sexta-feira, 31 de março de 2017

Direita Alternativa



A direita alternativa (alt-right) é um vasto amálgama de movimentos nacionalistas e xenófobos prosperando nos Estados Unidos. Responsável direta pela ascensão de Donald Trump à presidência, insurge-se contra a direita tradicional 'vacilante' (Partido Republicano, The Wall Street Journal, ... ) ante o canto da sereia 'esquerdista' (Partido Democrata, The New York Times, The Washington Post, ... ). Trata-se de um fenômeno extremista norte-americano com a ressalva que, em se tratando da maior potência planetária, pode influenciar o mundo todo. Preocupação geral. Na continuação, comentam-se quatro emblemáticas fontes difusoras de ideologia alt-right.

O Center for Immigration Studies (CIS) é um centro de pesquisa sobre imigração cujo fundador é conhecido por ser "um cruzado anti-imigração". Um relatório recente do CIS sobre a educação básica não nuança suas posições hostis à imigração, certamente com "fatos alternativos" em apoio. Eis cinco diabretes do relatório. (1) Em 2015, quase 25% dos alunos das escolas públicas eram rebentos de "família imigrante"; em 1980, a proporção não passava de 7%. Rumo à ocupação integral da escola pública por não norte-americanos. (2) Ao longo dos últimos decênios, a classe política escancarou as portas à imigração, em flagrante desrespeito às leis concernentes: esta política negligente traz consequências altamente negativas para a qualidade do ensino público. (3) A imigração fez aumentar o número de crianças pobres ou falando uma língua estrangeira nas escolas públicas, o que constitui uma grave dificuldade suplementar ao desempenho da educação pública. (4) Fechando os olhos para a imigração clandestina. o establishment compromete seriamente o futuro das crianças norte-americanas. (5) Os infantes norte-americanos têm suas próprias vidas em perigo constante: em 16 de novembro de 2010, Joshua Wilkerson foi torturado e assassinado por um colega de classe imigrante clandestino.

O ultra conservador site Breitbart -- breitbart.com, 23 milhões de visualizações em novembro de 2016 -- é useiro e vezeiro em publicar artigos misóginos, xenófobos e racistas. Com a intenção de implantar-se também na França, e acintosamente ao lado da candidatura presidencial de extrema direita de Marine Le Pen, traça um quadro apocalíptico do país das Lumières, distorcendo premeditadamente os fatos. Manchetes e artigos à beira da histeria. Quatro títulos: (1) Paris transformada em zona de guerra por causa da violência dos migrantes, unidos à extrema esquerda para atacar a polícia parisiense; (2) Marine Le Pen brada para salvar a ameaçada civilização francesa; (3) Pesquisas preveem uma vitória contundente de Marine Le Pen, no primeiro e no segundo turno das presidenciais francesas; e (4) Le Pen ganha o debate entre os candidatos, com uma postura patriótica e combativa.

Fox News -- 65 milhões de audiência mensal -- é o canal de notícias mais visto dos Estados Unidos, bem longe à frente do rival CNN. Seu apresentador Sean Hannity é um hábil manipulador ideológico de extrema direita, adepto da teoria do complô e da irradiação de falsidades como a de que o ex-presidente Obama não seria norte-americano. Ultimamente, Sean Hannity tem vituperado contra os juízes que revogaram decretos de Trump: não passam de joguetes da "esquerda alternativa radical", segundo suas palavras. E acusa, desprezando a verdade: "Se a esquerda alternativa radical insiste em solapar as medidas do presidente [Trump] para garantir a segurança dos americanos, essa gente sujará as mãos de sangue. A nação a responsabilizará."

O site Infowars -- infowars.com, 8,2 milhões de visitantes em março de 2017 -- é a vitrine internet do célebre animador de rádio e produtor texano Alex Jones. Ligado  ao  lobby das armas, ele é notadamente conhecido por ter propagado que o massacre ocorrido na escola primária Sandy Hook, em 2012 (28 mortos, entre os quais 20 crianças), foi um embuste. Quando de sua recente visita aos Estados Unidos, a chanceler alemã Angela Merkel não perdeu a oportunidade de alertar Trump sobre os perigos do fechar-se ao mundo. Ferozmente nacionalista, Alex Jones passou a seus ouvintes uma versão grosseira e fantasiosa do encontro dos dois líderes, chegando ao despautério de dizer que Trump dera uma lição de valores norte-americanos a Merkel, "destruindo suas baboseiras pró-globalização".

À guisa de conclusão. A ascensão impetuosa da direita alternativa se dá na razão direta do fracasso das políticas do establishment em lidar com a massa crescente dos marginalizados sociais. Nos Estados Unidos e alhures, As desigualdades se aprofundam, a produtividade e os salários estagnam, a criminalidade e a toxicomania aumentam de forma avassaladora, as dissenções sociais se agravam. A desconfiança face ao poder político é quase total. Só resta às elites rever profundamente sua governança, se o objetivo for apagar para valer o incêndio extremista. Pelo andar da carruagem, certeza zero de que o farão. (A União Europeia, frente aos tsunamis do Brexit e do caos grego, ensaia um grande mea culpa reformista. Será?!) Adaptando à situação um conhecido provérbio, "Quem pariu a Direita Alternativa, que a embale".

sexta-feira, 24 de março de 2017

O Agronegócio na Berlinda: Além da Carne Fraca



Aos sugestionáveis, o poderoso lobby do agronegócio brasileiro impunha a ideia de que era o setor exemplar da economia: modernizador do campo, maior gerador e mantenedor de empregos, principal exportador, padrão de qualidade internacional. Ambição de tornar nosso país o maior produtor mundial de carne e soja. Comanda a armada ruralista o mais poderoso barão do campo, o Ministro da Agricultura Blairo Maggi. Bilionário da agroindústria, é o "Rei da Soja" e dirige o grupo Amaggi, líder planetário de soja.

Eis que a Policia Federal, com sua Operação Carne Fraca, joga muita água na fervura do negócio agropecuário. O setor não escapa da corrupção endêmica que assola o Brasil. As primeiras ações preventivas para tentar estancar os malfeitos vindos à luz: vinte e um frigoríficos de grandes marcas proibidos de exportar carne com suspeição de podre (para o mercado interno pode, não é Sr. Maggi, quanto desrespeito e desprezo pelo povo brasileiro); dois superintendentes do ministério -- nomeados pelo Sr. Maggi -- e dezenas de fiscais demitidos ou afastados. Como sempre, a tática de defesa é diversionista: tratar-se-ia de problemas pontuais, o que não justificaria o 'estardalhaço' da Polícia Federal. Não vai colar, Sr. Maggi e Sr. Temer, o povo brasileiro começa a tomar consciência de cidadania.

Feita esta abertura sobre a carne fraca, o tema principal do artigo são as graves agressões à natureza engendradas pela pecuária extensiva e pela cultura em escala industrial de oleaginosas. O que se passa no Brasil e na Argentina, os dois gigantes sul-americanos do agronegócio?

Mato Grosso, estado amazônico com mais de 900.000 km2 -- quase duas vezes a França --, tem se transformado, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, em uma imensa plantação de soja, às custas de desflorestamento desenfreado e destruição do cerrado. Entre 1991 e 2016, a área plantada no Estado passou de 1,2 para 9,4 milhões de hectares.  Apesar dos protocolos firmados entre o governo federal e a indústria agroalimentar no sentido de frear o desmatamento, este prossegue via práticas ilegais e corrupção. (É mais que oportuno lembrar: antes de Ministro da Agricultura, Blairo Maggi foi senador de Mato Grosso pela gambiarra da suplência, e depois governador do dito Estado. Foi 'agraciado' pela ONG Greenpeace com a "Moto serra de Ouro".) O pantanal mato-grossense, maior viveiro de fauna e flora do mundo, vive um nefasto processo de assoreamento, por conta da crescente quantidade de matéria em suspensão trazida pelos rios que perdem a proteção ciliar de suas margens. As chuvas escasseiam na amazônia mato grossense, o calor aumenta, as queimadas naturais ou provocadas debilitam as florestas ainda poupadas pelas moto serras dos homens. Tragédia conscientemente ignorada pelo oba-oba dos ruralistas.

O agronegócio da Argentina se concentra no Pampa, uma extensa região que compreende as províncias de Córdoba, La Pampa, Santa Fé e parte da província de Buenos Aires. Fértil, pluvioso e plano, antes do boom da indústria agroalimentar o pampa consistia em florestas e também matas ralas próprias para pastagem -- o equivalente brasileiro do cerrado. Hoje, é como se restos de floresta procurassem um 'cantinho' que seja para sobreviver: predominam à larga tanto enormes plantações de soja quanto pecuária extensiva bovina. Como o Brasil, a soja e a carne são os principais itens da pauta de exportação argentina.

Pasmem, o negócio agroindustrial fez da Argentina a líder mundial de desmatamento (!) (sic). A natureza se vinga, implacável. Considerem-se áreas iguais de floresta natural, pastagem e campo de soja: em comparação com a primeira área, a segunda absorve três vezes menos água de chuva, a terceira dez vezes menos. O lençol freático do pampa, que se encontrava a dez metros de profundidade, está agora a menos de um metro da superfície: os solos saturados não podem mais absorver a água das chuvas (Fonte: Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária, da Argentina). Inundações catastróficas se repetem várias vezes a cada ano. Diques são construídos para impedir a inundação de cidades, mesmo em ausência de chuva. O pampa fica literalmente coberto de água por muito tempo fora da temporada chuvosa, causando imensos prejuízos aos produtores de soja e pecuaristas. Sem falar da esterilização dos solos por excesso de água e por pesticidas, e dos danos na estrutura de transportes.

Nos primórdios da derrubada de florestas, os magnatas do agronegócio esnobavam os ecologistas que alertavam para as implicações do desmatamento no aquecimento global. À maneira Trump, tachavam os ecologistas de chatos alarmistas. Face às calamidades dos tempos atuais, a 'culpa' não é do modelo agroindustrial vigente, mas das mudanças climáticas. Haja hipocrisia.

E pensar que tudo poderia bem se arranjar: carne forte, soja saudável e natureza no essencial preservada. Infelizmente, confiar na racionalidade dos homens é espera inglória.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Falsos Cognatos



"Eu conheço o Brasil há sessenta anos. Ele sempre me surpreendeu, por vezes frustrou, mas nunca me decepcionou", assim falava o francês Gilles Lapouge (1923 - ) lá pelos idos de 2011. Escritor e jornalista, colabora com o jornal O Estado de São Paulo desde 1951. Viveu integralmente no Brasil de 1950 a 1953, e as revisitas não se contam. Aproveitou para esquadrinhar nosso país de norte a sul e de leste a oeste, tudo registrado no culto, brilhante e saboroso Dictionnaire amoureux du Brésil ("Dicionário dos apaixonados pelo Brasil"), cuja primeira edição brasileira apareceu em 2014. Do dicionário, explora-se aqui o 'verbete' "Falsos Cognatos", sobre vexames de aprendizado do então neófito em português. (Ver também "Proust nas Favelas" em O Brasil de Gilles Lapouge, postagem de 23/04/2015.)

Em uma recepção no consulado da França, uma brasileira perguntou a Gilles Lapouge se ele andava sempre constipado (no sentido de resfriado). Lapouge reagiu mecanicamente: "não, não" -- em francês,"constipation" só tem um significado: prisão de ventre --, ante o olhar incrédulo e jocoso da moça. Mas a dúvida se lhe instalou. Devia procurar um médico? Por quê, se não sentia cólicas nem mal-estar? O filósofo Voltaire pode lhe ter ocorrido: se a 'borra' não desce então sobe [para a cabeça]. Estava com semblante enfezado (no sentido etimológico), por certo. Por fim, um vizinho o tranquilizou: estrangeiros recém-chegados tendem a ficar constipados, a se resfriar, de tanto ultrapassar paralelos e longitudes, quiçá oceanos.

Eis que Gilles Lapouge passa diante de uma mercearia, com o cartaz afixado: "Fechado por motivo de luto familiar". Ele ficou ao mesmo tempo embasbacado e estupefato. Dois irmãos em luta de foice? Ou marido e mulher em "pega prá capar"? Levaram a coisa bastante longe: não só fecharam a loja como também deixaram claro o desentendimento a toda a vizinhança. Lapouge não podia deixar de admirar a maneira como esses comerciantes enfrentavam seu destino e mantinham as pessoas ao corrente de sua desavenças. Na manhã seguinte, a mercearia estava aberta, para seu conforto: adora banana e doce de leite. Pasmado, ficou então sabendo que, em português, luto não quer dizer "lutte", isto é, luta, mas recolhimento pela morte de alguém.

Num certo dia, Gilles Lapouge caminhava apressado sob forte chuva, os cabelos colados na cabeça. Uma moça cutucou a amiga ao lado, em voz alta de ser ouvida: "Olha que rapaz esquisito!". Lapouge se sentiu vaidoso, ego inflado -- "exquis", palavra francesa que quer dizer requintado, fino, sofisticado. Em bom português: excêntrico, extravagante e pior, até feio, de mau aspecto. Fácil imaginar a decepção de Lapouge e o prestar-se a zombarias dos amigos.

Gille Lapouge leva a pensar em minhas peripécias quando aprendiz de francês. Por exemplo, o falso cognato "pourtant": não é "portanto" como parece, e sim "todavia, no entanto". "Adoro futebol, "pourtant" [todavia] sou um torcedor", decididamente não dá. E o gênero de numerosas palavras? Arranham nossos ouvidos lusófonos "a "mer" [mar]",  "a "banque" [banco]", "o "tapioca" [tapioca]", "o "Venezuela" [Venezuela]". Tem ainda o por vezes 'misterioso' pronome "en". E outras coisas mais. Ficaria tudo para um outro artigo.

Cansativos e perturbadores os primeiros tempos de Gille Lapouge no Brasil, e os meus na França? Bem ao contrário, foram experiências altamente estimulantes, malgrado os percalços. A cada dia, um obstáculo vernacular vencido, animação crescente: admirável mundo novo. Meus filhos pré-adolescentes à época, que alegria vê-los inteiramente à vontade em questão de poucos meses: como não tinham vergonha de errar, assimilaram a nova língua muito mais rápida e eficazmente do que eu, adulto com orgulho besta.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Desemprego e Emprego Precário



O Brasil econômico: queda do PIB de 3,8% em 2015, e de 3,6% em 2016; taxa de desemprego se aproximando de 13%, com tendência de não arrefecer. Lamentavelmente, as respostas a "Como sair da pior recessão de nossa história?" não são um projeto de nação: uma reforma da previdência que só enxerga superavit, uma flexibilização do trabalho que dispensa as leis e a justiça do trabalho, uma reforma tributária que taxa os pobres e livra os ricos. Como tão bem resume Clóvis Rossi, em seu artigo na FSP de 05/03/2017, as expectativas que mudaram foram as do tal de mercado.

Como tem se dado o debate sobre crise econômica nos países europeus que nos são paradigmáticos? Leve-se em conta, em todos eles menos a Itália, a diminuição ao menos momentânea do desemprego (ver a tabela abaixo, por ordem crescente de taxa de desemprego em 2016).  


Tanto nos países onde o desemprego não chega a ser propriamente um drama -- os quatro primeiros da tabela -- quanto naqueles com alto desemprego -- os três últimos --,  o que se entende verdadeiramente por crise inclui também a existência tanto de empregos precários quanto de desamparo social. Como se vê, discussão diametralmente oposta à que ocorre no Brasil. Aos detalhes, país por país.

República Tcheca. Praticamente, o país do pleno emprego. Surpresa? Nem tanto. A indústria tcheca é tradicionalmente sólida. À parte sua reputada marca automobilística Skoda, a manufatura de artefatos finos de desenho não tem rival em qualidade. A cadeia globalizada de produção funciona assim: madeira dos Estados Unidos; na China, a madeira é cortada em pranchas; a madeira pranchada segue para Hamburgo, Alemanha; de Hamburgo para a transformação em objetos de desenho na República Tcheca; escoamento da produção principalmente nas papelarias norte-americanas. O problema? A baixa remuneração da mão-de-obra tcheca. O poder de compra do salário médio não representa senão 59% da média européia. As empresas financeiramente saudáveis são incentivadas de diversas formas a aumentar os salários de seus empregados, visando gradativamente à paridade com os salários da União Europeia.

Alemanha. A grande discussão das eleições ao parlamento que se darão em setembro próximo -- o regime político é parlamentarismo com presidente simbólico -- é o questionamento das leis de flexibilização do trabalho levadas a efeito pelo chanceler Gerhard Schröder, em 2010. Mais justiça social na Alemanha é o tom das campanhas dos candidatos à chancelaria.  Três pontos cardeais: aumento da duração máxima do salário-desemprego, que foi reduzida por Schröder de trinta e dois para dezoito meses; revisão da política de salário mínimo;  e estabelecimento de um teto para os salários e bônus dos dirigentes de empresa.  

Reino Unido. À primeira vista, tudo parece ir muito bem: a taxa de emprego -- proporção de pessoas em idade de trabalhar efetivamente trabalhando -- atinge um nível recorde; o desemprego está no mais baixo índice dos últimos dez anos; e nunca tantas mulheres participam do mercado do trabalho. De outro ângulo, porém, a visão se turva: os salários estagnam e o trabalho em tempo parcial não cessa de crescer. Em suma: apesar das aparências em contrário, a população em geral se empobrece e os serviços de saúde e educação se precarizam. A grande pauta político-econômica são propostas para superar a crescente perda de qualidade de vida dos britânicos e dos irlandeses do norte.

Suécia. O sistema sueco que norteia as relações entre empresas e empregados agrada a uns e outros: se, por um lado, as empresas têm liberdade para demitir, por outro lado os desempregados são indenizados com justiça, além de se beneficiarem com cursos de formação / reciclagem e assistência para a procura de novos empregos. A fortaleza do sistema se ancora nos acordos coletivos celebrados entre as organizações patronais e os sindicatos. Apesar de tudo isso, persistem bolsões de pobreza nas maiores cidades do país. Mas esses bastiões problemáticos não são largados ao abandono: uma agência de trabalho temporário cuida especificamente de seus moradores, atingidos pelo desemprego e pela delinquência. A ideia é tirar do buraco aqueles que não têm a formação e a qualificação necessárias, dando-lhes a chance de mostrar de que eles são capazes. E tem funcionado: é mesmo a principal razão da inflexão do desemprego (ver a tabela).  

França. O desemprego na França, sempre em torno de 10%, é portanto crônico. Não se trata porém de recessão continuada, mas de estagnação. A tradição industrial francesa se acha solidamente fincada na arena internacional: as empresas são financeiramente saudáveis e inexistem demissões em massa. O problema todo é que elas não contratam, ou contratam pouco, optando por investir em altas tecnologias. Do ponto de vista da nação altamente politizada, o desemprego é uma chaga que precisa finalmente ser tratada para valer. Não dá outro assunto nas campanhas às eleições presidenciais que se avizinham. O leque de propostas é amplo: redução da pressão fiscal sobre o trabalho; enxugamento da máquina burocrática estatal visando a investimentos; concentração dos investimentos em energias renováveis e na formação de jovens e desempregados; taxação dos robôs industriais; e renda mínima universal. (Infelizmente, há que registrar outrossim as ideias falsas, xenófobas e racistas segundo as quais os imigrantes e os franceses que não são de souche são os responsáveis pela 'decadência' da França.)

Itália. Único país da União Europeia onde o desemprego aumentou em relação a 2015 (ver a tabela), a Itália vive dias politicamente tensos. Para conter o desemprego, vigora o Jobs Act, que flexibiliza o mercado de trabalho no intuito de incentivar as empresas a contratar, o que não está ocorrendo. A pressão aumenta, o Jobs Act é extremamente contestado: três milhões e trezentas mil assinaturas pedem um referendo para revogar o artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores, que regula as demissões sem justa causa. A consulta vai ocorrer, a menos que o governo se antecipe ao desgaste e modifique a lei em proveito dos trabalhadores.

Espanha. O cenário espanhol é muito parecido com a da Itália, com o agravante que o desemprego, de espantosos 26% faz três anos, se encontra ainda em estratosféricos 18,4%. O grosso da opinião pública brada que é preciso reformular com urgência a "legislação de sobreviva" -- uma reforma da reforma --, com o objetivo de reduzir a precariedade dos empregos e aumentar os salários.

De volta ao Brasil. O antropólogo, escritor e político Darcy Ribeiro (1922 - 1997) dizia que nossas elites são as mais egoístas do mundo: tal a Dona Bela de Chico Anysio, "só pensam naquilo [seus exclusivos interesses]". Darcy Ribeiro permanece plenamente atual.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Universidade de Massa



Em meu tempo, a universidade era de elite. Predominavam as universidades federais públicas e gratuitas. Poucas vagas e vestibulares extremamente seletivos. Ao tempo em que o ensino médio público era criminosamente abandonado pelo Estado. Praticamente, só os abonados ascendiam ao ensino superior: implicava ser egresso dos melhores colégios particulares e dos mais cotados e caros cursinhos preparatórios. (Existiu, por breve período, um cursinho de primeira e de graça chancelado por uma empresa estatal: fui um de seus privilegiados alunos bolsistas.) As vagas dificilmente eram preenchidas na totalidade: boas notas no vestibular eram um imperativo. (Um exemplo eloquente: meu exame de admissão à Escola de Engenharia preencheu apenas 23 das 40 vagas.) Superada a guerra de seleção, o melhor dos mundos: boas universidades e de graça, excelentes alunos, mercado contente com o elevado nível dos formados. Handicaps: altíssimo custo per formando; e descompasso oferta (pequena) de recém-formados - procura (grande).

Hoje, é universidade de massa. Aberta a todas as classes, com muitos estudantes saídos também do ensino médio público. As universidades federais oferecem bem mais vagas. Mesmo assim, no cômputo geral o sistema educacional superior se tornou predominantemente privado. (Para a tranquilidade dos empresários da educação, os alunos sem recursos são financiados pelo programa estatal FIES, o qual no entanto se encontra à beira do esgotamento por elevada inadimplência.) Salvo destacadas exceções, o ensino e a pesquisa nas universidades de massa deixam muito a desejar: quantidade não rimando com qualidade. Apenas uma parte relativamente modesta dos alunos consegue ser assídua e interessada. A maioria tem que trabalhar e servir-se de transporte público precário: nos bancos de faculdade, é a luta para não cair de sono e cansaço. O dessintonia universidade - mercado é de novo tipo, seja por excesso de formados em certos nichos de conhecimento seja por carências de formação. De todo modo, esqueça-se a universidade de elite: a agenda imperiosa é a de ajustar e qualificar a universidade de massa.

Umberto Eco (1932 - 2016), o conhecidíssimo romancista italiano de O Nome da Rosa, foi também professor-pesquisador e diretor da Universidade de Bolonha. Ele reconhecia a inevitabilidade da universidade de massa. Dedicou a ela um importante e pequeno livro, Como se faz uma tese. Um guia autorizado de preparação de boa tese, no ambiente pouco estimulante frequentemente encontrável em universidades de massa. "Tese" para Umberto Eco é abrangente: pode se referir a pós-graduação -- tese de doutorado e dissertação de mestrado -- ou ainda a monografia de final de curso de graduação. (A ordem crescente de dificuldade é monografia - dissertação - tese. Por falta de espaço, as diferenças são omitidas: o que interessa aqui são as tarefas comuns a todo trabalho de tese.) "Orientador" é pesquisador que orienta tese. "Orientando" é aluno que elabora tese.

Os pontos cardeais de um orientando, vis-à-vis do bom desenrolar de sua tese, podem se resumir a quatro: (1) tema de interesse; (2) boas fontes de consulta; (3) cultura à altura de bem apreender as leituras; e (4) consistente plano de trabalho.

O orientador adoraria que o orientando revelasse autonomia no desenvolvimento de sua tese, já que na certa o primeiro vive sobrecarregado de tantas aulas e outros orientandos. O tema é do orientando (item 1). Na medida do possível, o orientador deve propiciar ao orientando boas condições de trabalho: se a biblioteca local é insuficiente, que use sua suposta influência para franquear o acesso de seu orientando a fontes externas compatíveis (item 2). Ah! Se o orientando tem formação deficiente desde o ensino médio, e ademais não é afeito à leitura, então fica-lhe muito difícil absorver a riqueza das fontes de consulta; não é papel do orientador fazer as vezes do orientando. A tese é do orientando. (item 3). O item 4, o plano de trabalho do orientando, merece o parágrafo seguinte.

Um modelo em etapas de plano de trabalho de tese se tornou canônico: título, introdução e estrutura do documento. "Um bom título já é um projeto" (Umberto Eco): não um título genérico, mas específico (o tema da tese stricto sensu). A introdução serve para mostrar ao orientador o que se pretende fazer, sobretudo evidenciar que já se tem as ideias em ordem. A estrutura é a hierarquia de níveis: capítulo - seção - sub seção - ... - esboço do conteúdo. Os capítulos em regra não passam de cinco: 1, Introdução; 2. Pesquisa Relacionada; 3. Objetivos Específicos; 4. Formalização do Tema; 5. Experimentação e Análise Quantitativa dos Resultados; 5. Conclusões. Note-se que os esboços de conteúdo valem para os capítulos 2-5.

Enquanto o orientando não for capaz de dar um título original à tese, escrever a introdução e estruturar todo o conteúdo, ele não poderá dizer que já domina sua tese. Por ser o plano de trabalho tão crucial para o êxito do orientando, é o momento de a interação orientador - orientando ser mais ou menos intensa. Após tantas revisões quanto necessárias, o plano de trabalho é finalmente aprovado pelo orientador. A partir de então, o orientando seria capaz de desenvolver sua tese praticamente sozinho.

Para a feitura dos capítulos 2-5, faz-se mister um cronograma realista. Os trabalhos de tese têm que ter data certa para terminar: nem pouco tempo, nem tempo demais. Algumas palavras concernentes aos capítulos 4 e 5. Que fique claro que um orientando não é um aluno qualquer; bem ao contrário, tem que ter a capacidade de abstração (modelagem formal) -- capítulo 4 da estrutura -- e de analisar e sintetizar dados (modelos estatísticos) -- capítulo 5. (Umberto Eco é um tanto vago em relação aos capítulos 4 e 5. Talvez porque sua experiência de orientador é com teses de humanidades. Entretanto, não parece ser questão de relaxar o rigor. Construir arcabouços conceituais sólidos e tratar corretamente dados experimentais -- coleta, análise e síntese -- são tão indispensáveis à pesquisa em humanidades quanto em ciências e tecnologia.).

Duas conclusões. Realizar uma boa tese exige do orientando organização, competência e tempo. Não é fácil, não é fácil, mas nada impede que as universidades de massa produzam boas teses em quantidade, quando então elas serão verdadeiramente universidades. Segundo, para que serve afinal uma tese? Em princípio, para tudo e para todo o resto da vida! Uma boa tese é um ótimo treinamento para tornar-se distinguível, não importa a atividade. O tema da tese é de somenos e logo esquecido.