quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O Brasil em 2015 (Final)


Sociedade e Cultura

Para falar de sociedade brasileira é preciso, de início, dar atenção ao mercado consumidor -- quantos brasileiros consomem e como. Eis os números aproximados (IBGERendaPorFamilia): 12 milhões de famílias ganham entre 1 e 2 salários mínimos (12.000.000, 1 a 2); 10.000.000, 2 a 3; 12.000.000, 3 a 5; 9.000.000, 5 a 10; 4.000.000, 10 a 20; 2.000.000, > 20. Considerando 3,5 pessoas por família (os brasileiros procriam cada vez menos), chega-se a 175 milhões de consumidores. É um belo valor: quase 3 vezes a população da França. É certo que os salários via de regra são baixos e que a inflação persiste em alta. Mas o crédito ao consumidor continua facílimo: em qualquer loja, o vendedor insiste em que o cliente parcele suas compras, tirando proveito do fato de que os compradores não sabem se planejar financeiramente. Muito possivelmente movido por estas razões, o presidente mundial do grupo automobilístico Renault - Nissan declarou, no recente Foro Econômico Mundial de Davos - Suíça, que continua entusiasmado com a perspectiva de bons negócios no Brasil, apesar dos percalços da economia.

Os principais cenários de consumo são obviamente as grandes cidades. Fortaleza, entre as 5 maiores, é bem um retrato do Brasil contemporâneo. Ela é a segunda cidade brasileira em um ranking que mede o desenvolvimento econômico das maiores metrópoles do mundo em 2014 (Ranking). Seu crescimento vertical cresce aos olhos: alguns dos chamados bairros 'nobres' são tão densos que tendem a se aproximar de Copacabana - Rio, uma aberração urbanística apesar da natureza maravilhosa em torno.  Muitos shoppings, alguns enormes, onde as classes A e B compram e se abrigam do calor e da insegurança (próximo parágrafo). Restaurantes e restaurantes. Praias frequentadíssimas. A classe C vai às compras e se diverte, a seu modo. Para fugir da mesmice de cidade americanizada, três referências culturais e arquitetônicas: o belíssimo Theatro José de Alencar, o Cine Teatro São Luiz e o Centro Cultural Dragão do Mar.
  
Infelizmente, o reverso da medalha chama a atenção com igual intensidade. Bastam estas duas estatísticas obscenas: (1) Fortaleza é a terceira cidade mais violenta do Brasil em 2014 -- homicídios / 100.000 habitantes -- e a oitava em uma classificação das cidades mais violentas do mundo em 2014; e (2) Fortaleza é a segunda cidade brasileira em que mais se morre no trânsito. Meninos e meninas ao relento, indigência. Sujeira das ruas, praças maltratadas e calçadas esburacadas. O centro da cidade, longe dos bairros 'nobres', encontra-se em estado de abandono. Muitos prédios e logradouros, que dariam fisionomia original à cidade, estão descoloridos pelo descaso. O comércio informal invade as ruas: Bombaim (Mumbai) é aqui, os indianos que me desculpem.

Em matéria de comportamento social, o brasileiro  -- todas as classes incluídas -- é cordial, no sentido do reverenciado sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque de Holanda)*. O "Ser cordial" não pressupõe bondade: é só aparência de afetividade. Ele é visceralmente inadequado às relações impessoais (por exemplo, é comum um subordinado dar um tapinha nas costas do chefe). Porém, sua sociabilidade é enganadora: trata-se, no fundo, de um tremendo egoísta, daí o desrespeito para com tudo o que é público ou em sociedade. A corrupção, endêmica, também seria uma decorrência desse caráter individualista.

Ingressa-se agora na cultura. O passeio por suas diferentes expressões -- literatura. música, cinema, teatro, televisão, futebol e carnaval -- é fugaz, não apenas por restrição de espaço. Sou um conservador cultural, logo desatento às novas culturas que estariam surgindo. Exponho-me assim ao provável inconformismo do leitor: que se apresente, o debate é altamente desejável.

O jornalista Mino Carta escreveu um polêmico artigo, A Imbecilização do  Brasil (MinoCarta). Concordo praticamente com tudo: vale a leitura. Resta citar minhas preferências. Literatura: Machado de Assis, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Música: compositores - Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque; intérpretes - Gilberto Gil, Jorge Benjor, Luís Melodia e Maria Bethânia. Cinema: Cacá Diegues e Gláuber Rocha (em parte). Teatro: Marília Pêra e Fernanda Montenegro. Televisão: Fernando Gabeira e Mário Sérgio Conti. Como se vê, tudo muito 'antigo'. A exceção é a televisão: os dois citados são novatos nesta mídia.

O futebol? Alemanha 7 x Brasil 1. Pronto. Os craques, ainda meninos, são sugados pelo rico futebol europeu. Os que ficam aqui maltratam a bola. Os dirigentes? Figuras destituídas de qualidade.

A ressurgência do carnaval de rua, no Rio de Janeiro principalmente, é uma ótima novidade. Nele, o folião extravasa seu dissabor contra os políticos, o governo, a falta de água e luz, o calor e muito mais. Tudo com muito humor. É isso: faltava dizer que o brasileiro é dotado de uma efervescente veia humorística, na base do "Rir é o melhor remédio": é o que torna animadíssimos os bate-papos de bar.

Epílogo

Comecei esta série sobre o Brasil muito animado, as estatísticas ajudando. Com o passar, meu estado de espírito foi definhando, chegando às raias da inquietude. A pergunta que me faço é esta: Por que meu sentimento pelo Brasil é tão ambivalente? A pista para a resposta reside na própria ilógica brasileira: um país desenvolvido e muito subdesenvolvido. Como pude mostrar. 


*- Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, 26a. Edição, Companhia das Letras, 1995.


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O Brasil em 2015 (II)


O Sistema Político

Examina-se, em primeiro lugar, o arcabouço jurídico-eleitoral brasileiro para, em seguida, comentar como nele se movimentam os atores políticos.

Não há qualquer pretensão de imergir na legislação eleitoral brasileira. Destacam-se apenas quatro aspectos, os quais influenciam sobremaneira nossos costumes políticos.


Fidelidade Partidária. O conceito puro é: uma vez em um partido político, um político deverá pertencer ao partido para sempre (esqueça-se que o partido possa um dia acabar). Todavia, nossos legisladores resolveram conspurcar a pureza da lei com a introdução de duas exceções: a fidelidade não vale nos casos de criação de partido e de fusão de legendas. Somando-se ao fato de que as regras para formar partido, bem como as de unir partidos, são frouxas, eis aí o ambiente propício às movimentações partidárias de injusta causa.
Lei da Ficha Limpa. Esta lei complementar tem, em princípio, a mais nobre das intenções: impedir que pessoas corruptas se elejam. Infelizmente, um indiciamento por corrupção não basta. Mesmo uma condenação não é suficiente, se tiver sido só por decisão solitária. Para ilustrar, se um juiz eleitoral condenasse um réu, ele continuaria elegível até a decisão ser corroborada por um tribunal regional eleitoral, que é um órgão colegiado. Tampouco um indiciamento por parte do Ministério Público impede alguém de se candidatar. E ainda há a possibilidade de 'infinitos' recursos e liminares.
Suplência. Suplentes -- de deputado, de senador -- não são eleitos, ou são escolhidos por seus titulares. Isso abre a possibilidade de que um candidato indique seu suplente por razões menores ou impróprias: riqueza, amizade, etc. As chances de um suplente biônico vir a assumir a vaga do patrono são bem plausíveis. Péssimo para a democracia representativa.
Representações estaduais. São Paulo tem 1 deputado para cada 630.000 habitantes; Acre tem 1 para cada 100.000. Em outras palavras, um deputado acreano vale seis vezes mais do que um paulista. Considerando todos os estados, resulta no seguinte: quanto menos população tem um estado, mais ele é representado. Em si, até passaria. Porém, existe esta outra leitura: os estados menos desenvolvidos -- com comparativamente baixas populações -- são super representados; por força do atraso, suas bancadas são também as mais vulneráveis a poderes mal intencionados.
        
Uma parte da classe política tem se aproveitado à exaustão da permissividade da legislação eleitoral e da Justiça. Interessa repertoriar algumas das práticas danosas à democracia representativa e ao erário público. Tudo, bem entendido, dentro da legalidade.

Nada menos que 28 partidos políticos compõem a Câmara dos Deputados do Congresso Nacional (por restrição de espaço, o Senado fica de fora), com 513 deputados. A coligação vencedora da última eleição presidencial -- autoproclamada base aliada do poder executivo (governo) -- é formada por 9 partidos e 59% dos deputados. Em tese, uma folgada maioria em prol da governabilidade. Mas não é o que acontece no dia a dia parlamentar. O problema é a heterogeneidade da dita base aliada: o que há de comum, por exemplo, entre o PP (Jair Bolsonaro, Paulo Maluf) e o PC do B (comunista, vá lá o que o conceito signifique hoje em dia)? Indo mais a fundo. Quase todos os partidos são desprovidos de ideologia, ou são pragmáticos no pior sentido. Como moedas de troca, aproximam-se ou afastam-se do governo conforme as ambições por cargos ou verbas sejam aceitas ou contrariadas. Pelos mesmos motivos, congressistas da oposição muitas vezes se deixam  atrair pelo governo, quando não um partido inteiro. Toda essa maquinação conta com o beneplácito do governo, interessado em fragilizar partidos em proveito de outros mais 'dóceis'. Afinal de contas, 37 ministérios governamentais (!) não se devem unicamente a razões de eficácia administrativa. É a filosofia do poder pelo poder.

Mais números desoladores. 40% dos deputados eleitos em 2014 são investigados pela Justiça. 123 deputados biônicos assumiram no lugar dos eleitos no período 2011-2015. Último levantamento de custo de cada congressista: 151 mil por mês. Dos 13 ministros do governo que foram recentemente nomeados, 3 deles, parlamentares de origem, são arrolados judicialmente.


Alguém saberia dizer o que significam siglas como PROS, PRB, PSC, PEN, PR e tantas outras? (As duas primeiras, por acaso, pertencem à tal base aliada.) Não tem importância (sic): os eleitores destes 'partidos' votam em nomes, não em programas. Em breve, o extinto PL (?) será ressuscitado. Assim, deputados poderão migrar para essa agremiação, que em seguida seria fundida ao PSD -- ôpa! não se trata do antigo. Com a manobra, o novo PL+PSD ficaria com 67 parlamentares, tornando-se a segunda maior bancada da Câmara. Tudo orquestrado pelo governo para enfraquecer o PMDB -- teoricamente o maior aliado e dono da atual segunda maior bancada --, por causa de sua crescente ala 'rebelde'.

Dois partidos, PT e PSDB, merecem considerações especiais. O PT é governo. Literalmente, é o partido dos trabalhadores, assalariados (excluídos os de alto salário) ou não. As medidas do governo -- o governo é PT --, em plenas festas de fim do ano 2014, com novas regulamentações para auxílio-doença, seguro desemprego e pensão por morte penalizam sobretudo os trabalhadores. Sem falar no veto da presidente à correção de 6,5% da tabela de imposto de renda, aprovada pelo Congresso. Os sindicatos petistas? Calados ou imobilizados. Ou seja, tornou-se muito difícil ao PT ser PT.

O PSDB, revigorado por quase a metade dos votos válidos na última eleição presidencial, surge como o partido credenciado a quebrar a hegemonia de 16 anos do PT na presidência da república. Tudo vai depender da qualidade de sua oposição ao segundo governo Dilma Rousseff - PT. Qual seria o ideário do PSDB? Essencialmente, modernizar o capitalismo brasileiro, que permanece com fortes conotações selvagens. (Interessante, muito interessante: o novo governador do Estado do Maranhão,  comunista do PC do B, tem como principal bandeira estabelecer as bases para um capitalismo de verdade no estado.)

À guisa de conclusão, é ilustrativo contrapor ao Congresso Nacional Brasileiro a Assembleia Nacional Francesa. Os partidos são também muitos, 15, mas apenas 5 concentram 85% dos deputados. Claro viés ideológico: todas as esquerdas, 60%; todas as direitas, 40%. Notem-se as duas grandes diferenças, em relação ao caso brasileiro: (d1) o governo francês precisa, na prática, do apoio de poucos partidos -- exatos 3, dos 5 maiores; e (d2) os partidos aliados têm todos a mesma coloração ideológica -- no presente, Esquerda, com seus variados matizes. Il va de soi que o campo para o troca-troca ou a corrupção se reduz bastante.


*** Na próxima semana, última postagem desta série sobre o Brasil: Cultura e Sociedade ***