terça-feira, 25 de novembro de 2014

Viver



Em Pot-pourri Literário, neste blog, ressalto o papel essencial da literatura como fonte de conhecimento e compreensão para uma vida de qualidade. Daí tudo deriva, incluídos os prazeres sensuais. Entretanto, é forçoso reconhecer que existem entraves ao bom exercício da leitura de textos literários (primeiro tópico desta discussão sobre o viver). Impõe-se então investigar uma outra possibilidade de conhecimento e compreensão (segundo tópico).

Os autores latinos clássicos -- Virgílio, Sêneca, Lucrécio, Ovídio e demais -- continuam sacrossantos e seminais. Desde sempre, a literatura ocidental sorve deles. (Lembremo-nos: um clássico nunca termina de dizer o que tem a dizer.) A muito rigor, nada mais tem surgido em termos de temas verdadeiramente novos. Precisamente, as grandes questões filosóficas -- o sentido da vida, a morte, o amor, o ódio, a dor, a amizade -- são poucas e imutáveis. Por que então não se restringir aos clássicos latinos? Porque eles são de difícil leitura. Exigem uma aprimorada erudição: assimilação prévia de outros autores, e farta mitologia. Em segundo lugar, o estilo é irremediavelmente anacrônico a nosso gosto moderno, o que dificulta.

É por isso que a produção literária não se esgotará: há a permanente necessidade de reescrever. Do lado do leitor, porém, restam dois obstáculos. O primeiro ainda concerne à (dificuldade de) leitura. Para bem apreender uma obra literária, é preciso uma boa formação cultural, não necessariamente literária: como entender Os Sertões, de Euclides da Cunha, sem um bom domínio da língua portuguesa? O segundo entrave é o tempo, ou a falta dele: isso é examinado no penúltimo parágrafo.

Considere-se agora uma outra fonte de conhecimento e compreensão: a observação. Valho-me do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788 - 1860)*. Como René Descartes, Schopenhauer é outro pilar do método científico, desde que ele aposta no conhecimento adquirido de fora pela experiência e pelas conversas. Outra maneira de dizer: saia de casa e observe! Para a saúde do entendimento, a observação pode valer mais do que muita leitura. E ele, Schopenhauer, arremata: deve-se evitar perder a visão do real, porque o estímulo e a disposição para o pensamento próprio se encontram mais na observação do que na leitura.

Tanto no que diz respeito à leitura quanto à observação, a moderna falta de tempo é um estorvo abissal. Muitas centenas de milhões de seres humanos trabalham oito horas por dia, precisam dormir igualmente oito horas, sobram oito horas para a família e para os inúmeros e inadiáveis compromissos: resta pouco, muito pouco, para a leitura e a observação. Pior ainda: o trabalho é frequentemente sem graça. Essa vida massacrante é cruel e lindamente sintetizada por Albert Camus, em O Mito de Sísifo: levantar-se, ônibus, quatro horas de escritório ou de fábrica, almoço, quatro horas de trabalho, ônibus, jantar e dormir, esta rotina se seguindo inexoravelmente (em tradução mais ou menos livre do original, Le Mythe de Sisyphe, http://classiques.uqac.ca/classiques/camus_albert/mythe_de_sisyphe/mythe_de_sisyphe.pdf, pag. 20, visto em 25/11/2014, às 11:34). Reverencio também Charles Chaplin, por seu ao mesmo tempo cômico e chocante filme Tempos Modernos.

A conclusão é velhíssima, porém muito inquietante: viver bem seria para uns poucos. Você concorda?!


*- A arte de escrever, L&PM Pocket, 2010.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Ai de Ti, Beira Mar!*



Tenho o privilégio de morar em Fortaleza a cento e cinquenta metros do ponto emblemático de sua famosa Av. Beira Mar, a Volta da Jurema. De lá, pode-se ainda apreciar um inolvidável pôr do sol (adiante, explico o porquê do 'ainda'): eu gostaria de ter poesia na veia, para cantar todos os matizes de cores que inundam o céu e o mar de Iracema. Jangadas e saveiros completam a deslumbrante festa da natureza.

Enumeremos outros trunfos da Beira Mar. Calçadões largos, em boa parte de sua extensão. Boa arborização. Iluminação adequada, à noite. Quadras de esporte e dança. Teatro de arena. Água de coco e milho verde. Sorvete. Um excelente restaurante de frutos do mar. A Praça dos Estressados: desestressa, realmente. A Feira de Artesanato. O Jardim Japonês. O espigão da Praia de Iracema. Gente, muita gente, cobrindo todo um espectro humano. Porém, para zelar pela Beira Mar, é preciso estar bem alerta para reagir às ameaças passadas e futuras a sua integridade. (Evoco Jorge Luis Borges: o presente é tão impalpável quanto o ponto geométrico; o ponto não tem dimensão; o presente não tem duração.)
  
Quando eu era estudante secundarista, a enseada do Mucuripe, na extremidade leste da Beira Mar, era emoldurada por altas dunas, sensuais e imaculadas. Águas límpidas. Passar a tarde no Mucuripe era tão relaxante quanto o eram as tardes de Itapoã de Vinícius de Moraes e Toquinho. Já antevemos o trágico fim da praia do Mucuripe: as dunas estão enclausuradas por alta muralha de edifícios de concreto, ao gosto de nossa iconoclasta classe média; suas águas são impróprias para banho. O que existe por trás da muralha? Favelas. Está claro que o nascer do sol do Mucuripe morreu.

O pôr do sol da Volta da Jurema sobrevive porque se aproveita de uma brecha existente no paredão de concreto. Literalmente. Até quando? A fúria imobiliária, com a conivência corrupta de todas as prefeituras, põe em xeque os derradeiros espaços abertos. Afora as agressões à natureza, perfilam-se outros problemas. O calçadão é sujo: qual seria sua cor? (Lembro-me com inveja de Montpellier, França: ao terminar uma feira livre, caminhões equipados com vassouras e pás gigantes logo apareciam. Esfregavam, limpavam, enxugavam e perfumavam o ambiente.) Mais sobre o calçadão: os buracos aparecem cada vez mais: consertos toscos, quando são consertados. Em certos trechos, os pedestres, caminhando por estreitas calçadas, são constrangidos pelos carros. Não há espaços adequados às crianças. As barracas de bebidas e guloseimas são feias, malcuidadas e sem padronização. De um modo geral, a impressão é de desleixo.
   
Há esperança para a Beira Mar? Sim e não. Sim, porque existe um ótimo projeto de sua requalificação, a cargo dos renomados arquitetos Ricardo Muratori e Fausto Nilo. (Fausto Nilo foi um bom amigo dos meus tempos universitários, e das noitadas de artes musicais e de boemia na São Paulo dos anos setenta. A arte, bem entendido, é dele, Fausto Nilo: além de arquiteto, fino compositor.)  Os trabalhos preveem pavimentação das vias de tráfego de veículos, estacionamentos, passeios, ciclovias, construção de um aterro hidráulico e um espigão, além de tratamento paisagístico, melhoria da Feira de Artesanato, novo Mercado dos Peixes, embarcadouros, área de manutenção de jangadas, quiosques e instalação de um bonde elétrico. A concepção do projeto pode ser apreciada em
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/10.109/3559?page=3 .

Vistosas placas se erguem ao longo da avenida, anunciando pomposamente o início da execução do projeto em março / 2013, com duração prevista de dois anos. Estamos praticamente no término do prazo, e o resultado é lamentável: somente o Mercado dos Peixes e o espigão, ambos inacabados. A explicação é o contingenciamento das verbas federais. A esperança empalidece. Atrasos em obras significam mais e mais lucros para as empreiteiras, mais e mais custos ao erário público, e superfaturamento de aditivos de contrato geradores de corrupção de agentes públicos. Sem me referir aos chamados grandes empreendimentos estruturantes deste imenso país carente, todos em compasso de espera.

Se fosse jovem, ensaiaria comandar um movimento de massas pela imediata requalificação da Beira Mar, incluindo sua manutenção permanente. 


*-  Paráfrase de Ai de Ti, Copacabana!, do grande cronista Rubem Braga.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Pot-pourri Literário



Na Odisséia de Homero, há uma passagem em que o herói Ulisses exorta seus companheiros a não ter medo de se aventurar pelo desconhecido. Os homens, diz Ulisses, nasceram para conhecer e para compreender. Pois bem: a literatura é uma fonte de conhecimento e de compreensão. A pretensão é fazer, nestas poucas linhas, minha apologia da literatura. Apoio-me em dois grandes  literatos, os quais foram fundamentais para me inculcar o gosto pela literatura: o argentino Jorge Luis Borges* e o cubano-italiano Italo Calvino**. O formato é pot-pourri (expressão francesa que significa, neste contexto, uma mistura heteróclita de pequenos textos sobre literatura).

Alto e bom som, temos que aceitar o mal do mundo. Não se trata de resignação: o mal é sofrer uma violência gratuita, ou uma grande esperança desfeita, ou uma grande perda, ou tantas outras coisas. Para os religiosos -- e eles são a imensa maioria -- ainda há que adorar um Deus inalcançável e incompreensível. A literatura aborda o Mal de múltiplas formas: retenho a de Dante Alighieri, em sua Divina Comédia. Dante nos traz sua visão dos dogmas cristãos Inferno, Purgatório e Paraíso. Dante é religioso? Pode até ser, mas calma! No Inferno, ele conversa com dois condenados, Paolo e Francesca, que se amam e que estão juntos para sempre; assim, mesmo partilhando os horrores do inferno, eles vivem uma espécie de paraíso! Então, Dante é religioso, ou é anti-religioso? Dê sua interpretação: é bem provável que a pergunta perca o sentido.

Emanuel Swedenborg, que viveu no século XVI, era ao mesmo tempo um homem de ciência (professor da Universidade de Upsala, Suécia) e um homem prático (engenheiro militar). Eis que  torna-se também um místico e assenta as bases de uma nova religião. O interesse reside em que é uma religião que privilegia a inteligência! Ele prescreve, com todas as letras: a santidade é descartável;  é preciso investir-se de inteligência. Exemplifica com a história de um homem que se propôs ir para o céu: renunciou a todos os prazeres sensuais e então foi se empobrecendo. No céu, os anjos não sabiam o que fazer com  ele: embora justo, era um pobre mental. Reservaram-lhe um deserto. Swedenborg nos convida a todos a nos salvar mediante uma vida rica de justiça e de inteligência. É fácil entender por que sua religião não prosperou.

Em uma obra literária, tão importante quanto o conteúdo é o estilo. A falta de estilo pode comprometer toda uma grande ideia. Um bom estilo pode ser pesado ou leve.  Diversos grandes escritores são pesados (Dante o é),  enquanto outros são leves. De meu modesto lugar, eu prefiro a leveza. A leveza é firmemente calcada em nossa realidade atômica: somos um corpo pesado mas que é formado de partículas elementares sem peso. Desse extraordinário e aparente paradoxo, tiram-se lições de estilo: um assunto, por mais complexo que seja, pode ser decorticado, sem prejuízo do todo. Enfim, a função existencial da literatura, em busca da leveza como antídoto ao peso da vida.

Deve-se ler um livro pelo prazer de ler: hedonismo puro, por maior que seja a importância ou a transcendentalidade do tema. Um grande escritor teve a honestidade de dizer que abominou o consagrado Ulysses de James Joyce, exatamente porque não sentia prazer em sua  leitura. O prazer também é estético: pegar um livro pode suscitar uma diversidade de sentimentos e emoções. Cabe agora uma digressão: é possível discernir beleza em um livro digital (e-book)? Para mim, definitivamente não, sem ignorar que sou passível de contestação.

O que é um livro clássico? É um livro que nunca termina de dizer o que tem para dizer. Espero ter evidenciado que a Divina Comédia, de Dante Alighieri, é um clássico. Nossa vida moderna, infelizmente, nos deixa pouco tempo de prazer de leitura. A sugestão só pode ser (re)ler pouco e bem. Os clássicos estão aí para isso.


*- Borges Oral & Sete Noites, Companhia das Letras, 2011.
**- Por Que Ler os Clássicos, Companhia das Letras, 1993.
      Seis Propostas para o Próximo Milênio, Companhia das Letras, 1990.