sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Saudade



Meu carinhoso primo [Almir] Junior criou um grupo WhatsApp -- Amigos -- reunindo parentes maternos, alguns dos quais não via faz bem mais de cinquenta anos. Tirante as novas gerações, que desconhecia inteiramente. Ao rolar a apresentação de familiares de todos os graus, dei-me conta de que estava contagiado de saudade. Saudade de quem? De quê? Minha percepção de saudade é antes estética que sentimental. Também pudera: arrancado de minha cidade natal, Icó, ainda na tenra idade, eis que me deparei com um agressivo ambiente de colégio interno, longe da solidariedade da família. Fortes motivos para desenraizar-me precocemente. De modo que só consigo falar de saudade de forma meio abstrata, ou com literatura em apoio.

O que é saudade? Os estrangeiros fora do mundo lusófono desistem de entendê-la. Não é melancolia, nem tédio, nem nostalgia, e muito menos tristeza. Etimologicamente, é uma palavra portuguesa, com pitadas de castelhano e de catalão. No Brasil, ela se livrou de alguns mistérios, ganhou outros. A saudade de Fortaleza não é a mesma da de Lisboa. Dir-se-ia que cada brasileiro pensa a saudade de seu jeito. Citem-se a respeito apenas três notáveis brasileiros. A escritora Clarice Lispector dizia: "Ah, quando eu morrer sentirei saudade de mim". E Tom Jobim musicou um poema de Vinícius de Moraes, "Chega de Saudade".

No que me concerne -- que petulância! ladear Clarice Lispector, Tom e Vinícius --, acho que uma das mais belas definições de saudade é esta: "Um retorno ao futuro". Não me lembro de quem.

Os portugueses, quanto a eles, não conseguem dissociar saudade de uma velada amargura. A cantora de fado Amália Rodrigues: "A saudade é um espinho amargo e doce". O poeta Fernando Pessoa: "A saudade é a poesia do fado".

Qual é minha saudade do Icó? Quase não vivi lá. Meu périplo, por ordem: Cajazeiras-PB (internato), Fortaleza, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Campina Grande, Montpellier-França, Campina Grande e Fortaleza. Em todo esse período de andarilho e sobretudo após as mortes prematuras de meus pais, poucas e rápidas passagens pela cidade. Resta-me o conforto de saber que a Icó de agora está muito mais bonita do que a Icó de minha infância, aos bons cuidados do Patrimônio Histórico. E isso é muita coisa! A imagem abaixo dá uma ideia da beleza da cidade.


Icó: Teatro Municipal, Sobrado do Barão e Igreja do Bonfim.

Literatura à parte, eu queria mesmo era sentir saudade.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

A Era do Antropoceno



Os geólogos batem o martelo: nosso planeta sofre uma inaudita catástrofe ecológica. Mais precisamente, a Terra está à mercê de uma agressão sem paralelo no tempo geológico, provocada pela 'civilização' humana.

O gênero humano nasceu e se transforma desde mais de cinco milhões de anos. Esse vasto período é dividido em eras geológicas, como mostrado na tabela a seguir.
Os valores da coluna Início são aproximações. Por exemplo, a era do Plioceno começou há aproximadamente cinco milhões e trezentos mil anos e terminou faz um milhão e oitocentos mil anos, quando iniciou-se a era do Plistoceno. A era do Antropoceno, ressaltada em vermelho forte, se encontra em seus albores: a partir de 1950 ou há infinitesimais sessenta e seis anos na escala geológica.

As eras geológicas são definidas por constâncias específicas, com alcance planetário. Elas deixam seus rastros em partes as mais diversas. Para ilustrar, os gelos eternos da Groenlândia são verdadeiros arquivos geológicos, cada era representada por uma nítida camada, em ordem descendente de antiguidade do fundo para a superfície. Considere-se a extinção dos dinossauros, há mais de sessenta milhões de anos, muito antes portanto do Plioceno (ver a Tabela). A camada de gelo da era dos dinossauros, por demais abaixo da do Plioceno, assinala uma forte presença de irídio, um metal encontrável no mundo inteiro, originado de um meteorito que colidiu com a Terra à época. Ressalte-se que as camadas ainda mais inferiores não registram a presença de irídio.

No que diz respeito ao Antropoceno, o gelo dos depósitos de neve a partir de 1950 acusam elementos radioativos provenientes de explosões de bombas nucleares, ejetados primeiro na atmosfera e depois trazidos à Terra. Isso por si só distingue a camada do Antropoceno da anterior, Holoceno (ver a Tabela). Outros sinais abundam em ritmo explosivo. Tudo agora é perversamente alucinante: formidável aumento das emissões de dióxido de carbono; elevação rápida do nível dos oceanos; extinção maciça de espécies animais e vegetais; e esterilização dos solos pelo desflorestamento desenfreado. Poluição dos cursos d'água e dos oceanos, transformados de forma vertiginosa em depósitos de plástico, alumínio e outros materiais não biodegradáveis; altos níveis de azoto e de fosfatos nos solos, provenientes de adubos químicos utilizados desregradamente. A Terra se ruboriza de calor por efeito da concentração velozmente crescente de gases estufa na atmosfera. Até quando os gelos da Groenlândia?!

Em suma, a Terra muda com tal rapidez, desde 1950, que o jovem Holoceno já cedeu lugar ao Antropoceno. A pane do sistema terrestre é a característica do Antropoceno.

Os negacionistas do Antropoceno -- entre eles, o notório Donald Trump -- argumentam que seria muito cedo para admitir uma nova era geológica. Entretanto, um especialista honesto redarguirá: as alterações em curso são irreversíveis. O ser humano destrói, em míseros anos, o que a metamorfose natural levaria milhares ou milhões de anos para fazê-lo.

O termo antropoceno é do ano 2000, e foi criado pelo holandês Paul Crutzen, prêmio Nobel de química de 1995. Em 2011, ele proclamou: "A transição do Holoceno para o Antropoceno faz sublinhar a enorme responsabilidade da Humanidade em sua condição de guardiã da Terra."

Paul Crutzen teria incorrido em demasiado otimismo. Parece assustadoramente perene a máxima do escritor clássico Jonathan Swift ("As Viagens de Gulliver"), que viveu de 1667 a 1745: "O ser humano é basicamente irracional, com apenas alguns lampejos de racionalidade." Nós não merecemos nosso lindo e acolhedor planetinha Terra.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Ascensão e Declínio do Lulopetismo



Não faz muito tempo, era 2009, a conceituada revista inglesa The Economist estampava um laudatório do Brasil: apesar da crise mundial, "O Brasil decola"; pano de fundo, o Cristo Redentor arrancando do Corcovado como se fosse um foguete, rumo ao seleto grupo dos países desenvolvidos. O futuro parecia enfim chegar ao "país do futuro", expressão dos idos de 1941 do escritor austríaco Stefan Zweig.

Em 2016, a realidade brasileira é toda outra. O país se encontra em profunda recessão econômica e moral, desde o segundo trimestre de 2014. Como as expectativas do Brasil puderam mudar assim tão rapidamente? Para tentar responder, é mister recuar no tempo.

Em 1994, o governo do presidente Itamar Franco lançou, sob a batuta do então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso (FHC), o chamado Plano Real, que ensejou derrubar a hiperinflação reinante. Seguiram-se os governos FHC (1995 - 2002), que puseram em prática várias outras medidas importantes: reforma do sistema de aposentadoria dos funcionários públicos; programa de ajuda às famílias carentes com filhos na escola; e lei da responsabilidade fiscal, para arrefecer o rombo das contas públicas. Se, por um lado, o período FHC se caracteriza por baixas taxas de crescimento em meio a turbulências internacionais, por outro lado as desigualdades sociais começam a declinar pela primeira vez em trinta anos.

Luiz Inácio Lula da Silva -- Lula --, em seus mandatos de 2003 a 2010, estendeu as reformas de FHC: Bolsa Família, Farmácia Popular, Pronatec, Fundeb, Fies. Sorte de Lula, o cenário internacional lhe foi extremamente favorável até 2009, com poupança externa sobrando a rodo. Balança comercial altamente superavitária e liquidação da dívida para com o FMI. O real valorizado. Pela primeira vez em cinquenta anos o Brasil conhecia simultaneamente crescimento econômico e redução da pobreza e das desigualdades. No auge do entusiasmo e da popularidade, diante da crise que ressurgia feroz nos Estados Unidos já em 2008, Lula brincava que apenas marolas do tsunami econômico-financeiro norte-americano atingiriam o Brasil.

Infelizmente, Lula estava profundamente equivocado. No campo estritamente econômico, a poupança interna se voltara para o consumo em detrimento de investimentos em infraestrutura e em produtividade empresarial. As exportações se basearam quase que exclusivamente em matérias primas (commodities), altamente valorizadas à época, porém de histórica volatilidade de preço. Importações maciças de manufaturados. Até que a crise econômica mundial avassalou, abalando fatalmente a tripla consumo-commodities-importação. As consequências deletérias não se fizeram demorar em demasia.

Em 2011, chega ao poder Dilma Rousseff, sem nenhuma experiência política, ungida por obra e graça de Lula, em flagrante abuso de popularidade. Logo veio a mostrar-se amadora também na gestão da coisa pública, ignorando até à esquizofrenia a falência do tripé econômico lulista. Em sua reeleição de 2014, Dilma dissimulou a deterioração da situação orçamentária. O estelionato eleitoral se escancarou: o país iludido se viu, como que de repente, em recessão profunda. Desemprego. Benefícios sociais restringidos ou ameaçados. Inflação. Com quase total reprovação popular, e constatada sua irresponsabilidade fiscal, Dilma foi apeada prematuramente do poder, por deliberação de mais de dois terços da Câmara dos Deputados e mais de dois terços do Senado.

Quanto a Lula, seu declínio assume tons mais dramáticos. O queremismo lhe poupara de condenação em um dos dois magnos escândalos de corrupção de seu governo, o Mensalão; de lambuja, propiciou-lhe a reeleição. Eis que se revela, já em pleno governo Dilma Rousseff, o segundo maremoto, o Petrolão. Não teve mais jeito. Lula agora enfrenta a lei. Seja como réu seja como investigado, os vários processos de corrupção lhe atormentam o sono. A perspectiva de prisão lhe ronda os passos. Abrigar-se sob o manto da popularidade não mais seria antídoto: embora permaneça o político com o melhor índice de aceitação nas pesquisas, amarga no entanto mais de 50% de rejeição. O PT definha. É duro.

Duas reflexões, para terminar. A primeira, o Brasil precisa de reformas institucionais profundas. Uma das mais delicadas concerne ao sistema político. Com quase trinta partidos no Congresso, torna-se extremamente difícil governar. Campo fértil para a corrupção dos governos e dos políticos, como tem sido mais do que espantosamente demonstrado. Lamentavelmente, há poucas razões de ser otimista e de acreditar que esses problemas serão tratados com a seriedade e profundidade devidas. Impossível mesmo, com este Congresso manchado. Uma absolutamente prioritária Assembléia Constituinte da Reforma Política, eleita diretamente, não acontecerá senão por via de grandes manifestações populares pró-constituinte, que infelizmente não estão à vista.

Segunda reflexão. É certo que o PT tem sido muito bom para Lula, mas o inverso dificilmente é verdadeiro. O personalismo de Lula e a 'adoração' a ele por parte dos militantes passionais tiveram o efeito de inibir a geração de novas lideranças políticas, condição indispensável à própria sobrevivência do partido. Mas não, o projeto político de Lula é Lula e pronto, ao PT restando o papel de caudatário. Existe (em declínio) o lulopetismo, não existe o PT.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O Mal-Estar da Civilização Norte-americana



Os Estados Unidos vivem uma escalada de tensões sociais que espanta o mundo. Como que se iguala à China em intolerância. As duas icônicas imagens abaixo exibem um paralelo aterrador.
À esquerda, Baton Rouge - USA, 2016: uma consciente enfermeira norte-americana encara, olhos nos olhos, policiais em pé de guerra que terminarão por prendê-la; seu 'crime', participar de uma manifestação de movimentos negros contra a violência policial de tintura racista. À direita, Pequim - China, 1989: um estudante chinês põe-se, com altivez, diante dos tanques mortíferos do exército que ameaçam varrê-lo; seu 'crime', participar de uma manifestação pela democracia.

Violências raciais escancaradas. Xenofobia. Bolsões de pobreza nas grandes cidades, onde quase não há esperança de promoção social. Empobrecimento das classes médias. Obsessão maldita da população por armas de fogo. Sistema político carcomido por financiamento de candidatos ligados a poderosos grupos de interesse que não estão nem aí para os deixados-por-conta. O diretor da revista Foreign Policy, David Rothkopf, é contundente em artigo do último 14 de julho: "Como exigir de outro país maior atenção aos direitos civis quando nosso próprio país desrespeita seu povo?" É como se o resto do mundo reclamasse: "Quem sois vós para nos julgar?".

O candidato presidencial republicano Donald Trump, em ascensão para ganhar as eleições, simboliza "O Americano Feio" (The Ugly American) para a imprensa internacional. Um perigo para o mundo. Nem é preciso recorrer à opinião externa aos Estados Unidos. Segundo o respeitado jornal The New York Times, Trump é "um irresponsável", e que "truculento, não suporta nenhuma crítica pessoal". E mais, Trump "não tem nem a personalidade, nem os valores, nem a experiência para ser presidente". Dando a palavra de novo a David Rothkopf, "Trump é um bufão racista, xenófobo, misógino e despótico".

Que a imperiosa crítica a Trump não seja tomada por acolhimento à candidata democrata Hillary Clinton. Ela é a 'queridinha' dos financistas de Wall Street: sua campanha arrecada muitíssimo mais do que a de Donald Trump. Sinal de que as possantes confrarias anti-populares continuarão a ter vida fácil sob um governo Clinton.

Diante de tal quadro, o legado de Barack Obama não se prenuncia virtuoso. É bem verdade que ele tem se posicionado de maneira eloquente em prol das relações inter-étnicas e do controle das armas de fogo. Os robustos lobbies, de diversos tipos, lhe causam desconforto. Contudo, é fato que esses problemas só pioraram em seu governo. Num mundo que muito tem necessidade de mudanças profundas, a começar pelos Estados Unidos, faltou a Obama sobretudo coragem e determinação, estima o hebdomadário italiano Internazionale: "Em seus dois mandatos, ele preferiu deliberadamente evitar o conflito". Lamentável, em se tratando do primeiro presidente negro, e que por isso mesmo despertara tantas esperanças.

Os Estados Unidos se mantêm firmes como o grande centro planetário de inovação tecnológica e como os mais fortes disseminadores de cultura de massa. Sua supremacia nos domínios da finança e da Internet é incontestável. O maior arsenal bélico. Mas os tempos políticos não lhes são mais tão favoráveis. Os agudos problemas internos dos Estados Unidos corroem seu papel de "líder do mundo". Em consequência, outros países emergem, politicamente fortes. A multi-polarização é bem-vinda!

sábado, 3 de setembro de 2016

Democracia



Dediquei horas a assistir às sessões da Comissão Senatorial do Impeachment da Presidente Dilma Rousseff (em compensação, as plenárias me cansaram logo). Prestei atenção especial à aguerrida senadora Vanessa Grazziotin (Grazziotin) porque ela é comunista do Partido Comunista do Brasil (PC do B), partido pelo qual militei nos idos de 1966 a 1969. Buscava compreender o que significa ser comunista, hoje. Para minha surpresa, em seu afã quixotesco de tentar salvar o mandato de Dilma, Grazziotin evocava à exaustão e de modo candente respeito à democracia e ao Estado Democrático de Direito, que estariam sendo violados por senadores chamados por ela de golpistas. Surpresa porque suponho que todo comunista é marxista (a recíproca não é verdadeira).  Não que o marxismo seja incompatível com a democracia, muito pelo contrário; a questão é bem outra.

O esforço é grande de explicar democracia marxista em um único parágrafo, mas é preciso e vamos tentar. O cerne da interpretação marxista da História é a luta de classes. A rigor, dois arquétipos de classe com interesses antagônicos: proprietário de meio de produção (patrão) e quem aluga ao patrão sua força de trabalho (assalariado, contemporaneamente). O patrão, se puder, paga menos salário; o assalariado, se puder, ganha mais salário. O corolário desse antagonismo é o relativismo da democracia: democracia dos patrões ou das elites, e democracia dos assalariados ou popular. Uma em oposição à outra. O embate político deveria girar em torno de qual democracia prevalecerá. Por outro lado, seduz admitir a viabilidade de harmonizar as reivindicações das elites com as populares sob a proteção de uma democracia absoluta ou acima das classes; contudo, quem pensa assim definitivamente não é marxista.

Grazziotin é comunista e, portanto, marxista. Qual democracia ela defendia tão ardorosamente, na comissão do impeachment? Em princípio, o dever maior de um comunista é pugnar por uma democracia popular. Entretanto, por apoiar-se em tantos e tantos artigos da constituição vigente, ela sem dúvida abraçava a democracia real, das elites. Desvio ideológico? Não necessariamente. Atente-se para o que diz Marx, nesta passagem de sua obra As lutas de classe na França de 1848 a 1850: "Ao mesmo tempo que sanciona o poder das elites*, a democracia das elites põe limites a esse poder, impondo-lhe condições democráticas que podem contribuir para a vitória das classes que lhe são hostis."  É bem possível que Grazziotin, politizada e culta como se fazia demonstrar, tenha se embasado neste texto de Marx para suas verberações políticas, com o horizonte na vitória das classes populares. Bom que nossos comunistas possam atuar livremente, sob a égide da constituição cidadã de Ulysses Guimarães. Nos tempos ditatoriais de minha militância, o PC do B era terminantemente proibido.

Não vislumbrei a resposta de Grazziotin para minha segunda pergunta: qual seria seu modelo de comunismo? Subentende-se um novo, porque o comunismo russo se apagou e a China deprime quando o quesito é democracia. Um comunismo democrático, pois não?! (Anote-se que o PC do B de meu tempo era ferrenhamente pró-comunismo chinês.) Resta-me ficar de olho em sua nova etapa parlamentar de opositora acérrima do governo Temer, como alardeia. Espero o mesmo fervor democrático e constitucional com que batalhou por Dilma Rousseff e seu governo. E que finalmente Grazziotin revele seu comunismo (democrático?).


*- No texto original, onde aparece "das elites" é "da burguesia". "Elites" é mais abrangente do que "Burguesia", só por isso mudei.