sexta-feira, 26 de junho de 2015

Nova Iorque, A Bem Governada



Nova Iorque é uma vitrine planetária: o que se passa lá repercute no mundo todo. Nestes tempos de indigência criativa, pobreza mental e imoralidade cívica da grande maioria dos governantes em todos os níveis, no Brasil e alhures, é salutar saber de Bill de Blasio, o prefeito da megalópole norte-americana. Nova Iorque é bem administrada, com forte cunho social. Bill de Blasio se norteia por uma política ...  de esquerda, no coração do capitalismo! Entenda-se por quê, com base em matéria publicada na revista Rolling Stone Magazine, New York, Edição de 07/05/2015.

A maior e mais rica cidade do país mais rico do mundo abriga milhões de necessitados. Aluguéis exorbitantes, custo de vida incrivelmente elevado, agências bancárias avançando sobre pequenos e baratos comércios de bairro, arranha-céus hiper luxuosos reservados a financistas e nababos russos e chineses. Antes de Bill de Blasio, mimos aos miliardários e aos super-assalariados do planeta. Com Bill de Blasio, os carentes recebem atenção.

Em apenas seis meses de gestão à frente da Prefeitura de Nova Iorque, Bill de Blasio exibe um vistoso portfólio de projetos sociais, todos aprovados pelo Legislativo municipal, e já em vigência:
 - Aumento do tempo de licença por motivo de doença;
 - Escola gratuita para todas as crianças dos dois primeiros anos do maternal;
 - Limitação dos poderes da Polícia de prender qualquer pessoa por simples suspeita;
 - Descriminalização do porte de pequenas quantidades de marijuana;
 - Carteira de Identidade municipal, que tem permitido a novaiorquinos sem documentos abrir conta em banco, alugar apartamento e ter acesso a hospitais e escolas;
 - Dotação de 41 bilhões de dólares para a construção ou preservação de 200.000 habitações sociais.

Wall Street, bem evidentemente, faz oposição feroz a Bill de Blasio. Essa turma da dinheirama -- ou do andar de cima, como diz nosso Elio Gaspari -- tem ojeriza a gastos sociais: para ela, um desperdício (!sic!). No mesmo diapasão, o Parlamento do Estado de Nova Iorque vocifera*. Insuflados por tal clima, policiais grevistas, em justo protesto pelo assassinato de dois colegas, no entanto derrapam dando simbolicamente as costas a Bill de Blasio. A verdade é que o prefeito está tão empenhado na persistência declinante dos índices de criminalidade quanto seus antecessores Giuliani e Bloomberg, porém sem que a polícia seja arbitrária ou sem lei, como o era.

Numa cidade tentacular como Nova Iorque, qualquer bilhão de dólares é pouco. As ações sociais consomem apenas uma parte da conta. Despendem-se muito mais com infraestrutura, urbanização, conservação dos equipamentos e dos serviços. Tudo tamanho Nova Iorque. Saúde pública: com o maior número de ratos per habitante do mundo, confinar esses roedores custa caríssimo. Para necessariamente arrecadar mais, Bill de Blasio tentou cobrar mais impostos dos ricos e muito ricos, mas foi rechaçado pelo parlamento estadual. Não impede que, com responsabilidade fiscal e apoio amplo da população, Bill de Blasio siga ganhando a cidade para sua política e sua administração.

Aqui em Fortaleza, o prefeito cai nas graças da classe média, alavancado principalmente pelos chamados binários. Um binário é um par mão-contramão de avenidas contíguas, com sinalização caprichada e faixas exclusivas de ônibus. Um paliativo para o trânsito difícil, ao preço de muitas árvores derrubadas e de canteiros destruídos. Com boa vontade, caberia elogios ao secretário da Infraestrutura, e não propriamente ao prefeito. Atenção, prefeito e classe média: Fortaleza tem problemas imensos, demandando planejamento e ações de largo alcance sócio-econômico. Chega de contentar-se com miudezas. Mirem-se em Bill de Blasio!

Nota - Madrid e Barcelona acabam de eleger seus prefeitos anti-establishment. Tomara que deem certo.


*- Vale como registro. O penúltimo presidente do Legislativo Estadual está preso, por corrupção. Sem imunidade parlamentar, essa excrescência jurídica exclusivamente brasileira.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A China Se Robotiza



É difícil de acreditar mas o certo é que a China, um país com 1 bilhão e 500 milhões de habitantes, enfrenta um grave problema de escassez de mão-de-obra industrial. Dado o gigantismo de seus parques manufatureiros, os jovens se rarefazem, consequência da lei demográfica do filho único. O descompasso oferta - procura se acentua de ano para ano. As empresas se desdobram em anúncios, chegando ao ponto de recrutar diretamente das regiões mais distantes dos grandes centros industriais. O bom efeito colateral é que, desde 2008, o salário médio da indústria mais que dobrou.

Para compensar a falta de recursos humanos, as empresas investem maciçamente em robótica e outros autômatos. A partir de 2013, a China se tornou simultaneamente o maior importador mundial e o maior fabricante universal de robôs industriais. A cada dia, ao menos uma empresa especializada em automação, local ou estrangeira, abre uma instalação na China: é impressionante.

Onde a automação se amolda muito bem é na estampagem de folhas de metal, de tremenda importância para a indústria automobilística e de eletro-domésticos em geral. É bem verdade que um robô não compete em produtividade com um estampador humano, além  de ser muito caro. Porém o robô não se cansa e não sofre acidentes de trabalho: o resultado é que os custos finais das estamparias automatizadas são bem menores do que os das estamparias que usam intensivamente o trabalho humano.

Felizmente para os empregos que exigem qualificação, os robôs por enquanto só são economicamente viáveis em substituição a tarefas simples e repetitivas, como é o caso da estampagem. Sobre essas atividades de baixa capacitação, é inolvidável, verdadeira e assustadora a interrogação-exclamação que Henry Ford, o idealizador das linhas de montagem, se fazia lá em seu tempo: Por que, a cada vez que preciso de duas mãos, elas me aparecem com um cérebro?! O que conduz ao pungente e trágico Tempos Modernos, de Charles Chaplin.

A robotização recebe o firme apoio da governança chinesa. As empresas com programas de automação se beneficiam de preços subsidiados, empréstimos a juros reduzidos e abatimento de impostos. Quanto aos fabricantes chineses de robôs, ainda se trata em boa parte de montadoras: os 'cérebros' dos robôs são importados sobretudo da Alemanha e do Japão, em condições creditícias ultra favoráveis. É um começo como o de tantos outros segmentos produtivos: ganhar nos preços. Contudo é questão de (pouco) tempo e (muito) P&D que os robôs chineses competirão também em inteligência artificial. 

As impressoras 3D não deixam de ser espécies ultra-sofisticadas de robôs. Um instituto tecnológico totalmente dedicado à impressão 3D vem de ser criado na China. Objetivos: (1) P&D; (2) formação de especialistas; e (3) popularização. A aposta é que as impressoras 3D substituirão, com enorme vantagem em produtividade, as ferramentas ora em uso na indústria e no designOs impactos das tecnologias 3D sobre os empregos especializados concentrarão as atenções dos planejadores e tomadores de decisão.

E no Brasil? Perdendo de vista o trem bala das inovações, a questão que se põe a muitos de nossos médios e pequenos empresários é antes existencial que tecnológica. Com o país em recessão e praticando os mais altos juros do mundo, a tentação é abandonar os negócios produtivos e tornar-se rentista. Joaquim Levy e parte da imprensa econômica proclamam à exaustão que passamos por ajustes fiscais amargos e necessários para que, em um raioso e indiscernível dia, o país comece um período econômico virtuoso. Reservo-me o direito à dúvida: sensação de déjà vu. Em todo o caso, a conferir.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Reforma Educacional


Em qualquer idade e com qualquer pena, haverá apenas castigo inútil caso não haja educação.
    Jânio de Freitas, jornalista (A propósito da discussão sobre maioridade penal.)


A questão da educação nos níveis primário e secundário concerne ao mundo todo. Na maioria dos países desenvolvidos, a qualidade do ensino tem decrescido continuamente. Nos países semi-desenvolvidos e sub-desenvolvidos, exclusão e baixa qualidade se conjugam. Tome-se o teste Pisa, que a OCDE considera o necessário para participar produtivamente de economias modernas. Os resultados de 2012 são perturbadores: entre os jovens de 15 anos, 84% dos ganenses deixaram de atingir a nota mínima, assim como 74% dos indonésios, 64% dos brasileiros e 24% dos americanos.

No Brasil, as matrículas escolares têm aumentado muito, o que é bom, porém ao mesmo tempo não tem sido dada a imprescindível atenção à qualidade do ensino. O país sofre a doença do supraliminar: de tão grande um desafio, ignora-se-o. O Governo persiste em gastar quase todo o tempo fazendo 'politiquinha', qual seja distribuir cargos e mais cargos, com o único interesse de acomodar a pestilenta 'base aliada'. (Note-se como os governos 'de esquerda' do PT são conservadores: mutismo total em relação às imperiosas reformas educacional, tributária, financeira, administrativa e agrária. Reforma política? O PT se limita a balbuciar, arrastado pelas estrepolias de Eduardo Cunha.)

A título de subsidiar nossa verdadeira reforma educacional -- improvável, infelizmente --, examinemos de relance aquelas em curso na Finlândia, França, Itália e Rússia.

Finlândia. É o melhor sistema educacional do mundo ocidental. Na avaliação Pisa, só perde para a China e Cingapura. Suas cláusulas pétreas são: (cp1) ensino gratuito em todos os níveis; e (cp2) igualdade de aprendizado. A cp2 se explica assim: se um aluno tiver dificuldade de aprender, ser-lhe-á garantido acompanhamento complementar para alcançar ao menos o mínimo exigido pelo subsistema de avaliação. O sistema naturalmente não é perfeito, sendo objeto de nova reformulação. A pedra de toque é a substituição do tradicional ensino per disciplina por um ensino transversal ou temático. Exemplo de tema: União Europeia, que engloba economia, história, línguas e geografia. O outro foco é a maneira de ensinar. Acabar com a prática pouco eficiente de os alunos se sentarem calados diante do professor, esperando que ele os interrogue. O enfoque agora é colaborativo: os alunos se exercitam na solução de problemas trabalhando em pequenos grupos. Civismo: aprender a viver em comunidade, ocupar-se dos outros, solidariedade.

França. O sistema educativo ainda orgulha a nação, mas padece de contínua deterioração. Os problemas se concentram nos primeiros anos do nível secundário -- collège --, em que, para os padrões franceses, a evasão é alta e o aprendizado é insuficiente. A desigualdade de aprendizado sempre foi admitida e aceita: os melhores alunos compõem as turmas 'elitistas'; os piores, as 'piores' turmas. Os melhores professores são designados para as turmas 'elitistas', e tampouco vão para os collèges das periferias. O eixo da reforma da Ministra da Educação Nacional é justamente quebrar todo esse viés inigualitário: o debate se acirra e a opinião pública se divide. As propostas para o ensino de línguas mortas e de línguas estrangeiras também são altamente controversas: fim do ensino obrigatório das línguas formadoras, grego e latim; mais inglês e espanhol, menos alemão (vivos protestos da embaixadora alemã).  Peso maior à ciência e tecnologia, em detrimento das disciplinas humanísticas.

Itália. A constatação: os alunos italianos não estão preparados para o mundo do trabalho, ao término do período escolar obrigatório. O projeto de lei sobre a "boa escola" se encontra em exame no Senado. O âmago da reforma é que as escolas possam concorrer entre si por melhor ensino. Para viabilizar a livre concorrência, os objetivos principais são: (1) poder aos diretores de escola para contratar professores, seletivamente; (2) recompensa financeira aos melhores professores; e (3) autonomia de gestão orçamentária e de projeto educativo para os estabelecimentos escolares. Longe da unanimidade, a principal crítica é que escola não é como empresa privada.

Rússia. O sistema educacional sofre o assédio da poderosa e ultra-conservadora Igreja Ortodoxa Russa, que quer impor um projeto que dá grande peso ao ensino de matérias religiosas (leia-se: ao gosto da Igreja Ortodoxa), às custas sobretudo do ensino de russo e de literatura. A sociedade civil resiste. O Conselho Social, que assessora o Ministério da Cultura, faz ver que, à luz da Constituição, o projeto representa uma ameaça ao caráter laico da sociedade e que uma religião não poderia ter um status de "religião do Estado" ou de "religião obrigatória".

Nosso ministro da Educação é acadêmico, filósofo, escritor. Tem perfil. Será que ele conseguirá se impor à pasmaceira e às tesouras do Governo? Lançar ideias inovadoras e propor ações eficazes para a solução de nossas profundas deficiências educacionais? Até agora, não reluziu.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Blaise Cendrars



Blaise Cendrars (1887 - 1961), natural da Suíça e francês de adoção, é poeta e romancista. Sem ser guindado à fama (no Brasil, ao menos), era muito respeitado e influente nos meios literários da França e dos Estados Unidos. Apollinaire, o poeta modernista maior, dizia que muito aprendera com Blaise Cendrars (Cendrars, doravante), de quem era amigo. Finamente inteligente, iconoclasta e livre no sentido spinoziano*, pondero que vale a pena trazer a meus leitores um pouco da personalidade de Cendrars**.

Cendrars era amoroso do Brasil. Amigo de nossos modernistas, especialmente Oswald de Andrade, morou uns tempos aqui, e nos revisitou várias vezes. Detestava e adorava São Paulo. Este seu poeminha nos ajuda a entender a ambivalência:
    Disseram-me,
    Cendrars, não vá a São Paulo
    É uma cidade horrorosa, é uma cidade de italianos, é uma
    cidade de bondes e de poeira
    Mas é a única cidade no mundo em que os italianos
    não se parecem italianos,
    Não sei o que os paulistas fizeram mas
    conseguiram moldar o italiano e principalmente a italiana, aqui são
    boas pessoas e a italiana quase sabe se vestir
    Isso é uma grande vitória
Não é mais adorar do que detestar?! Os italianos não deveriam se queixar.

Como nossos modernistas andavam em guerra com o romantismo, para eles alienador e europeizante, achavam que Cendrars blefava quando ele honestamente se extasiava -- "Que maravilha!" -- diante de nossas belezas: pássaros, rios, montanhas, o pôr-do-sol ... . Cendrars se desilude. Rejeita o falatório dos antropofágicos. Para ele, o modernismo nativo é um vasto equívoco, como o são, sempre na opinião dele, os movimentos europeus expressionismo, dadaísmo, futurismo e até mesmo o surrealismo. Cendrars certamente exagera, muito embora o legado da turma de Mário de Andrade e Oswald de Andrade tenha sido, a rigor, produzir o húmus cultural que fertilizou a posteriori um seleto grupo de pináculos literários.

A vida não era tão dourada na Belle Époque. Apollinaire esperou meses, anos, antes de poder ser dignamente remunerado. Para ganhar o pão, ele enveredava pela pornografia. De duas, uma: ou se batia à porta de uma agência de empregos que nunca se abria, ou para o inferno com a vida decente. Cendrars e Apollinaire davam risadas. A vida nas ruas tinha seus encantos: as garotas de Paris eram bonitas.

Cendrars conheceu Ernest Paris est une fête Hemingway no famoso bar-restaurante La Closerie des Lilas. Beberam, beberam. Os bêbados gostam de conversar. Conversaram muito. A muita altura, convidou Hemingway a sair para fechar a bebedeira com bouillabaisse, uma saborosa sopa marselhesa. Mas Hemingway perferiu ficar bebendo até exaurir a caudalosa sede. Como americano, Hemingway não sabia apreciar a boa comida; os americanos não têm uma boa comida em seu próprio país, não sabem o que é. Palavras de Cendrars.

De livre arbítrio, Cendrars chegou a passar fome em Nova Iorque, onde viveu por algum tempo. Quando arranjava um emprego, saía com o primeiro pagamento. Leitor insaciável, praticamente morava na biblioteca pública da cidade. Bem que tentava encontrar seus amigos literatas americanos, habitués de Paris, mas a resposta era sempre "Não está!". Será que eles, ao regressar da Europa, se envergonhavam das peraltices cometidas lá, pensava Cendrars. Veio a Páscoa. Amarrotado, barba por fazer e cabelo comprido, entrou numa igreja presbiteriana onde havia um oratório, A criação de Haydn. Só gente perfumada e bem-vestida. Um pastor chato sentou-se a seu lado para 'convertê-lo', sempre de olho em seu bolso para ver se conseguia lhe surrupiar um dólar ou dois, sacudindo a sacola da coleta bem em seu nariz. Dessa circunstância agourenta brotou seu celebrado (entre os poetas) poema Les pâques à New York (Páscoa em Nova Iorque). Comprou uma passagem bem barata em um navio de gado e voltou para Paris.

Cendrars não escrevia para os outros. Deixou de publicar uma coletânea de poemas que muito amava, não por timidez ou orgulho, mas por amor. Queimou livros já escritos, prontos para publicação, para a tristeza de seus editores. Não lhe eram importantes, ponto final.

A escrita é um panorama do espírito. O espírito de Cendrars era livre e arguto. A leitura era sua droga ("Eu me drogo com tinta de impressão!"). Só pode resultar grande literatura. Ela está em minha agenda.


*- A liberdade é o conhecimento da necessidade.
**- Fontes:
   Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil, Gilles Lapouge, Amarilys, 2014.
   Os Escritores - As Históricas Entrevistas da Paris Review, 5. Blaise Cendrars, Volume 2,
      Companhia das Letras, 1989.