sexta-feira, 17 de março de 2017

Falsos Cognatos



"Eu conheço o Brasil há sessenta anos. Ele sempre me surpreendeu, por vezes frustrou, mas nunca me decepcionou", assim falava o francês Gilles Lapouge (1923 - ) lá pelos idos de 2011. Escritor e jornalista, colabora com o jornal O Estado de São Paulo desde 1951. Viveu integralmente no Brasil de 1950 a 1953, e as revisitas não se contam. Aproveitou para esquadrinhar nosso país de norte a sul e de leste a oeste, tudo registrado no culto, brilhante e saboroso Dictionnaire amoureux du Brésil ("Dicionário dos apaixonados pelo Brasil"), cuja primeira edição brasileira apareceu em 2014. Do dicionário, explora-se aqui o 'verbete' "Falsos Cognatos", sobre vexames de aprendizado do então neófito em português. (Ver também "Proust nas Favelas" em O Brasil de Gilles Lapouge, postagem de 23/04/2015.)

Em uma recepção no consulado da França, uma brasileira perguntou a Gilles Lapouge se ele andava sempre constipado (no sentido de resfriado). Lapouge reagiu mecanicamente: "não, não" -- em francês,"constipation" só tem um significado: prisão de ventre --, ante o olhar incrédulo e jocoso da moça. Mas a dúvida se lhe instalou. Devia procurar um médico? Por quê, se não sentia cólicas nem mal-estar? O filósofo Voltaire pode lhe ter ocorrido: se a 'borra' não desce então sobe [para a cabeça]. Estava com semblante enfezado (no sentido etimológico), por certo. Por fim, um vizinho o tranquilizou: estrangeiros recém-chegados tendem a ficar constipados, a se resfriar, de tanto ultrapassar paralelos e longitudes, quiçá oceanos.

Eis que Gilles Lapouge passa diante de uma mercearia, com o cartaz afixado: "Fechado por motivo de luto familiar". Ele ficou ao mesmo tempo embasbacado e estupefato. Dois irmãos em luta de foice? Ou marido e mulher em "pega prá capar"? Levaram a coisa bastante longe: não só fecharam a loja como também deixaram claro o desentendimento a toda a vizinhança. Lapouge não podia deixar de admirar a maneira como esses comerciantes enfrentavam seu destino e mantinham as pessoas ao corrente de sua desavenças. Na manhã seguinte, a mercearia estava aberta, para seu conforto: adora banana e doce de leite. Pasmado, ficou então sabendo que, em português, luto não quer dizer "lutte", isto é, luta, mas recolhimento pela morte de alguém.

Num certo dia, Gilles Lapouge caminhava apressado sob forte chuva, os cabelos colados na cabeça. Uma moça cutucou a amiga ao lado, em voz alta de ser ouvida: "Olha que rapaz esquisito!". Lapouge se sentiu vaidoso, ego inflado -- "exquis", palavra francesa que quer dizer requintado, fino, sofisticado. Em bom português: excêntrico, extravagante e pior, até feio, de mau aspecto. Fácil imaginar a decepção de Lapouge e o prestar-se a zombarias dos amigos.

Gille Lapouge leva a pensar em minhas peripécias quando aprendiz de francês. Por exemplo, o falso cognato "pourtant": não é "portanto" como parece, e sim "todavia, no entanto". "Adoro futebol, "pourtant" [todavia] sou um torcedor", decididamente não dá. E o gênero de numerosas palavras? Arranham nossos ouvidos lusófonos "a "mer" [mar]",  "a "banque" [banco]", "o "tapioca" [tapioca]", "o "Venezuela" [Venezuela]". Tem ainda o por vezes 'misterioso' pronome "en". E outras coisas mais. Ficaria tudo para um outro artigo.

Cansativos e perturbadores os primeiros tempos de Gille Lapouge no Brasil, e os meus na França? Bem ao contrário, foram experiências altamente estimulantes, malgrado os percalços. A cada dia, um obstáculo vernacular vencido, animação crescente: admirável mundo novo. Meus filhos pré-adolescentes à época, que alegria vê-los inteiramente à vontade em questão de poucos meses: como não tinham vergonha de errar, assimilaram a nova língua muito mais rápida e eficazmente do que eu, adulto com orgulho besta.

2 comentários:

  1. Durante a pós-graduação no Canadá, compartilhei uma sala com brasileiros e rapidamente aprendi o que significava "vamos tomar café". Mas um belo dia, me apresentaram a expressão "vá tomar no c.". Imediatamente pensei: que forma esquisita de ingerir café ... Esses brasileiros ...

    ResponderExcluir