quinta-feira, 19 de março de 2015

A Alma Zangada das Ruas*



Dois milhões de brasileiros foram às ruas neste 15 de março de 2015, aos gritos de "Fora, Dilma!" e "Fora, PT!". É a consequência vexaminosa e acachapante de uma eleição presidencial ganha às custas da enganação de um marqueteiro, pintando a realidade como dourada quando ela já era no mínimo cinzenta. Suprema humilhação à inteligência e dignidade dos quase 52 milhões de eleitores que votaram pró reeleição de Dona Dilma Rousseff  (contra aproximadamente 50 milhões).

As causas desta débâcle fulminante, os leitores conhecem à saciedade. Em síntese, é a conjunção perversa de nove fatores não excludentes:
   (f1) A recessão econômica, profunda e duradoura;
   (f2) A inflação crescente e sem controle;
   (f3) A alta do dólar, cujos supostos benefícios se anulam por: (1) prejudicar vastos setores industriais que dependem pesadamente de insumos importados, e (2) aumentar drasticamente o endividamento de um sem-número de grandes e médias empresas;
   (f4) A inflexão das conquistas dos pobres, que perdem benefícios sociais e temem pelo ganha-pão;
   (f5) A desilusão da classe média, face à escassez de empregos bons e estáveis;
   (f6) A corrupção do dinheiro: (1) no governo, (2) no partido do governo, o PT, (3) em outros partidos políticos, sobretudo os da base 'aliada' do governo, (3) nas estatais Correios e Petrobras (outras estatais estão na mira dos investigadores);
   (f7) A corrupção da política: as relações prostituídas governo - base 'aliada' no Congresso;
   (f8) A falta de competência e de autoridade moral do governo para lidar com a crise;
   (f9) A falência dos partidos políticos e do sistema político-eleitoral brasileiro.

(Perceba-se a ausência do mundo financeiro. É habitual nos desarranjos econômicos, seja no Brasil seja no Exterior. Na caso específico brasileiro, as instituições financeiras nunca ganharam tanto dinheiro quanto nos governos Lula e Dilma. Eles, os financistas, talvez sejam os derradeiros apoiadores dos governos do PT, ou deveriam sê-lo.)

A presidente Dilma não tem um projeto para o Brasil, não pensa estrategicamente. A sua política é de miudezas. Confunde macroeconomia com ajuste fiscal. O principal de seu esforço visa a disciplinar sua heteróclita base 'aliada', para se garantir: o poder pelo poder. Acontece que a dita base é fisiológica e impiedosa: às vezes, exige-lhe o máximo de energia improdutiva. É o que está acontecendo agora, com a aberta rebelião dos notórios dirigentes do Congresso deputado Eduardo Cunha e senador Renan Calheiros, ambos investigados pela Operação Lava-Jato. Dilma prova mais uma vez do joio que tem sistematicamente semeado.

Empurrada às cordas pelas manifestações populares, reage oportunisticamente oferecendo a promoção de duas reformas, política e anticorrupção. Como mostra com convencimento o respeitado jornalista e historiador Elio Gaspari**, sua reforma política é "para inglês ver". Sua reforma anticorrupção é a do PT (!): definitivamente, entramos no terreno do puro nonsense.

Para entornar de vez o indigesto caldo político, a presidente Dilma está apenas no início de seu novo mandato -- teremos que aguentá-la por ainda quase quatro anos --, a oposição também não tem projeto ou é pífia e envergonhada, e o povo está nas ruas dizendo não querer acordo nem com o governo e nem com os políticos. Last but not least,  assistimos ao bombardeio diário de noticias sobre novos e inacreditáveis números de desvio de dinheiro público ou de sociedades mistas, e da extensão da corrupção. As ruas estão muito zangadas! Arrisco dizer o seguinte: a fervura só não explode já porque, muito embora 69% acreditem que o desemprego só tende a aumentar, 61% [ainda] acham que não correm risco de ser demitidos ("É a economia, estúpido!" - James Carville, marqueteiro político).

A democracia brasileira se encontra, pois, em grave perigo. A imensa maioria da população esclarecida, de sólidas convicções democráticas, precisa orientar suas ações no único sentido de transfigurar esta nossa democracia de fancaria numa verdadeira democracia política, social e econômica. A alternativa antidemocrática deve ser repudiada com toda a veemência: do contrário, escancarar-se-á o campo para os espíritos ditatoriais e as vivandeiras do golpe militar de 1964. Ditaduras [militares] são regimes de negação da cidadania que nem a democracia mais esfrangalhada justifica. Aos que não viveram a de 1964-1984 ou que são desinformados dela, peço aos leitores que recomendem a leitura dos livros de Elio Gaspari enumerados no segundo rodapé.

Ditadura, nunca mais! Por um Brasil verdadeiramente democrático!  
 

*- Paráfrase de A Alma Encantadora das Ruas, livro de crônicas de João do Rio, pseudônimo do cronista carioca Paulo Barreto, que viveu de 1881 a 1921.
**- É autor de um completo painel da ascensão e queda da última e longa ditadura militar brasileira:
      A Ditadura Envergonhada, Companhia das Letras, 2002.
      A Ditadura Escancarada, Companhia das Letras, 2002.
      A Ditadura Derrotada, Companhia das Letras, 2003.
     A Ditadura Encurralada, Companhia das Letras, 2004.

Um comentário:

  1. Maquiavelicamente falando, Dilma foi perfeita. Na campanha ela prometeu o céu e disse que os outros trarão o inferno. Com isso ela ganhou a eleição.
    Agora, ela está fazendo o certo, impondo a reforma fiscal e lançando um pacote de economia nas despesas do governo.
    Já o PSDB (de Aécio) fez o contrário. Prometeu o que ia mesmo fazer e agora, como perdeu, decidiu ser do contra sempre, e está combatendo o programa que ele ia implantar e vai ajudar o país, só porque é da Dilma.
    Com essa atitude antipatriótica, ele conseguiu empatar com o PT. Um foi de imoral-> moral e outro foi de moral-> imoral.

    Esta situação me lembra o histórico dos aumentos do salário mínimo. Sempre o partido da oposição (seja PT ou PSDB ou PFL) defendia um aumento maior, só para desmraliar o partido do governo. Me lembro que uma vez até o ACM defendeu um aumento de 200% do S.M.
    A Dilma no momento está numa situação difícil. O PT não gosta dela porque ela não é suficientemente radical e deixa a polícia desvendar os podres da corrupção (o que nunca acontecia nos governos anteriores). O PSDB é contra para fazer média e porque ela roubou o programa deles.

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