sexta-feira, 31 de julho de 2015

Deficiência Visual



Deficiência visual é eufemismo para uma situação muito mais drástica, cegueira. Em princípio, apavora pensar em uma vida na escuridão. Viver sem ver, como?! Seria ainda possível motivar-se, produzir, amar, sentir prazer, dormir bem, acordar disposto? Imensas e angustiadas indagações. Por que reflito sobre a cegueira? Porque ela me concerne em um certo grau, com todo o cortejo de aflições. Enfim, tenho glaucoma. Assintomático, só foi descoberto dez anos depois do início do processo glaucomatoso. Insidioso, faz diminuir o campo visual. Já perdi 30%. Nu e cru: vejo 70% ou sou 30% cego. É verdade que não interfere propriamente na acuidade visual mas reduz a amplitude da visão. (Por causa disso, amigos reclamam que os ignoro ao cruzar com eles nas ruas.) É como a cortina de um palco que se fecha lenta e continuamente, se não for detida. Sou dependente pelo resto da vida de colírios caros e especiais: espero que eles permanecerão sendo eficazes contra meu glaucoma e que minha genética ajude.

A literatura, fonte de conhecimento e compreensão, é uma de minhas sustentações para minorar as preocupações. Valho-me, uma vez mais, de Jorge Luis Borges, em particular seu ensaio sobre a cegueira*. Como é sabido, Borges conviveu desde tenra idade com uma deficiência visual progressiva, até a cegueira completa na parte final de sua longa vida. De imediato, alegremo-nos com ele por dois lindos motivos: (1) foi sem cessar um literata hiper produtivo e de arrasadora qualidade e lucidez; e (2) sentia-se rodeado de carinho dos próximos. Generalizava: as pessoas sempre têm boa vontade para com um cego.

A cegueira de Borges não era escura ou negra, era azul e verde. Mesmo no auge. As sombras azul-esverdeadas lhe compunham um bonito efeito. Idiossincraticamente, como era do feitio borgiano, sentia falta do preto, desejável para dormir. Lamentava ter perdido o vermelho, para ele a cor mais bela e luxuriante. Privado de visão para ler e escrever, não se deixou contudo acovardar. Tinha sua María Kodama para lhe ler e para pôr no papel sua produção oral. 'Escrevia' em média trinta trabalhos por ano, entre poesia, prosa e prosa poética. Dizia-se: só a cegueira me permite a concentração e o tempo para tanto.

Como o tema é tratado por outras ilustres personalidades concernentes?  Milton afirmava que sua cegueira era voluntária, pois propiciou-lhe aprimorar a memória; deu-lhe também a paz e o recolhimento necessários para escrever -- não importa como e com que denodo! -- o longo poema canônico, O Paraíso Perdido. James Joyce: "De todas as coisas que me sucederam, acho que a menos importante é ter ficado cego"; executou parte de sua vasta obra na sombra**. Incursão pela Antiguidade Grega. Oscar Wilde se queixava que sua poesia é visual demais: invejava Homero, que os gregos diziam que era cego para enfatizar que a poesia dele é antes de mais nada auditiva, musical. Demócrito de Abdera arrancou os olhos num jardim para que o espetáculo da realidade exterior não o distraísse. À maneira socrática: quem pode conhecer-se melhor que um cego?

Borges e sua arte nos deixam este legado. Todo ser humano deve pensar que tudo o que lhe ocorre não é gratuito: as coisas lhe foram dadas para determinado fim. Sobretudo as ruins, já que a felicidade é como matéria acabada. As desventuras, as humilhações e as vergonhas são como matéria-prima a ser transformada em algo enriquecedor da frágil condição humana. A cegueira é mais um instrumento para ser transmutado, entre os inúmeros que o destino nos oferece.

Nota - Soube que meu amigo Antão Moura também padece de problemas de vista. Torço para que sejam menores que os meus, e que tudo esteja sob controle. Escrevi este artigo pensando também nele. Gostaria que ele comentasse.


*- Jorge Luis Borges, Borges Oral & Sete Noites - A Cegueira, pp. 197. Companhia das Letras, 2011.
**- Borges não apreciava os consagrados romances joyceanos Ulisses e Fineganns Wake: achava-os enormes e quase ilegíveis. Porém admirava o Retrato do Artista Quando Jovem, e a maioria dos poemas de Joyce.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Como o largo Yangtzé ficou estreito



O rio Yangtzé é portentoso, em todas as medidas. Maior da Ásia, com 6.300 km de extensão. Caudaloso: vazão média de 30.170 m3. Percorre a China de ponta a ponta, mais precisamente no sentido noroeste - sudoeste - centro - este. Desemboca na capital econômica e maior cidade da China, Xangai. Seu curso inferior atravessa uma região densamente povoada e altamente industrializada. É o rio da unidade nacional chinesa, com sua bacia de 1.808.500 km2.

(Coteje-se-o com nosso rio da unidade nacional, o São Francisco. Os números deste último são comparativamente modestíssimos: extensão 2.830; vazão 2.943; bacia 641.000. Ao contrário do Yangtzé, é um rio de sertões -- "Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa --, muito distante de nossas zonas populosas e industriais.)

O rio, longe das margens
O Baixo Yangtzé era muito largo, ao longo de todas as estações do ano. De pouco tempo para cá, vem se estreitando: primeiramente, só no auge da estação invernosa seca; correntemente, por metade do ano, inverno e primavera. Observe-se, na foto ao lado, a engenharia para se chegar das antigas margens à água do rio encerrado em sua calha. E não é por redução da vazão histórica, que continua praticamente inalterada! A estreiteza da corrente é compensada pelo aprofundamento natural da calha. Embarcações de alta tonelagem continuam navegando pelo rio, restritas porém a seu canal cada vez mais escavado. (Chegará o dia em que será preciso uma escada para atingir a água!) A imagem é próxima a Xangai, no outrora trecho mais largo do rio. 

Para aguçar nossa perplexidade com fenômeno tão excepcional, as causas não são as habituais da degradação dos cursos d´água: nem seca e nem poluição. Não obstante, devem-se às drásticas intervenções humanas no fluxo do imenso rio. As conseqüências vão muito além da mera transformação estética, e são muito graves. Examinem-se os motivos e seus efeitos

A China, "fábrica do mundo" -- epíteto cada vez menos orgulhoso, tal o ônus ambiental --, é avara de energia. Maior queimadora de minerais fósseis de mundo, como também é líder em produção de energia elétrica. No Alto e no Médio Yangtzé, pululam barragens geradoras grandes e médias. Três Gargantas, a última hidrelétrica antes do Baixo Yangtzé, é simplesmente a maior do planeta. No percurso do rio por entre as barragens, foram construídos diques de contenção das águas do rio, para evitar a inundação de terras agricultáveis. A conjunção barragens - diques impede que o enorme caudal excedente descendo pelo Baixo Yangtzé carregue sedimentos anteriormente provenientes da erosão das margens. A água límpida é entretanto riquíssima em minerais corrosivos, livres de corroer na ausência de sedimentos neutralizantes. Com poder de literalmente derreter e cavar a calha calcária do rio. A uma velocidade impressionante. Profundidade média superior a 100 m, em rápido aumento. O Yangtzé se confina em sua calha abissal, por metade do ano.

O vale do Baixo Yangtzé é pontilhado de lagos, médios e pequenos. Centenas de comunidades dependem deles: abastecimento d´água, pescados, plantações de arroz. Os lagos se intercomunicavam com o grande rio, se alimentavam dele. No período seco, ficam agora apartados do rio estreitado. Secam.  Calamidade pública: falta d´água e de alimentos.
    
É outra consequência deletéria de geração hidráulica de energia, por bizarra que seja. Louve-se o imenso esforço da China em reduzir sua dependência de energias fóssil e hidráulica. Já se tornou outrossim a maior produtora de energias solar e eólica. A anotar que tudo para ela ainda é pouco.

Na contramão dos esforços planetários por preservação ambiental, a governança brasileira prossegue inebriada de petróleo do pré-sal e de hidrelétricas. (Quase todo dia surgem denúncias perturbadoras dos impactos altamente negativos da usina de Belo Monte para a ecologia amazônica. Apenas um exemplo.) A permanecer essa miopia estratégica, o Brasil poderá ser advertido na conferência sobre o clima, a realizar-se em Paris, no final deste ano. Nos desdobramentos, os riscos de sanções econômicas aparecerão.   

sábado, 18 de julho de 2015

O Inferno Brasileiro



Júlio Vitorino Figueiroa -- sobrinho de meu amigo e colega de trabalho, Ângelo Brayner -- é um valoroso jovem cearense. Professor da Faculdade Nordeste (FANOR), Mestre em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Doutorando em Comunicação pela UFBA. Vem de sofrer uma experiência terrificante, desde uma praia turística de Fortaleza até uma intimidante delegacia policial. Angústia além de kafkiana, porque impregnada de violência física policial; mais apavorante do que o inferno borgiano, posto que dolorosamente concreta. Uma ilustração, entre tantas outras, de um Brasil de costas para a civilização.

Abrem-se aspas para Júlio. 
Sábado, 11 de julho. Ato minha bicicleta dentro do Estoril (rua dos Tabajaras, 359, Praia de Iracema, Fortaleza) e espero dois amigos. Escoro-me na entrada de um estacionamento. De dentro, três pessoas -- policiais civis disfarçados, identificaram-se depois -- se aproximam numa postura que a minha reação primeira entende como suspeita: coisa estranha... estes caras tão procurando alguém pra brigar ou tão a fim de roubar alguma coisa. 
--- Ei! Ei! O que é que tu tava bilando* a gente ali, hein? (um dos policiais)
--- Como é? Bilando o quê!!? Num tava bilando nada não!”(eu)
--- Bilaaaando!! tu tava bilaaando!” (policial) 
Vejo que o policial empunha uma arma de fogo. O cara enche a mão com a minha camisa e me puxa pelo peito com violência, tentando me arrastar para dentro do estabelecimento, intensificando o tom da ameaça. Uma porrada vindo de algum lugar entra na lateral da minha cabeça, com gosto e muito peso. Fico atordoado. Mas é só a primeira. Outros golpes pesados entram em minha cabeça. 
--- SEU MERDA!!!! SEU DROGADO!!!! TU TÁ PENSANDO O QUÊ???? (policial)
--- O que é isso?!!! Vocês tão ficando doidos? (eu) 
Na nuca, têmpora, maxilar e costas. E entra mais um, dois e três golpes em cheio de mão aberta enquanto eles rasgam minha camisa pela força do puxão. Peito e ombro à mostra. Meu corpo é carregado para dentro do estacionamento, mais distante da rua, e derrubado no chão. Os chutes começam. Mais policiais estão ali. 
Me livro do que sobrou da blusa e respondo verbalmente negando as acusações de tráfico, recuperando aos poucos a energia e o entendimento para uma postura altiva e digna. Mexem nos meus bolsos, retiram celular, carteira e meu cantil, enquanto distribuem insultos gritados de drogado e vagabundo. Eu digo que estão vacilando, tão fazendo a coisa errada, que podem revistar o que quiserem o quanto quiserem. Tapa. Critico a abordagem e a ação, levo tapa. Contesto, tapa. Eu olho, é tapa. Não me comporto como se deveria esperar. Tapa. 
É transmitida a informação de que vou ser autuado por desacato e blá-blá-blá. Sou ordenado a ficar sentado ao lado de quatro adolescentes, já enfileirados no chão. “Eu sou usuário, mas me pegaram, porque tão dizendo que é pra vender”, foi o que o adolescente de blusa verde disse quando eu buscava entender. 
Chegam duas viaturas do ronda do quarteirão, que barram o estacionamento. Eu e o adolescente vamos na caçamba aberta de um veículo Hilux prata particular. Sou algemado junto ao jovem, e um policial sobe na caçamba com uma pistola preta em punho, mantendo-a abaixo do campo de visão de quem observa fora do carro. Durante o caminho, tento manter as algemas à vista para condutores e pedestres. “Tamo indo pra delegacia de narcóticos", diz o policial quando eu pergunto. 
Preencho uma ficha de comparecimento a uma audiência com uma delegada. O policial que me recebe na mesa mostra vários pertences. “O que é que é teu aqui?”. “Celular, carteira e cantil. Mas tem também minha camisa que eles rasgaram e ficou lá, junto com a minha dignidade" . Ele ri. “Olhaí, doutora. Ele disse que tem que devolver também a dignidade, oh”, voltando a abrir o sorriso. A delegada, de blusa gola polo preta com a marca da polícia bordada no peito, aparece e fica de pé apoiada na mesa, de frente pra mim. Ela age numa frequência semelhante à dos mais exaltados, só não me agride fisicamente.
--- Você não quer ser escutado?? Então pode começar a falar que eu tô escutando! (delegada, de pé, um tanto furiosa)
--- Eu quero saber o nome completo de todos os caras que me bateram pra denunciar (eu) 
--- Isso aí você vê na delegacia ‘tal’ segunda-feira, não é aqui não isso (delegada)
Mais um pouco e ela perde a paciência e desiste de me escutar. Abana a mão direita para o policial que preenche a ficha: “qualifica, qualifica”, desaparecendo pra não voltar mais.
Abre-se um momento de conversa entre alguns policiais ali presentes e eu. Minutos depois, por discordar, recebo insultos de “palhaço, cala boca (4x), burro (5x), vagabundo (?), vá com seus amigos baitolas, você é um ignorante, etc….”. Insultam-me, incansáveis, sem baixar o volume, de dentro do elevador até a saída da Delegacia de Narcóticos.
Fecham-se as aspas.

Refeito do trauma, na medida do possível, Júlio desabafa este libelo contra a situação geral na qual vivemos. "O problema da violência é enfrentado por todos nós, cidadãos engraxates, cidadãs donas de casa, cidadãos estudantes, cidadãos motoristas de ônibus, cidadãs professoras, cidadãos engenheiros, cidadãos desempregados, cidadãs dançarinas, cidadãos músicos, cidadãos policiais (sim, existem cidadãos policiais), cidadãos surfistas. Violência do ciclista contra o pedestre, violência do homem contra a mulher, violência do ônibus contra o ciclista. Justiça cada vez fora de moda, dentro e fora da polícia." 

O que fazer? Ser cidadão. Direitos e deveres. Não aceitar as agressões e as injustiças: reagir, protestar, botar a boca no trombone. Sem abdicar de respeitar os outros e o meio ambiente. Enfim, comportar-se assim como Júlio. Não há salvação, fora da consciência da cidadania.


*- Bilar: olhar fixamente. Gíria.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Euro, Uma Ilusão Monetária?



O francês Emmanuel Todd* publicou em 1998 um polêmico e premonitório ensaio, L´Illusion Économique (Éditions Gallimard), no qual argumenta à fartura que o livre comércio e a moeda única europeia são conceitos incompatíveis, sentenciando o Euro ao fracasso. À altura de 2015, o mínimo que se pode dizer em favor do libelo anti unidade monetária de Emmanuel Todd é que a zona do Euro tem desde então vivido uma ascendente crise política, social e econômica.

A análise de Emmanuel Todd -- não nos esqueçamos, 'estamos' em 1998 -- parte da seguinte premissa: a globalização, eufemismo moderno para a liberação mundial das barreiras alfandegárias, se fará acompanhar da queda durável da taxa de crescimento e do formidável aumento das desigualdades no interior dos países ocidentais desenvolvidos. O problema é que consumo e produção de bens se dessintonizarão, às expensas da distribuição de renda. Aumentar a produtividade (leia-se: diminuir salário, cortar emprego) virará o mantra dos privilegiados e dos governos (dos privilegiados).

Por que a dessintonia consumo-produção se agudizará com a globalização? O livre comércio separa geográfica, cultural e psicologicamente a oferta da demanda. Um país A produz para os consumidores dos países B, C, D, E e reciprocamente. A demanda se dissocia em interior e exterior. Para ser globalmente competitivo, a prioridade é a demanda exterior. As classes abonadas de A, B, C, D e E acharão maravilhoso comprar importados de alto valor agregado cada vez mais baratos.

Em contraposição, a demanda interior entrará em crise. Na esteira, desemprego, baixos salários, PIBs com crescimento pífio, quando não recessão. Solução possível? Protecionismo seletivo + câmbio flutuante. As novas governanças ocidentais abominam o protecionismo. Moeda única é câmbio fixo. O Euro não poderá dar certo.

No contexto europeu, sem protecionismo e com câmbio fixo, um país mais fraco economicamente como Portugal precisará comprar de países fortes -- Alemanha, França -- produtos essenciais caríssimos, ao passo que dificilmente poderá vender seus caríssimos produtos não essenciais. Tudo em euro hiper valorizado. Resultará que os países fortes se tornarão mais e mais credores dos países fracos, acentuando assim a desigualdade nas trocas comerciais e os desequilíbrios financeiros. Chegará o tempo em que os países fracos não poderão honrar suas dívidas para com os países fortes. Os fortes por sua vez padecerão da concorrência exterior, como a da China, livre para flutuar sua moeda.

Tem muito mais. Os países do bloco europeu são muito diferentes entre si, além de língua e cultura. As constituições são diferentes, assim como as políticas industrial, agrícola, bancária e trabalhista. Jovens portugueses qualificados enfrentarão cada vez mais dificuldades para trabalhar em países fortes, eles próprios também em crise, devido às barreiras que lhes serão impostas por poderosos sindicatos. Alemanha e França não anteverão economia de custos para investimentos produtivos em países fracos. Em suma, a União Europeia não é integrada como uma nação, o que impedirá a necessária mobilidade de capitais produtivos e de mão de obra para os ajustes socioeconômicos.

Assim falava Emmanuel Todd no já longínquo 1998. Voltemos a 2015. Emmanuel Todd se confirma. Pequenas atualizações: troque-se Portugal pela Grécia (não impede que Portugal, Espanha e Itália estejam firmíssimos na linha de tiro da crise europeia); a China, o grande ganhante da globalização, entrou há algum tempo na zona de desconforto, eis o novíssimo estouro da bolha de ações de suas empresas. Emmanuel Todd só não pôde prever que o Euro é duro de queda, ou que a esquizofrenia das lideranças europeias não parece ter limites.

Considerações à margem. É preciso refutar a posição simplista (as opiniões simplórias são quase sempre perigosíssimas) de que a culpabilidade da hecatombe grega recai sobre sua população gastadeira e irresponsável. É falso. A imensa maioria do povo grego tem sido estuprada financeiramente lá se vão cinco anos, para ver a dívida do país dobrar no mesmo período. O dinheiro emprestado pelos demais membros da comunidade europeia e pelos agentes privados cai nos bancos e nunca nas agências de desenvolvimento. Corrupção negra, branca, sabe-se lá de que cor: a minoria que comete crimes financeiros -- entre governantes, financistas, empresários e acólitos dos poderosos -- que vá para a cadeia. Viva a Grécia!  


*- Historiador, antropólogo, demógrafo, sociólogo e ensaísta. Neto do romancista e filósofo Paul Nizan. Primo em segundo grau do antropólogo Claude Lévi-Strauss.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O Inferno Borgiano



Sanguinolência mortífera na Tunísia, no Kwait e na França; terrorismo branco nos Estados Unidos; emigrantes africanos se afogando no Mediterrâneo; Grécia exangue; Índia e Paquistão se torrando de calor; Nordeste brasileiro esturricado; governança global esquizofrênica; intelectualidade esterilizada; cultura alienada; política e economia brasileiras no volume morto. Não pára por aí. Corro revisitar a discussão A duração do inferno, de Jorge Luis Borges.

Borges é ateu e extremamente sensível a questões religiosas: afinal, mais de nove entre dez pessoas são de alguma forma ligadas a religião. Dispôs seu imenso talento lógico, sua aguda consciência da fragilidade humana e sua enorme erudição no afã de vislumbrar significâncias em dogmas religiosos. Vontade de crer, talvez.

A noção do dogma do Inferno, não importa a religião específica, se exprime assim: lugar de castigo eterno para os maus. A pena é infinita porque a culpa também o é por atentar contra o infinito Deus. Mas o argumento é um sofisma: a mesma culpa é santa porque Deus também é santo. Ou que, por exemplo, as ofensas feitas a um tigre devam ser raiadas.

Entre os filósofos, encontram-se ao menos duas belas e humanísticas posições contra a eternidade do Inferno. A imortalidade é um dom de Deus em Cristo (humano). Não pode se voltar contra a humanidade: quem a merecer, recebe o céu; quem é indigno de recebê-la, morre para morrer. A segunda é um raciocínio por absurdo: é um escândalo aceitar que o homem pecador e o Diabo possam provocar Deus para sempre.

O tema na literatura. Para Dante Alighieri, as labaredas do Inferno não fazem mais do que abrasar a paixão e o amor eternos de Paolo e Francesca. Baudelaire acha tão tresloucada a ideia de imperecíveis tormentos, que brinca de adorá-los. E há o debochado mór, Tertuliano de Cartago: "Que admiração sentirei, que gargalhadas, que comemorações, que alegria quando vir tantos reis soberbos sofrendo nas mais ínfimas prisões das trevas; tantos graves pregadores se consumindo em rubras fogueiras com seus ouvintes iludidos; ... ."

O inferno das religiões não deve existir. Todavia outros infernos existem. Para descrever um deles, Borges usa o recurso do meta sonho. Sonhou que saíra de um cataclísmico sonho, e que despertara num quarto mal iluminado e tétrico. Estava só. Pensava com medo onde estou? e compreendia que não sabia. Pensava quem sou? e não podia se reconhecer. Dizia-se: esta vigília sem destino será minha eternidade. Despertou. Tremendo.

Mais inferno? Nosso Mundo descrito no primeiro parágrafo.