quinta-feira, 26 de março de 2015

O Que Reluz Não É Ouro



O dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues -- agudo prescrutador do inconsciente coletivo brasileiro -- explicava que nossos grandes jogadores de futebol sofriam do Complexo de Vira-lata, tal o sentimento de inferioridade perante seus rivais argentinos, uruguaios e europeus. Desde então, o Brasil ganhou cinco Copas do Mundo e o diagnóstico perdeu o sentido; a recente e desmoralizante derrota de 7 a 1 para a Alemanha se deve a outros motivos. Na verdade, o Complexo de Vira-lata sempre afetou uma gama muitíssimo maior de brasileiros, com seu comportamento abespinhado face ao que se imagina o nirvânico Primeiro Mundo. Com muita frequência, ouvem-se exclamações como: "Limpeza de Primeiro Mundo!", "Salário de Primeiro Mundo!", "Civilidade de Primeiro Mundo!". Atentem todos os que gostam de se expressar neste padrão boçal e ignorante "<coisa> de Primeiro Mundo!": o que reluz [no Primeiro Mundo] para uns não é ouro para outros.

Paris é uma cidade suja ... à sensibilidade japonesa. Os jovens diplomados espanhóis recebem salários aviltantes ... comparados aos de seus congêneres franceses. Protestar contra assédio sexual na China pode dar prisão*. Aos respectivos detalhes.

Os pássaros verdes (oiseaux verts, em francês) são jovens japoneses vivendo em Paris, amorosos da cidade, mas que, egressos de um país que faz da limpeza uma obsessão, não se conformam com a sujeira de Paris. Partem à ação. Reúnem-se aos sábados, em um lugar icônico da capital francesa, faça chuva ou faça sol. Ei-los no Centro Georges Pompidou, diante do SacréCœur e de Notre Dame, na Avenida Montaigne, nos Champs-Elysées e na Ópera Garnier. Para não mencionar outras inumeráveis atrações da Cidade Luz. Munidos de sacos, recolhem o lixo do chão com as próprias mãos. São comoventes: dizem que é uma maneira modesta de retribuir tudo o que a cidade lhes oferece. Única lamúria: o ar blasé dos parisienses. Quem os elogia e os incentiva? Poloneses, dinamarqueses, marfinenses ... . Com certeza, os 50 milhões de turistas anuais -- milhares e milhares de brasileiros incluídos -- não podem ser inculpados por sujar Paris**. (Fonte: www.sept.info, site suíço acessado em 05/03/2015.)

Os engenheiros David Navarro e Néstor Pérez, ambos com 25 anos, estão entre os milhares de jovens diplomados espanhóis que emigraram para a França, em busca de salários e outras condições de vida mais decentes. Eles se consideram exilados econômicos. Néstor chama a atenção para a degradação das condições de trabalho na Espanha, mergulhada numa crise sem fim que paralisa o país. David: as empreiteiras de obras públicas se aproveitam da crise para puxar para baixo os salários, e para impor jornadas de trabalho de dez a onze horas. De acordo com os dois, a situação da França -- também em crise -- é muito melhor. Nesta última, os direitos trabalhistas são respeitados. A diferença mais notável entre os dois países concerne aos salários: na caríssima Paris, Néstor e David vivem confortavelmente, assim como tantos outros trabalhadores espanhóis especializados. Destaque outrossim para as durações das férias remuneradas: na França, quarenta dias; na Espanha, vinte e quatro. (Fonte: www.infolibre.es, site espanhol acessado em 26/02/2015.) 

Cinco jovens chinesas, feministas, afixavam cartazes em protesto contra o assédio sexual nos transportes públicos. Foram por isto arrestadas pela polícia, sofrendo todo tipo de constrangimento. A liberação se deu com a ameaça: se persistissem, seriam denunciadas e presas preventivamente. É a convivência desnatural de uma economia dinâmica e multifacetada com um sistema político engessado e ancestralmente totalitário. Assim é a China. (Fonte: Courrier International 19-25/03/2015, semanário francês.)

Nós, brasileiros, deveríamos proceder no sentido de avançar nosso próprio processo civilizatório. Mirar-se irrefletidamente no Primeiro Mundo não é o melhor caminho.


*- A China, segunda economia mundial, não tem por que não pertencer ao Primeiro Mundo.
**- Os brasileiros sujam [muito] aqui, mas não sujam lá. Nem Freud explica.


6 comentários:

  1. Meu caro Marcus, concordo com o seu texto em quase tudo, menos com o que não foi dito: a segurança. Quem conhece o 1o mundo (sendo brasileiro) não tem como não sofrer do Complexo de Vira-lata com respeito a esse ítem prá lá de importante na vida das pessoas. Acho que ninguém em sã consciência escolheria de bom grado viver nessa insegurança obscena em que vivemos.

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    1. Meu Caro Bernardo, concordamos com tudo. Censurei as comparações irrefletidas. Fora isso, é óbvio que o Primeiro Mundo nos ensina muitas coisas.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Querido Marcus,
    Devo discordar de você. Devemos, sim, mirar-nos no primeiro mundo. Mas devemos obviamente ser seletivos. Admirar a limpeza de Zurique, não a de Paris; admirar o transporte coletivo de Paris, não o da América do Norte.

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    1. Querido Jacques,
      Perfeito. Não fui claro com o "mirar-se irrefletidamente": o desejável oposto é também "ser seletivo".

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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