. Boa noite
    Pode me falar sobre as escolas privadas? Porque castigo?
    Obrigada

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