Para falar de sociedade brasileira é preciso, de início, dar atenção ao mercado consumidor -- quantos brasileiros consomem e como. Eis os números aproximados (IBGERendaPorFamilia): 12 milhões de famílias ganham entre 1 e 2 salários mínimos (12.000.000, 1 a 2); 10.000.000, 2 a 3; 12.000.000, 3 a 5; 9.000.000, 5 a 10; 4.000.000, 10 a 20; 2.000.000, > 20. Considerando 3,5 pessoas por família (os brasileiros procriam cada vez menos), chega-se a 175 milhões de consumidores. É um belo valor: quase 3 vezes a população da França. É certo que os salários via de regra são baixos e que a inflação persiste em alta. Mas o crédito ao consumidor continua facílimo: em qualquer loja, o vendedor insiste em que o cliente parcele suas compras, tirando proveito do fato de que os compradores não sabem se planejar financeiramente. Muito possivelmente movido por estas razões, o presidente mundial do grupo automobilístico Renault - Nissan declarou, no recente Foro Econômico Mundial de Davos - Suíça, que continua entusiasmado com a perspectiva de bons negócios no Brasil, apesar dos percalços da economia.
Os principais cenários de consumo são obviamente as grandes cidades. Fortaleza, entre as 5 maiores, é bem um retrato do Brasil contemporâneo. Ela é a segunda cidade brasileira em um ranking que mede o desenvolvimento econômico das maiores metrópoles do mundo em 2014 (Ranking). Seu crescimento vertical cresce aos olhos: alguns dos chamados bairros 'nobres' são tão densos que tendem a se aproximar de Copacabana - Rio, uma aberração urbanística apesar da natureza maravilhosa em torno. Muitos shoppings, alguns enormes, onde as classes A e B compram e se abrigam do calor e da insegurança (próximo parágrafo). Restaurantes e restaurantes. Praias frequentadíssimas. A classe C vai às compras e se diverte, a seu modo. Para fugir da mesmice de cidade americanizada, três referências culturais e arquitetônicas: o belíssimo Theatro José de Alencar, o Cine Teatro São Luiz e o Centro Cultural Dragão do Mar.Infelizmente, o reverso da medalha chama a atenção com igual intensidade. Bastam estas duas estatísticas obscenas: (1) Fortaleza é a terceira cidade mais violenta do Brasil em 2014 -- homicídios / 100.000 habitantes -- e a oitava em uma classificação das cidades mais violentas do mundo em 2014; e (2) Fortaleza é a segunda cidade brasileira em que mais se morre no trânsito. Meninos e meninas ao relento, indigência. Sujeira das ruas, praças maltratadas e calçadas esburacadas. O centro da cidade, longe dos bairros 'nobres', encontra-se em estado de abandono. Muitos prédios e logradouros, que dariam fisionomia original à cidade, estão descoloridos pelo descaso. O comércio informal invade as ruas: Bombaim (Mumbai) é aqui, os indianos que me desculpem.
Em matéria de comportamento social, o brasileiro -- todas as classes incluídas -- é cordial, no sentido do reverenciado sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque de Holanda)*. O "Ser cordial" não pressupõe bondade: é só aparência de afetividade. Ele é visceralmente inadequado às relações impessoais (por exemplo, é comum um subordinado dar um tapinha nas costas do chefe). Porém, sua sociabilidade é enganadora: trata-se, no fundo, de um tremendo egoísta, daí o desrespeito para com tudo o que é público ou em sociedade. A corrupção, endêmica, também seria uma decorrência desse caráter individualista.
Ingressa-se agora na cultura. O passeio por suas diferentes expressões -- literatura. música, cinema, teatro, televisão, futebol e carnaval -- é fugaz, não apenas por restrição de espaço. Sou um conservador cultural, logo desatento às novas culturas que estariam surgindo. Exponho-me assim ao provável inconformismo do leitor: que se apresente, o debate é altamente desejável.
O jornalista Mino Carta escreveu um polêmico artigo, A Imbecilização do Brasil (MinoCarta). Concordo praticamente com tudo: vale a leitura. Resta citar minhas preferências. Literatura: Machado de Assis, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Música: compositores - Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque; intérpretes - Gilberto Gil, Jorge Benjor, Luís Melodia e Maria Bethânia. Cinema: Cacá Diegues e Gláuber Rocha (em parte). Teatro: Marília Pêra e Fernanda Montenegro. Televisão: Fernando Gabeira e Mário Sérgio Conti. Como se vê, tudo muito 'antigo'. A exceção é a televisão: os dois citados são novatos nesta mídia.
O futebol? Alemanha 7 x Brasil 1. Pronto. Os craques, ainda meninos, são sugados pelo rico futebol europeu. Os que ficam aqui maltratam a bola. Os dirigentes? Figuras destituídas de qualidade.
A ressurgência do carnaval de rua, no Rio de Janeiro principalmente, é uma ótima novidade. Nele, o folião extravasa seu dissabor contra os políticos, o governo, a falta de água e luz, o calor e muito mais. Tudo com muito humor. É isso: faltava dizer que o brasileiro é dotado de uma efervescente veia humorística, na base do "Rir é o melhor remédio": é o que torna animadíssimos os bate-papos de bar.
Epílogo
Comecei esta série sobre o Brasil muito animado, as estatísticas ajudando. Com o passar, meu estado de espírito foi definhando, chegando às raias da inquietude. A pergunta que me faço é esta: Por que meu sentimento pelo Brasil é tão ambivalente? A pista para a resposta reside na própria ilógica brasileira: um país desenvolvido e muito subdesenvolvido. Como pude mostrar.
*- Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, 26a. Edição, Companhia das Letras, 1995.