quinta-feira, 30 de abril de 2015

O Ocaso da Energia Fóssil (II)


A Poluição Infernal das Cidades


Mais da metade da população mundial vive nas cidades, com concentração galopante nas mega metrópoles. São quase cinco bilhões de seres humanos a respirar um ar venenoso de monóxido de carbono, óxidos de azoto, partículas finas e diversos outros gases e materiais venenosos. A principal causa são as queimas excessivas e localizadas de combustíveis fósseis, mas outras fontes de poluição não são negligenciáveis.

Os efeitos do ar poluído para a saúde são devastadores aos acometidos de asma, de doenças cardíacas ou pulmonares. Mesmo as pessoas de boa saúde são atingidas, quando a poluição atinge níveis críticos. As estatísticas sobre internação e mortalidade são impressionantes e em rápida progressão.

As cidades mais poluídas do mundo são, pela ordem: Peshawar (Paquistão), Delhi (Índia), Lagos (Nigéria), Pequim, Cidade do México e Cracóvia (Polônia). Mas São Paulo, Paris e Londres também estão com nível anual médio de partículas em suspensão acima do aceitável, que é de no máximo 20 microgramas por metro cúbico de ar (Organização Mundial da Saúde). A tabela que se segue destaca, para cada cidade mencionada*: (1) o nível anual médio de poluição; (2) as principais causas de poluição; e (3) as medidas antipoluição em vigor.

Cidade
Poluição (microgramas por metro cúbico de ar - mg / m3)

Principais fontes de poluição
Medidas antipoluição
Delhi
286 mg / m3
Os veículos automotores.

Os canteiros da construção civil.
Uso obrigatório de gás GPL para: (1) transportes públicos; (2) veículos a diesel com mais de 10 anos (conversão).

Código de postura anti-poeira para as empresas de construção civil.

Um site para a divulgação permanente dos níveis de qualidade do ar nas 10 principais cidades da Índia. Valores: bom, satisfatório, médio, ruim, muito ruim e crítico. Impacto de cada nível sobre a saúde.
Lagos
179 mg / m3
Os geradores de eletricidade a óleo diesel, que suprem a ausência de iluminação pública em boa parte da cidade.

Os veículos automotores.
Precário sistema de monitoramento da qualidade do ar.
Pequim
121 mg / m3
Os canteiros da construção civil.

Os veículos automotores.

Os geradores de eletricidade a carvão.
Código de postura anti-poeira para as empresas de construção civil.

Incentivos à construção baseada em módulos pré-fabricados. Fábricas de módulos longe da zona urbana.

Investimentos em energias eólica e solar.
Cidade do México
93  mg / m3
Os veículos automotores.
Rodízio de veículos, valendo inclusive para os transportes públicos (programa "Hoje Não Circula").

Incentivo ao uso do GPL e do gás natural. 
Cracóvia
59  mg / m3
Os aquecedores domésticos a carvão.
Proibição de novos aquecedores a carvão.
São Paulo
35  mg / m3
Os veículos automotores.
Rodízio de veículos.

Programa "Imóveis Verdes": muros vegetais e jardins nas coberturas como parte dos novos projetos de construções que reduzem os espaços verdes.
Paris
24  mg / m3
Os veículos automotores.
Programa "Paris, Capital Mundial da Bicicleta".

Desincentivo ao uso do diesel. 

Rodízio de veículos.
Londres
22  mg / m3
Os veículos automotores.
Pedágio na região central da cidade.

Rodízio de veículos.

Ressalte-se que todas estas medidas, em todas as cidades, são paliativas, porque não atacam o maior dos problemas: a queima de combustíveis fósseis para mover os veículos, as centrais elétricas e a indústria. O caso de Paris: a qualidade do ar continua piorando ano a ano, pela entrada maciça em circulação de novos veículos a gasolina e a diesel, e pelo individualismo que relega a segundo plano o excelente transporte público da aglomeração parisiense. Cracóvia, pequena e linda, capital histórica da Polônia, mata lentamente seus habitantes, por se situar em uma região carbonífera, e por canhestramente acreditar que o carvão é barato.

O que dizer dos esforços em energias alternativas, verdes? Os carros elétricos progridem muito lentamente. As forças motrizes a hidrogênio e a vapor d´água não decolam. (Certamente, o lobby pró-fóssil tem muito a ver com isso.) Felizmente, o panorama não é tão desolador: relembrem-se as muitas ações positivas anti-fósseis discutidas em "O Ocaso da Energia Fóssil (I)", de 09/04/ 2015, neste blog. Ademais, a China investe pesadamente em centrais elétricas a energias eólica e solar.

O programa do etanol brasileiro -- apesar de seus bem identificados inconvenientes -- poderia ser apresentado como um bom exemplo de substituição renovável e em larga escala de energia fóssil. Infelizmente, ele tem sido miseravelmente torpedeado pelo Governo, que só tem olhos para o petróleo do pré-sal. Para calar os canavieiros e os produtores de etanol, permite uma tecnicamente proibitiva adição de etanol à gasolina, O prejuízo é todo do consumidor brasileiro, que paga ainda mais caro pela gasolina misturada (como se fosse gasolina pura), e que vê reduzida a vida útil de seus carros. Quanto à poluição, que se dane.  
Está preocupado com o aquecimento global? Então combata a poluição atmosférica local [em sua cidade], proclama Grist, site norte-americano especializado em Ambiente. Baseia-se em uma pesquisa conjunta Harvard - Yale - Universidade de Chicago, que concluiu que os mesmos poluentes que prejudicam o clima também sufocam as cidades.   


Nota - O sistema de bicicletas compartilhadas de Fortaleza, Bicicletar, possui quase 57.000 ciclistas cadastrados. Dispõe de 40 estações e 400 bicicletas, e um número crescente de vias exclusivas. 75% das viagens nos dias úteis -- 44% do total de viagens -- são deslocamentos (origem e destino diferentes), o que pode significar que alguns milhares de pessoas dependem menos de carro [poluente]. A meta da Prefeitura é instalar mais 40 estações até o final deste ano. Muito bom.


*- Com exceção de Peshawar -- 540 microgramas por metro cúbico de ar! --, por falta de dados disponíveis sobre as causas da poluição e as ações para atenuá-la.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

O Brasil de Gilles Lapouge


Gilles Lapouge é um jornalista literário francês, amoroso do Brasil. Chegado a nosso país em 1951, desde então colabora para o jornal O Estado de São Paulo. De volta à França bons anos depois, nunca deixou de manter um extremado vínculo com a brasilidade. Como ele mesmo gosta de enfatizar, sua sabedoria de Brasil abarca mais de sessenta anos. Publicou em 2011 Dictionnaire amoureux du Brésil, cuja primeira edição em português saiu recentemente*. Detentor de muita cultura e vasta erudição, seu regard sobre nós constitui um precioso cabedal de novos conhecimentos brasileiros, imperceptíveis a nosso olhar endógeno.

De seu dicionário amoroso do Brasil, escolhi ao acaso o 'verbete' "Proust nas favelas". Eis um resumo dele.

Na maior favela do Rio de Janeiro, Rocinha, uma magnífica professora (o adjetivo é meu) deu o livro Um Amor de Swann, de Marcel Proust, para a leitura de seus alunos adolescentes. Empreitada natimorta? Desvario da professora? Afinal, os garotos e garotas não crescem entre livros. São afeitos, força do ambiente, a pequenos delitos, mascatagem e ao diversionismo do carnaval. Como despertá-los para o mundo encantado da literatura?

Na verdade, Um Amor de Swann lhes foi apresentado de forma lúdica, porém -- muito importante -- sem vulgaridade. A proeza coube a Stéphane Heuet (Éditions Delcourt, França), que transformou o texto em uma história em quadrinhos, com grande atenção ao original de Proust. Primeiro, a concernente paisagem urbana de Paris é minuciosa e fielmente retratada. Segundo, os diálogos dos personagens reproduzem escrupulosamente os ditos de Proust. Os quadrinhos foram traduzidos para trinta países, entre os quais o Brasil. Os especialistas em Proust aprovaram o trabalho. Os moleques e molecas da favela da Rocinha gostaram!

E assim, a gente sofisticada do faubourg Saint-Germain desembarcou, lantejoulas e bagagens, em plena Rocinha. Não tem outro jeito senão reproduzir Gilles Lapouge: "Madame Verdurin ... seria até mesmo capaz de perder o início da temporada musical de Bayreuth para honrar o convite da professora carioca.". Em vez de sonata de Vinteuil, baile funk.

Como seria possível uma identificação entre os garotos da Rocinha e os parisienses de Proust? Pontos comuns, sempre os há. Por exemplo, o ciúme é um mal universal. Só diferem as formas de verbalizá-lo. Para Swann, o ciúme é a sombra de sua amada, que se carrega de amor por outro. A meninada rocinhense diria, de maneira direta: "A Odette de Crécy é uma puta, não?". Ou então: "Você não acha que esse Charlus é viado, hein?". O bacana é que as crianças da Rocinha compartilharam as tristezas de Swann.

No mais, a literatura labiríntica de Marcel Proust bem que pode se transformar, nas cabecinhas da Rocinha, em saborosa literatura fantástica.

Revisitarei Gilles Lapouge, de vez em quando. Faz-me bem, e creio que o fará também a meus leitores.


*- Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil, Gilles Lapouge, Editora Amarilys, 2014.


quinta-feira, 16 de abril de 2015

Somos Sós no Universo


No Espaço, não existem “lugares melhores” [do que a Terra]. Carl Sagan



A Evolução (Darwin) programou os seres humanos para serem nômades, em busca de rincões melhores para sobreviver. Herman Melville, em seu deslumbrante Moby Dick, falou pelos errantes de todas as épocas: “Sou atormentado por um desejo constante pelo que é remoto. Gosto de navegar mares proibidos...”. Agora que nossa Terra se encontra quase que inteiramente vasculhada (e sendo sistematicamente destruída), o Espaço são os "novos mundos dos mistérios" a serem descobertos e explorados. Diante da enormidade da tarefa, os humanos se obrigam à humildade: existiriam civilizações extraterrestres em estágios tecnológicos muito mais avançados. Seria o caso de mais receber do que dar. Amparam-se no filósofo grego Crisipo: “É arrogância insana um ser humano pensar que nada lhe é superior em todo o mundo”. Tudo isto posto, é tempo de examinar a quantas anda a pesquisa em alienígenas.

Discernem-se dois enfoques de tentativa de comunicação com alienígenas. No primeiro -- passivo --, apontam-se radiotelescópicos potentes para estrelas 'próximas' similares a nosso Sol, em faixas de frequência que permitiriam interceptar comunicações interestelares. Desolador: total mutismo das estrelas. Na abordagem mais agressiva ou pró-ativa, enviam-se mensagens a planetas que gravitam em torno de estrelas longínquas. Os planetas não têm respondido.

(Deixe-se a inteligência extraterrestre um pouco de lado. Percebe-se um esforço meio desesperado de Carl Sagan para difundir, em seu belo Pálido Ponto Azul [a Terra vista do alto], as belezas do Cosmos: ele enxerga vales majestosos em Tritã (lua de Netuno) e uma atmosfera iridescente em Titã (lua de Urano). Todavia, não se furta à depressiva realidade: não há um mísero ser vivo no Sistema Solar, um microbiozinho que fosse; à exceção da Terra, todos os objetos -- planetas, luas, cometas, asteroides -- são de uma apavorante hostilidade a tudo o que se entende como propício à vida. Ver a epígrafe.)

Frank Drake, decano do programa SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence), uma pesquisa internacional liderada pelos Estados Unidos, elaborou há mais de 50 anos uma célebre equação, até hoje não relegada, que estima o número de civilizações com as quais poder-se-ia comunicar. Uma aplicação dela deu mais de dez mil civilizações (sic). O problema são os parâmetros da equação, ou como instanciá-los. Existem variáveis assim: o número de planetas tendo civilizações desejosas de se comunicar; a duração média de existência de uma civilização. Francamente, não dá.

Aqui na minha petulância, proclamo que não existe vida inteligente (para não falar de qualquer tipo de vida) fora de nosso planeta Terra. Posso até baixar a guarda com um oximoro: por muitas centenas ou milhares de anos ainda, as estrelas e os exoplanetas nos serão sonoramente mudos. Dá no mesmo.

Protegendo-me das críticas que virão, conto com um defensor ilustre. Refiro-me ao italiano Enrico Fermi (1901-1954), ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1938, no que ficou conhecido como o Paradoxo de Fermi. Suponha-se que há no Universo um bom número de civilizações muito superiores à nossa, por uma simples questão de probabilidade e estatística. Então algumas delas possuem tecnologia permitindo de vir nos ver. Não é o caso. Não há pois extraterrestres.

A conclusão é uma só: resta-nos proteger nossa pequena, linda e frágil Terra. Mas talvez seja preciso reavaliar a hipótese de que existe vida inteligente na divina Terra, tais as agressões à divindade. (Jonathan Swift: "O Ser Humano é basicamente irracional, com alguns lampejos de racionalidade".) Daqui a 5 bilhões de anos, a Terra desaparecerá, engolida pelo Sol. Muito longe de acontecer. É salutar considerar que nosso planeta teria toda uma eternidade pela frente, se a loucura humana deixasse.


quinta-feira, 9 de abril de 2015

O Ocaso da Energia Fóssil



Os cientistas do clima batem o martelo: o planeta Terra se aquece velozmente por causa da atmosfera cada vez mais densa do gás carbônico resultante da queima galopante e continuada de combustíveis fósseis. Também exaustivamente explicado, o efeito é o de uma estufa: mais calor do sol não é refletido para o espaço, desta maneira aquecendo na média a superfície terrestre. O estrago para a Vida -- o problema de nossa sobrevivência -- é real e duradouro: o esforço inaudito a partir de agora é o de como reduzir drasticamente, senão eliminar, as emissões de gás carbônico.

Com a palavra os cientistas: o estoque provado de fontes de energia fóssil -- petróleo, gás e carvão -- contém 4 vezes mais carbono do que a quantidade já existente na atmosfera responsável por, irremediavelmente,  elevar de 2 graus a temperatura média da Terra até o final do século. A solução para estancar o problema da sobrevivência é parar de emitir carbono. Para isso, só existem dois caminhos concomitantes: (c1) utilizar energias não fósseis, não poluentes e economicamente viáveis  -- as chamadas energias verdes ou renováveis: e (c2) vencer a guerra midiática contra o lobby pró-fóssil das grandes corporações petrolíferas e carboníferas. Nos parágrafos seguintes, os caminhos c1 e c2 são discutidos.

A energia solar entra em cena. Os preços dos painéis fotovoltaicos caíram 75% em 6 anos e o custo de sua instalação degringola em igual ritmo: segundo o Banco da Alemanha (Deutsche Bank), ele será 40% menor em 2 anos.  Já se vislumbra uma era de fartura energética nos trópicos, onde o sol reina com todo o esplendor. Bangladesh: o país possui 15 milhões de instalações fotovoltaicas, crescendo à razão de 60.000 novas instalações por mês. Índia: uma empresa de energia solar ganhou uma grande concorrência para fornecimento de eletricidade, com uma oferta por kwh-hora inferior à de uma mega empresa carbonífera; os agricultores alimentam seus telefones celulares com o excedente da energia gerada pelos painéis solares que abastecem as antenas.

A energia eólica atua de par com a energia solar. Quando o sol se põe, o vento se robustece. Sem esquecer que as tecnologias para estocar eletricidade são flexíveis e amadurecidas. No ano passado, a Dinamarca produziu 40% de sua eletricidade com turbinas eólicas.

A Apple constrói na Califórnia - USA, na Dinamarca e na Irlanda centros de dados gigantes à base de energias renováveis. Medidores inteligentes são disponibilizados em profusão: eles possibilitam a regulagem da demanda; por exemplo, apagando uma caldeira quando não há mais necessidade de água quente. E.ON, maior grupo energético alemão, vem de anunciar que as energias verdes passam a ser seu foco.

Na grande arena do embate político, as gigantes "irmãs" do petróleo, do gás e do carvão, junto com seus poderosos aliados do mundo das grandes finanças, percebem que é em vão que se esforçam por fazer valer a grande mentira: que o aquecimento global tem causas naturais e que as energias renováveis tão cedo não terão escala.

O novo mantra anti-aquecimento global é diametralmente oposto: sair do fóssil, investir fundo em energias verdes, e deixar o carbono no subsolo. Das palavras à ação. Barack Obama apôs seu veto à construção de um oleoduto entre a Província de Alberta -Canadá e refinarias no Golfo do México, nos Estados Unidos. No Canadá, todos os projetos de oleoduto ligados à exploração de areia betuminosa sofrem bloqueio de militantes incansáveis, numerosos e organizados. No Estado de Nova Iorque - USA, a exploração do xisto está proibida, da mesma forma que na Escócia, no País de Gales, na França e na Tasmânia. Idem, no Sahara argelino. A construção de 6 terminais gigantes na costa oeste dos Estados Unidos, visando à exportação do carvão do Estado do Wyoming - USA para a China, foi definitivamente abortada. Estados Unidos e China, os maiores poluidores mundiais, finalmente se comprometem a reduzir celeremente suas emissões de carbono.

Ninguém é ingênuo de pensar que a Humanidade de livrará do fóssil do dia para a noite. São 2 séculos de infraestruturas que precisarão de algumas décadas para serem completamente desativadas ou parcialmente reaproveitadas. O que é certo: os investidores se conscientizam de que leis e acordos globais serão de tal maneira restritivos que será impossível consumir energias fósseis ao ritmo atual. Em termos econômicos, significa que os ativos ligados a petróleo, gás e carvão perderão valor intensamente.

E o Brasil diante de tudo isso?! Nosso país é  muito maior do que Índia e  Bangladesh, tanto em tamanho quanto em fontes energéticas renováveis. (Exclua-se a energia hidráulica. As grandes represas, via de regra, provocam algum tipo de desastre ambiental, direta ou indiretamente.) Futuro verde radioso? Infelizmente, parece que não, devido à miopia do Governo e da Petrobras: de maneira renitente, continuam a apostar todas as fichas essencialmente no petróleo do pré-sal. Ademais, as manifestações de rua da sociedade civil organizada se omitem. Nesta marcha, o colapso econômico viria não da produção de derivados de petróleo e gás mas dos impedimentos a seu consumo intensivo. Quem viver verá, a persistir tão curta visão estratégica.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

América Latina para os Chineses?



América [Latina] para os [Norte-]Americanos. - James Monroe, Presidente dos Estados Unidos, 1817-1825. A propósito dos embates imperialismo yankee nascente vs. imperialismo britânico, pela hegemonia na América Latina.

Um pouco de dinheiro evita as preocupações, mas muito dinheiro as atrai. - Confúcio, filósofo nacional da China.

Esses sim [os chineses] são bravos ... Em quinze anos vamos estar com saudades dos gringos [dos norte-americanos]. - José Mujica, ex-guerrilheiro tupamaro e ex-presidente do Uruguai.



Como grande potência que é, a China concede à América Latina (AL) uma grande importância estratégica. Os vetores de atração da AL para a China são: (1) as commodities (alimentos e minérios) vis-à-vis de seu apetite voraz por produtos primários; (2) o amplo mercado consumidor para seus produtos de base tecnológica; e (3) a crise financeira de alguns países, oportunidade para ganhar mais dinheiro e influência política com empréstimos 'salvadores'. Tudo a um ritmo estonteante.

Nas próximas linhas, Venezuela, Equador, México, Argentina e Brasil são rapidamente visitados, à luz de suas relações com a China.

Países Bolivarianos

Pequim financia a Revolução Bolivariana. A dívida somada da Venezuela e do Equador chega a 45 bilhões de dólares. Ela está sendo paga com 600.000 barris de petróleo por dia, um volume que tende a aumentar com a diminuição do preço do produto. Representam respectivamente 90% e 60% das exportações da Venezuela e do Equador para a China. A Venezuela tenta renegociar sua dívida, mas a China exige como contrapartida a mina de ouro Las Cristinas, orçada em 32 bilhões de dólares. Por sua parte, a Oposição Venezuelana acusa o Governo de se ajoelhar ante os chineses.

México

A China Railway Construction Co. (CRCC) ganhou como única candidata a licitação para a construção de um trem-bala por 3,7 bilhões de dólares, em sociedade com a empresa mexicana Teya. A Teya é acusada, entre outras coisas, de pagar a mansão da primeira-dama do país. Por temer os desdobramentos da ruinosa atmosfera política, as empresas Bombardier (Canadá), Siemens (Alemanha), Alstom (França) e Mitsubishi (Japão) desistiram da concorrência. Para a CRCC, nada demais: licitação não faz parte da cultura de negócios chinesa.

O México é o único país da AL que não é grande exportador de commodities para a China. Ele é, sim, um forte exportador de manufaturados para os Estados Unidos (suas fábricas são maquiadoras), o que não o livra da ameaça competitiva da China sobre 70% de seus produtos exportados.

Argentina 

Para a construção de duas represas, a Sinohydro associou-se a Lázaro Báez, suposto testa-de-ferro da família Kirchner, investigado por lavagem de dinheiro. O amplo convênio de cooperação Argentina-China, visto pelo Governo e Aliados como a salvação para as combalidas e combatidas finanças do país, é duramente criticado pela entidade patronal União Industrial: a principal acusação dos empresários é a de que o convênio permite a empresas chinesas fechar contratos sem licitação. Outro problema é a fragilidade da posição argentina nas negociações: quase toda a sua soja, principal exportação, é comprada pela China.
  

Brasil

O grosso dos investimentos chineses no Brasil é 100% direto. Eles são numerosos e variados, apesar da crise econômica perdurável vivida pelo país: força de nosso mercado consumidor. Eis alguns investimentos por setor: eletrônicos (Foxconn, Lenovo, CiaoHub), automotivo (Shaanxi, Shyian, Changan, EFFA Motors, Chery, Shacman, Shineray), bancário (Industrial&Commercial Bank of China, China Construction Bank), telecomunicação (China Telecom) e agronegócio (BBCA), entre outros. Com relação ao setor de petróleo e gás, as estatais chinesas CNPC e CNOOC participam, por licitação e ao lado da Petrobras e de outras empresas estrangeiras, da exploração de um grande campo do pré-sal. O Banco de Desenvolvimento da China, na contracorrente das agências de risco que ameaçam não recomendar empréstimos à Petrobras por causa dos escândalos de corrupção que jugulam a empresa, assinou um contrato de US$ 3,5 bilhões com a Petrobras. Todavia, o futuro das relações Brasil-China não deixa de preocupar: a vulnerabilidade estratégica do Brasil é revelada pelo fato de que 90% das suas exportações para a China se limitam a minérios e soja.


À guisa de conclusão. A interrogação do título é proposital. A 'guerra fria' Estados Unidos - China pelo poder mundial não permite ainda previsões abalizadas. Por um lado, a potência norte-americana tem dado sinais vigorosos de que sua atual condição de única superpotência não tem prazo para acabar. Por outro lado, parece falacioso afirmar que a China vê diminuir inexoravelmente seu insuperável ímpeto de crescimento; o mais certo é entender que a prioridade passa a ser seu 'infinito' mercado interno, ou que a natureza de seu desenvolvimento se reorienta para muito melhor. Assim, antevê-se uma disputa cada vez mais acirrada entre as duas potências pelo controle das riquezas e dos mercados da AL.

Enfim, corroborando Confúcio (ver a epígrafe), se a questão é dinheiro (e poder) as diferenças culturais Ocidente - Oriente se desvanecem. Quanto a José Mujica (ver a citação), ele teria sido mais preciso admitindo que os dois imperialismos, o norte-americano e o chinês, são igualmente agressivos, e que a agressividade é a característica de todos os imperialismos ao longo da História.



Fontes principais: jornal espanhol El País (05/03/2015); Boletim de Investimentos Chineses no Brasil 2012-2013, publicação do Conselho Empresarial Brasil-China.