sexta-feira, 29 de julho de 2016

Brexit vem do século XVIII


          Meu pai sempre me dizia
          Meu filho tome cuidado
          Quando eu penso no futuro
          Não esqueço o meu passado

                                                         Dança da Solidão, Paulinho da Viola


Brexit -- saída da Grã-Bretanha (Inglaterra, fundamentalmente) da Comunidade Europeia (parte da Europa continental, ou simplesmente Europa) -- é naturalmente tema abundante na imprensa escrita, falada e televisada do Brasil e alhures. Aqui e alhures outrossim, chama a atenção a ignorância, proposital ou não, do passado inglês para uma melhor compreensão do Brexit. Os sábios conselhos de nosso querido compositor/cantor Paulinho da Viola (ver a epígrafe) são solenemente esquecidos. Bem ao contrário do razoável, apresentam a rica, politizada e orgulhosa Inglaterra como se ela fosse um país ingênuo ou à deriva, incapaz de saber o que quer (sic). Em apoio a Paulinho da Viola, e mudando o foco para a diplomacia mundial, diga-se o seguinte: prescrutar como os estadistas lidaram no passado com as crises não significa entendimento completo da política contemporânea, mas pode ajudar bastante.

Examinem-se brevemente as relações da Inglaterra com a Europa em duas fases históricas: séculos XVIII-XIX, e o depois.

No século XVIII, a Inglaterra e a França eram as duas grandes potências. No século XIX, a Inglaterra era a primeira potência. Na vida da Inglaterra como potência mundial, todos os primeiros-ministros ingleses, à exceção de William Gladstone, desprezaram a Europa como parceira confiável. Literalmente. O sacrossanto mandamento da política externa inglesa era: tudo contra uma Europa unida, que poderia voltar-se contra a Inglaterra. Quando os interesses de um aliado circunstancial feriam os da Inglaterra, ela trocava de lado ou fazia aliança com antigos inimigos. Tudo pela raison d'état (direito de Estado). Esplêndido isolamento. A Inglaterra era senhora dos mares e marcava presença firme por quase todo o canto fora da Europa: Mediterrâneo africano oriental, África Oriental, África do Sul, Oriente Médio, sul e sudeste asiáticos. Era o que lhe bastava, e quanto: a Europa pois não passava de estorvo a sua segurança e seu imperialismo. Essa egoísta visão geopolítica lhe valeu o apelido de Pérfida Albion que, com tintas menos carregadas, perdura até hoje. Voltando ao infortunado Gladstone, não por acaso ele foi um primeiro-ministro extremamente contestado e impopular.

Robert Castlereagh foi outro raro diplomata inglês de primeira linha que, como Gladstone, entendeu a importância da Europa. Desalentado com o virar as costas ao continente de seus políticos e de seu povo, disse Castlereagh em sua última entrevista com o rei: " ... é necessário dar adeus à Europa ... ninguém mais além de mim compreende os assuntos do continente". Quatro dias depois, suicidou-se. Um infortunado a mais.

O equilíbrio entre as potências do continente europeu -- França, Rússia, Áustria e Prússia --, cláusula pétrea da politica inglesa para impedir que um país europeu claramente hegemônico ameaçasse a Inglaterra, ruiu com a unificação da Confederação Germânica em volta da Prússia em 1871 -- resultado da derrota da França para a Prússia --, que fez nascer a Alemanha hegemônica. Desabou o equilíbrio de poder na Europa, tão caro à Inglaterra. O primeiro-ministro inglês Benjamim Disraeli foi o primeiro a entender e temer o impacto da unificação germânica: " ... episódio político maior do que a Revolução Francesa ... Não há uma só tradição diplomática que não tenha sido varrida. É um mundo novo: o equilíbrio de poder foi totalmente destruído".

Deu no que deu. Duas horrendas guerras mundiais, desencadeadas pela Alemanha semi absolutista (primeira guerra) e totalitária (segunda).  O planetinha não explodiu pelo espaço porque não havia ainda armas atômicas em massa.

Está-se na segunda metade do século XX. Inglaterra e Europa exangues e cansadas de guerra. Com a Rússia geopoliticamente afastada, o poder mundial deslocou-se todo para fora da Europa: Estados Unidos, China e Rússia são as novas grandes potências militares. Que restaria à Europa senão unir-se em Comunidade Europeia (CE), com a desejável inclusão da Inglaterra? Desde então acompanha-se a infindável crise da CE, fazendo água por todos os lados. Nenhum país membro admite perder sua identidade: corolário da antiga raison d'état, com foco natimorto no equilíbrio econômico. A Alemanha tem sido sempre dominante em capacidade industrial, todavia vê erodir o ideal de união europeia. A França continua forte mas assiste impotente à impulsão interna de poderosas forças anti união. Os países que eram fracos economicamente continuam fracos economicamente, bem mais que antes. A Grécia já quis sair da CE, mas vai se aguentando, sabe-se lá como. A vez de Portugal: ou é perdoado de pesadas multas por não poder cumprir escorchantes metas ficais, ou marcará um plebiscito para cair fora. Ventos pressagos sopram da Itália. CE em grande perigo existencial.

Em tal cenário, a egocêntrica e orgulhosa Inglaterra escolhe deixar a Comunidade Europeia, ela que nunca entrou direito: rejeitou a moeda única e tem sido oposição renitente tanto na comissão como no parlamento europeus. Com todo o seu passado de desdém pela Europa em apoio. No que concerne ao futuro, a Inglaterra é uma potência média e, tudo indica, assim permanecerá. Relações com a CE no pós Brexit? É suficiente responder que a Inglaterra é o quarto maior comprador mundial de produtos alemães. A Alemanha vai querer perder este seu opulento mercado? A raison d'état obriga que não. Em suma, não parece o caso de temer pela Inglaterra, como a imprensa quer fazer acreditar. A Comunidade Europeia, esta sim, que se cuide.

Que lições tirar para o Brasil? Infelizmente, personalidades como Gladstone e Castlereagh, que ambicionavam fazer política externa norteada por princípios éticos (Woodrow Wilson, dos Estados Unidos, é um outro exemplo), foram afundadas por prevalentes imperativos de raison d'état. Bem entendido, a raison d'état não impede que haja prosperidade e paz gerais, ao menos por um tempo, porém compete a cada país conquistar resolutamente seu espaço, ancorado sobretudo nos próprios meios. Qual é a raison d'état do Brasil? Não sei, caro leitor, você sabe?!?


Fonte principal - Diplomacia, Henry Kissinger. Editora Saraiva, 4a. Edição Brasileira, 2015.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Ilogismo da História



O semanário O Pasquim (26/06/1969 - 11/11/1991), sério e sadio jornal humorístico de um dos períodos mais doentes da vida política brasileira, é um marco na história de nossa imprensa escrita. Reuniu uma brilhante equipe de jornalistas e cartunistas: entre outros, Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa, Henfil, Flávio Rangel e Paulo Francis. Palavras de Jaguar, sobre os primórdios do hebdô: "Em pleno Ato Institucional No. 5*, falávamos mal do governo. Só tinha uma explicação: privação coletiva dos sentidos".

Folheando uma antologia d'O Pasquim, deparo-me com um saboroso artigo do também teatrólogo Flávio Rangel -- Ferro na História, No. 61, 08/1970 --, em que ele 'corrige' os compêndios de História, por suposta falta de lógica. Com verve, graça e erudição. Eis um pequeno rol de boutades rangelianas.

O Rubicão era um rio? Melhor contando, teria sido um cassino. César disse lá: "A sorte está lançada" e "Cheguei, vi e venci". Frases típicas de jogador. Ele deve ter ganhado uma nota nos dados, com isso equipou suas legiões, entrou em Roma e tomou o poder.
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Arquimedes dizia: "Deem-me uma alavanca que moverei o mundo". Ninguém deu. Então, como acreditar que a Grécia era um poderoso país à época? Josta de país onde nem sequer existia uma alavanca.
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Parece falácia afirmar que os pontos altos da Renascença pós Medievalismo foram as artes, as ciências e os descobrimentos. Jules Michelet escreveu: "Idade Média: mil anos sem banho". Logo, a invenção mais importante da Renascença foi o sabonete.
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Os ingleses são muito tolos. Pavoneiam-se que a Câmara de Deputados deles se chama House of Lords. Ora, até as crianças sabem que House of Lords é marca de uísque.
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Os historiadores franceses apresentam Napoleão como um grande e sábio homem. Essa nos mata. Era um tremendo grosso. Vivia com a mão direita dentro do colete, quer dizer, cumprimentava as damas com a mão esquerda! Na Rússia, podia-se até perdoar: sentia frio, tinha perdido uma luva, ou outro motivo que o valha. Mas em Paris?!? Grosso, grosso.
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Em assuntos referentes à Igreja, enrolam-nos dizendo que o Papa Leão deteve diante de Roma o terrível guerreiro huno, Átila. A verdade se insinua toda outra. Como ninguém podia com Átila, arranjaram um leão. O leão botou o pavoroso huno para correr. O povo de Roma, agradecido, o transformou em papa. Papa Leão. Elementar.
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Nesse negócio de ciência tem muito idiota. Charles Darwin fez grande sucesso porque afirmou que o homem descende do macaco. Passou a vida inteira estudando macaco, quando tem tanta Jane Fonda por aí.  Acham Einstein um gênio só porque disse que E = MC**2. Balela: E sempre foi igual a E mesmo. E Newton? Ficou lelé da cuca quando uma maçã caiu no cocuruto dele. Maçã, de uma certa altura, lesiona o cérebro.
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Sobre política, então ... . Acusam o marxismo de dissolver a família. Que loucura! Marx proclamava: "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!". Não sugere que desejava todo mundo bem casado? Quem quer dissolver a família é o Sindicato dos Lojistas: inventaram o Dia das Mães em maio e o Dia dos Pais em agosto. Separaram as mães dos pais.
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Os historiadores perderam de tal modo a vergonha que querem nos fazer crer em entidades que jamais viram a luz. Falam muito de uma ONU, que seria uma Organização das Nações Unidas, e de uma Declaração dos Direitos do Homem, que sabemos que não vai pegar.


*- O ato que institucionalizou a ditadura militar.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Inteligência Artificial


     Eu não posso tornar um computador feliz ao lhe oferecer uma torta de morango.
     Seria uma idiotice. Ele não tem consciência da felicidade. Não há espírito em uma 
     máquina. Não há nada.
                                                                 David Gelernter, cientista da computação


O espírito humano é um sistema eminentemente complexo, misterioso e maravilhoso. Não está ao alcance da compreensão humana, longe, muito longe disso. Embora assim, uma teoria, o computacionalismo, concebe um programa de computador apto a agir como um espírito. Contra o que reage David Gelernter, cientista da computação* e professor de informática da Universidade de Yale - USA: o computacionalismo incorre em um despautério (ver a epígrafe).

O espírito humano não é acionável por um simples toque. Ele se agita, divaga, sonha, preguiça. Sofre alucinações e pesadelos. E, claro, raciocina. Os computadores são capazes de simular, no máximo, o raciocínio. Com imensas limitações, ressalte-se. Da mesma forma que um grande ator interpretando Getúlio Vargas ou Clarice Lispector, por mais perfeita que seja sua interpretação, não se transforma em um ou outro.

Apesar de impregnada de computacionalismo, é impossível desconhecer que a inteligência artificial tem progredido notavelmente. O problema é que ela esbarra em um gap tecnológico, qual seja, o ainda corrente computador clássico de Von Neumann. Porque este é 'apenas' um possante e extraordinariamente eficiente tratador de dados. O processamento de linguagens lógicas ou programação em lógica -- base da inteligência artificial -- não deixa de ser um tipo de cálculo, por efetuação de regras bem definidas no decorrer das diferentes etapas do processamento. Enfim, se é verdade que um computador poderia ter um quociente intelectual mil vezes superior ao de um ser humano, no entanto ele não passaria de um zumbi, filosoficamente falando.

A insurgência de David Galernter é com relação à ambição desmedida e falsa de querer-se alçar a inteligência artificial  à altura de espírito artificial. O espírito artificial é e será, por vastíssimo tempo, uma quimera. Demandaria, primeiro, mudar a cabeça dos cientistas obcecados de computacionalismo. Por exemplo, eles ousam pretender modelar o senso artístico por meio de regras fundadas em processos bioquímicos ou neuropsicológicos, ignorando a incompreensível fenomenologia das sensações. Insistindo nesses enfoques mecanicistas, poderão dar com os burros n'água. Segundo, impõe-se uma máquina dotada de emotividade. Uma arquitetura de computador inteiramente nova para a qual não se tem, em futuro previsível, a menor ideia de como seria. Não é pois questão de achar que David Galernter é um incorrigível pessimista, característica aliás destoante da necessária mente aberta e ousada de um pesquisador.

Atento às emoções difusas,  David Galernter tem Freud em alta conta. Entusiasma-o o Freud observador meticuloso do mais profundo de nosso espírito, por via da análise dos sonhos e dos pensamentos. Faria bem aos computacionalistas interessar-se por Freud como método de trabalho. Tanto mais que ler Freud é extremamente enriquecedor: ele merece figurar na galeria dos grandes dramaturgos e dos grandes escritores.

Do lado de baixo do Equador, nosso poeta e cronista Ferreira Gullar, tal David Galernter, se extasia com o espírito humano:  O espírito é um grande e espantoso mistério. Há gente que enlouquece por não conseguir entendê-lo. Eu, ao contrário, me maravilho: como bicho homem, sou capaz de me encantar vendo a "Noite Ilustrada" de Van Gogh e ouvindo as bachianas de Villa-Lobos.


*- Contribuições maiores: programação paralela e sistema de programação Linda.


Nota à margem - Horror, terror, horror ... . Não há limites geográficos para a insanidade humana: Buenos Aires, Nova Iorque, Orlando, Londres, Bruxelas, Paris, Nice, Madri, Moscou, Istambul, Trípoli, Nairóbi, Beirute, Bagdá, Bombaim, Daca, Cabul, Carachi. Sem falar do horror implícito e cotidiano da miséria extrema. Dá vontade de parar com o blog. Escrever, para quê?!

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Fim dos Medos?!



As crises da psicanálise freudiana e da psiquiatria se explicam simplificadamente da seguinte forma: a psicanálise pode curar nossos males mentais -- nossos medos --, porém ao preço de um tratamento longuíssimo e caríssimo (quem muito pode faz psicanálise a vida inteira, auto-conhecimento é bom); a assistência psiquiátrica pode ser muito menos longa e muito menos cara, mas não cura, só alivia. Não surpreendem pois os intensos esforços de pesquisa científica em busca da cura do medo, de maneira rápida e barata. A psicóloga Merel Kindt, pesquisadora de psicologia clínica da Universidade de Amsterdan - Holanda, vem de desenvolver uma pílula contra o medo: é só tomá-la que o medo passa. Os testes têm sido tão positivos que sua comercialização está a caminho. Que maravilha!

Um exemplo de como a pílula funciona. Em uma certa noite, a pessoa X se deparou com um assaltante armado em seu quarto de dormir: não morreu, contudo se viu 'depenada' de valores materiais. Parecia-lhe impossível voltar à vida normal: X ficava nervosa em presença de gente desconhecida, assustava-se com o menor ruído, não conseguia dormir com o barulho do vento na cortina de seu quarto. Típico estado de estresse pós-traumático. Merel Kindt instou X a reviver a noite da agressão. As angústias de X foram então revividas, de forma intensa. Em meio ao descontrole, Merel Kindt a fez ingerir um comprimido, com um pouco de água. Nesse dia, X dormiu cedo e bem. Ao acordar, relembrou-se daquela noite, entretanto, pela primeira vez, as lembranças não lhe causaram nem sofrimento e nem pânico.

Tudo dentro das boas normas de validação estatística, a pílula de Merel Kindt funcionou bem em centenas de casos de estresse pós-traumático dos mais variados motivos, a ponto de merecer elogios rasgados e encorajadores de grandes nomes da pesquisa em psico-farmacologia. O princípio básico é o seguinte: em uma situação traumática, o cérebro, por meio de uma síntese de proteínas (não me perguntem sobre o que é exatamente isso!), armazena as lembranças para orientar o corpo sobre o comportamento a adotar. A ingestão da pílula em momento de tensão concernente mexe com o modus operandi cerebral: mais precisamente, a síntese original é manipulada, resultando agora em efeitos mais 'brandos' sobre o corpo. A manipulação é chamada de reconsolidação do medo. Palavras de Merel Kindt: O medo é uma emoção que tem uma função adaptativa muito importante.  

Um avanço incrível. Infelizmente, não cobre os medos mais desnorteadores, ou seja, os recalcados no inconsciente. Seja o exemplo do segundo parágrafo: a pessoa X não teve nenhuma dificuldade de se recordar do ladrão em seu quarto de dormir; tais medos objetivos podem ser curados ao ingerir um simples comprimido, Merel Kindt o demonstrou. Já os grandes medos inconscientes -- nossas neuroses -- permanecem à larga, necessitando de (longa) psicanálise para virem à tona e serem curados. Freud sobrevive.

É tempo de ressaltar que numerosos medos objetivos são benéficos a nossa sobrevivência e bem-estar: medo de gente objetivamente mal-intencionada, de covis de assaltantes e criminosos, de atravessar a rua sem a observância dos carros, de animais selvagens e carnívoros, etc., etc., etc. São medos que não devem ser reconsolidados de jeito nenhum, ou que não se tome a pílula de Merel Kindt contra eles.

Vontade de fazer uma saudação. Salve Freud e Merel Kindt!


Fonte -  Courrier International, 23-29 junho/2016.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Furor Evangélico



Até 1970, o Brasil era um país eminentemente católico. Uma parte muito respeitável da Igreja de Roma tomara a defesa dos pobres e desfavorecidos, sob o manto da chamada Teologia da Libertação. Os governantes militares -- Castelo Branco, Costa e Silva e Garrastazu Médici -- detestavam e perseguiam os padres alinhados com a teologia, considerando-os comunistas. Para piorar, eis que João Paulo II iniciava seu papado. Os teólogos da libertação e seus seguidores o irritavam. João Paulo II os atormentava, dispersava e ameaçava.

Em contexto assim tão favorável à desconstrução da igreja dos pobres, começou a grande invasão dos evangélicos, apoiados por seitas norte-americanas. Para atrair os milhões de católicos desiludidos, uma ideia genial: em vez da teologia da pobreza, a teologia da prosperidade. O novo discurso: a pobreza é obra do diabo; o enriquecimento é obra de Deus. Irresistível: a riqueza seria acessível a todos. Atualmente, estima-se que as diferentes igrejas protestantes agrupam mais de 50 milhões de brasileiros.

Os pastores evangélicos são hábeis pregadores e aliciadores. Distribuem a Bíblia: os pobres analfabetos ficam felizes por possuir um livro. Oferecem balas para as crianças. Montam ambulatórios, pequenas escolas. Praticam milagres no 'atacado', com solenidade, gritos, canções e histeria. A televisão é o meio primordial. Dizem que Deus é amor, e que tudo acabará dando certo. Ou então lutam com o diabo, batendo-lhe duro. Bradam o Apocalipse, ao anunciar a batalha final entre o Bem e o Mal, com a vitória do Bem. Advertem, no entanto -- aí é que entra a artimanha --, que ninguém deve se apressar. Pelo contrário, todos devem esperar paciente e alegremente pela salvação, quiçá pela riqueza terrena.

E há o dízimo. Os fieis o pagam com todo o prazer, pontualmente. De dízimo em dízimo, chega-se aos bilhões. Tome-se o exemplo de Edir Macedo, o poderoso chefão da Igreja Universal do Reino de Deus. Ele amealhou uma fortuna de 2 bilhões de dólares. Sua casa de São Paulo (existem outras) tem dezoito suítes. Dono da rede de televisão Record (24 canais), 41 estações de rádio, 2 jornais diários, uma agência imobiliária, 600 veículos, perto de 5 mil templos e 8 milhões de adeptos. Deve dormir tranquilo, dando um jeito de acomodar que seu enriquecimento é obra de Deus. Porém a Justiça desconfia. A acusação lhe é pesada: lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Até hoje, no entanto, Edir Macedo tem se escafedido.

No Congresso Nacional, a Frente Parlamentar Evangélica conta com pelo menos 90 deputados, misturando à saciedade política com religião. Abriga a bancada da bala. Ferozmente conservadora em matéria de costumes, ao menos para consumo externo. Tem sido paparicada pelos governos em princípio laicos, neste nosso debochado presidencialismo de coalizão. O expoente da Frente é Eduardo Cunha, o impuro. Jair Bolsonaro, fervoroso simpatizante da Frente, é homofóbico -- não impede que tenha um fã clube gay: nada espantável, Freud explica --, e potencial estuprador seletivo.

Em geral, as massas cooptadas padecem de ingenuidade e baixo nível de instrução. A visão sobre a mulher que lhes é imposta por algumas das seitas é a de um ser desprezível. As mulheres não devem cortar seus cabelos, pois a honra do marido são os cabelos da mulher. Cristo é a cabeça do homem; ora, o homem é a cabeça da mulher. As mulheres devem se vestir de maneira decente; que sua indumentária, modesta e reservada, não seja feita de cabelos trançados, de ouro, de pedras e de roupas suntuosas. Durante uma instrução, a mulher deve permanecer em silêncio, em toda submissão. Não é permitido à mulher ensinar e fazer a lei do homem. Adão foi feito primeiro, Eva em segundo; e não foi Adão que se deixou seduzir, foi Eva.

Constata-se que as igrejas evangélicas prosperam com ainda mais facilidade na imensidão da Amazônia. Essa floresta delirante nos faz sentir simultaneamente no inferno e no paraíso. Euclides da Cunha lhe dedica esta alegoria: "A Amazônia é a última página do Gênesis que está por ser escrita".