quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A Pax Americana* na Intimidade

*- Alusão à Pax Romana, paz imposta por força das armas e autoritarismo às províncias da antiga Roma imperial.


[John Kenneth] Galbraith (1908 - 2006), canadense - norte-americano, é reputado economista keynesiano e ex-professor de Harvard. No que interessa  a este artigo, assessorou em questões políticas e econômicas os presidentes democratas [John] Kennedy (1961 - 1963) e [Lyndon] Johnson (1964 - 1969). Os testemunhos da copa-cozinha do poder estão condensados em livro**. Seus casos e reflexões têm valor atual porque os meios e a dinâmica dos poderes imperialistas são essencialmente invariantes.

Kennedy deu glamour ao imperialismo norte-americano: jovem, bonito, cuidadosamente elegante e discreto (compare-se-o ao desajeitado, indiscreto e rude Nikita Khrushev, o grande adversário soviético da Guerra Fria). Modernizador em política interna -- direitos sociais, integração racial --, foi conservador em matéria externa, com o perigo da guerra total EUA vs. União Soviética sempre a assombrar. Em Kennedy, impressionam a franqueza para reconhecer as próprias fraquezas e a incapacidade de dominar os mecanismos do poder. Alguns exemplos.

A aventura da invasão de Cuba através da Baía de Porcos acabara em vexame total. Para evitar um fiasco parecido no Laos (sudeste asiático), Galbraith propunha envidar esforços por um Laos neutralista. Reação de Kennedy: "Galbraith, você tem que se convencer de que só posso dar-me ao luxo de um número limitado de derrotas em um ano." Sua admitida incultura agrícola: "Cresci numa região em que, para ver uma vaca, éramos levados de ônibus." Kennedy e o estranho exercício do poder: "Estou de acordo, mas não creio que o governo esteja." Diplomacia imperialista, nua e crua; sinceridade, idem:  "O presidente do Panamá diz que todos estes anos estamos sacaneando com os panamenhos, e eu estou de acordo com essa opinião." Sobre a pressão dos falcões do complexo militar para bombardear os locais de Cuba onde se localizavam os mísseis soviéticos: "Sacanas, nunca tive a menor intenção de fazer isso."

Johnson é tristemente lembrado como aquele que intensificou às alturas a sanguinolenta invasão terrestre do Vietnã (do Sul) a troco de mortes, mortes e mortes de vietnamitas e de norte-americanos. (Como é bem sabido, bem depois os Estados Unidos saíram desta inglória guerra humilhantemente derrotados, e ainda propiciaram o surgimento da ... república comunista do unificado Vietnã -- do Norte e do Sul.)

Para os estudiosos de reis e imperadores, a pequenez do fisicamente enorme presidente texano não deveria pasmar. Galbraith duvidava que Johnson alguma vez tivesse lido algum livro de economia. "Galbraith, você tem ideia do que faria o general Curtiss LeMay (um dos mais aguerridos falcões das forças armadas norte-americanas) se eu não estivesse aqui para segurá-lo?".  "Já disse àqueles gregos cretinos (os generais da cruel ditadura militar grega dos anos sessenta) para soltarem aquele filho da puta (Andreas Papandreou, ex-primeiro-ministro derrubado pelo golpe militar).".

Avançando muito no tempo, e quanto ao legado do presidente Barack Obama? A História lhe faria justiça, positivamente. Contradições e fracassos à parte, pode lhe ser creditado um extenso rol de boas ações e intenções . No front interno: (1) ObamaCare - democratização do acesso aos planos de saúde; (2) campanha pelo controle da venda indiscriminada de armas de fogo; e (3) enfrentamento dos lobbies das poluentes energias fósseis. No que concerne à política externa, suas pedras angulares são a diplomacia e o multilateralismo (concertação com outras potências menores). Os significativos resultados: (1) reaproximação com Cuba; (2) acordo nuclear com o Irã; e (3) desbaratamento pouco a pouco do apocalíptico Estado Islâmico. Em síntese, Obama parece vencer a disputa interna contra os falcões tresloucados e sedentos de sangue do complexo financeiro-industrial-militar. (Obama em off? À espera de depoimentos de um seu assessor.)

Por fim, imaginemos o republicano Donald Trump na próxima presidência. Xô maus pensamentos: o Mundo não merece!


**- Uma Vida em Nossos Tempos, J. K. Galbraith, Editora Universidade de Brasília, 1985.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

No Portal da Amazônia



Belém do Pará é um dos portais da amazônia. O cenário ao redor é típico: florestas e rios sem fim. O portentoso rio Tocantins, a pouca distância, chega a 50 quilômetros de largura! Tudo é tão vasto que se há por bem chamar baía: Baía do Guajará, diante de Belém; Baía de Marajó, margeada pela ilha de Marajó a oeste e o continente a leste. Baías de água doce, bem entendido: a primeira é a confluência de 3 rios, um dos quais, o Guamá, contorna a península de Belém; a segunda recebe as águas do Tocantins e da Baía do Guajará. A ilha de Marajó -- maior do que o Estado do Rio de Janeiro -- como que separa as águas do rio Amazonas a leste das do rio Tocantins a oeste. O conjunto todo compõe o delta do rio Amazonas. (O superlativo e quase selvagem Amazonas -- maior rio do mundo em volume d'água e, segundo certos critérios, também o mais extenso -- só banha uma capital, Macapá, no delta. Na foz, sua largura atinge 300 quilômetros!)

Belém e as mudanças climáticas. As chuvas continuam intensas o ano inteiro, todavia sem a regularidade de outrora. É findo o tempo em que os belenenses marcavam compromisso para antes ou depois do toró que caía pontual e diariamente no meio da tarde.

O Pará, como todos os estados da chamada Amazônia Legal, inspira maus pressentimentos. Desmatamento desenfreado, poluição com metais, violência impune dos poderosos contra os largados sociais. A freira Dorothy Stang, barbaramente assassinada, bem simboliza a luta, por enquanto perdida, em defesa das vítimas do estado-sem-justiça. Os mandantes estão bem identificados: até hoje, porém, vivem no entra-sai da prisão, beneficiados pelos inesgotáveis recursos que a justiça brasileira lhes permite -- justiça dos poderosos, frise-se. Insistindo, o desbravamento da amazônia se faz de maneira terrível: tão feio que não tem genial cineasta norte-americano que seja capaz de lhe dar o glamour do far west. Felizmente, o Pará é tão grande -- mais de 2 vezes a França -- que a região de Belém tem sido poupada da tragédia ambiental em curso no estado.

Propaganda federal na revista de bordo da TAM, a caminho de Belém: o governo se empenha em minorar os efeitos, sobre os ribeirinhos, da implantação da usina hidrelétrica de Belo Monte, no coração da bacia do rio Xingu. Dá este exemplo: 275 milhões destinados a ações indígenas. Imprecisões no ar: período de aplicação dos recursos (se grande, poderia ser um nada); nenhuma pista de quais ações são essas. Em contraposição, leio entrevista do bispo D. Erwin, 50 anos dedicados às populações do Xingu, ao jornal O Liberal. Declara D. Erwin: planejadas em Brasília, as casas para as famílias compulsoriamente desalojadas e arrancadas de sua terra não levam em conta a índole do povo paraense e amazônico, bem como as peculiaridades climáticas da região; apertadíssimas e tórridas, não há como atar uma rede refrescante para um familiar, parente ou amigo; os grandes projetos governamentais são todos anti-indígenas; o povo não é o sujeito da história. Louvor à razão e sensibilidade de D. Erwin.

No respeitável Museu Zoobotânico Emílio Goeldi, acontece uma exposição sobre a cultura dos índios Ka'apos. A tribo foi escorraçada do Pará (por quem? fácil de saber), ocupando hoje a duras penas uma reserva no alto rio Tucuruí, extremo oeste do Maranhão. O mais interessante é o ritual de iniciação sexual dos rapazes. Durante aproximadamente um mês, eles são afastados de todo convívio com moças, para esquecer o medo das mulheres! Um motivo e tanto para biólogos e antropólogos: sugere fortemente que a atávica insegurança dos homens frente às mulheres -- todas as raças e etnias incluídas -- tem forte carga genética. Em tempo: o museu, que é federal, passa por grave crise financeira. Uma campanha popular de ajuda está em vigência; infelizmente, arrecadação bem abaixo de suas necessidades prementes.

A avenida N. S. de Nazaré é linda: imensas mangueiras se perfilando ao longo dos dois lados da artéria, os galhos mais altos se entrelaçando, o todo formando um túnel verde escuro de aproximadamente um quilômetro de extensão. Faz lembrar o Cour Mirabeau, a avenida de Aix-en-Provence que o britânico apaixonado pela Provença, Peter Mayle, considera a mais bela da França: troquem-se as mangueiras por plátanos*. Enquanto que morar no Cour Mirabeau é luxo só, e que a avenida Nazaré é um oásis de frescor e platitude em meio ao clima quente e úmido da metrópole amazônica, os abonados de Belém preferem abandonar a avenida, à espera de vender seus belos e largados casarões às imobiliárias dos espigões, que já começam a pintar aqui e ali, falta de um plano diretor inteligente para a cidade (ou de qualquer plano diretor).

Os ricos e a classe média optam por altíssimas torres monocórdicas, algumas com 45 andares, em áreas desprovidas de qualquer encanto e aconchego. Selva de pedra. Fuga da barafunda social. E assim Belém vira Dubíndia: Dubai + Índia. Uma paródia de Belíndia, termo criado pelo economista Edmar Bacha para ilustrar o nível de desigualdade da economia brasileira: uma pequena e rica Bélgica (Dubai), em meio a uma imensa e contrastante Índia, curtida na dura luta pela sobrevivência.

Conclui-se com iguarias. Pratos: os deliciosos peixes pirarucu, dourada e filhote. Sobremesa: o insuperável sorvete de bacuri. O açaí, alimento de resistência dos moradores da floresta, é apreciado nacionalmente, de formas diversas; no Pará, é servido misturado com farinha de mandioca. (Não provei da maniçoba: praticamente os mesmos ingredientes de nossa feijoada, só que o feijão é substituído por folhas de maniçoba.) 

Que a amazônia sobreviva!


*- Une année en Provence (Um ano na Provença), Peter Mayle, NiL Éditions, 1994.