sexta-feira, 7 de abril de 2017

Os Filósofos, Onde Estão



A crise da humanidade não é só política e econômica: é de ideias, a crise mãe de todas. E quando é mister amparar-se de filosofia, recorre-se de imediato a pensadores franceses, como não? As Lumières brilharam na França como em nenhuma outra parte. Descartes, Voltaire, Diderot e Rousseau despertaram o mundo todo para as ideias universalistas, progressistas e racionais. A Revolução Francesa foi o farol para os libertadores do planeta inteiro. Mais recentemente, ao longo dos três primeiros quartos do século XX, os intelectuais franceses  -- de Jean-Paul Sartre e Camus a Jacques Derrida e Pierre Bourdier -- explicaram como ninguém a conturbação das guerras mundiais, a impulsão e as fissuras dos comunismos, o ocaso do colonialismo. Sempre aprofundando e iluminando, cada um a sua maneira, os valores implícitos da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Filósofos da esperança, malgrado tanto horror.

Nossa época  -- último quarto do século XX e começo do século XXI -- é terrível porque engendra a desesperança e o vazio existencial. A trindade universalista  e progressista Liberdade-Igualdade-Fraternidade parece agora um dístico morto. Apoiar-se em quem, para compreender e reagir? Bernard-Henri Lévi? É o filósofo da desconstrução dos [grandes] filósofos, como se errar (às vezes, até muito) não fosse humano. Não, este intelectual da negação é infecundo.

Sudhir Hazareesingh é membro da Academia Britânica,  historiador e especialista em história política da França. Ele aponta duas causas principais da decadência da filosofia francesa: o descrédito dos regimes comunistas e a tecnocracia*,

Os grandes pensadores franceses do século XX eram majoritariamente de esquerda não-comunista. Mas não resta a menor dúvida de que a derrocada do regime soviético desconcertou, e como. As ideias mestras da esquerda francesa nunca deixaram de ser subjacentes aos princípios marxistas. Com a mesma velocidade da implosão do comunismo na Rússia e na Europa Oriental, as certezas se esboroaram. Sobrou o compromisso republicano, todavia um conceito de república sem significados precisos, salvo o patriotismo. Perigosa brecha para uma aproximação, ao menos retórica, com o nacionalismo populista e intolerante de extrema direita. Universalismo em baixa. Quais intelectuais contemporâneos ocupam a nova cena do nacionalismo republicano? Alain Finkielkraut, Renaud Camus, Florian Philippot. Este último é o guru de Marine Le Pen (sic). Eles todos destoam da grande tradição generosa e racional da filosofia francesa clássica e moderna (isto é, até Jacques Derrida e Pierre Bourdier). Felizmente por certo, são ilustres desconhecidos fora do cenário francês.

A maioria da elite intelectual francesa é egressa da Escola Normal Superior (ENS), a veneranda instituição do saber humanístico. Sartre, Foucault, Bourdieu e Derrida são todos normalistas. A ENS entrou em declínio por decisão política do Estado francês. Desde o advento da Quinta República de Charles de Gaulle (1958), as cabeças mais brilhantes têm se orientado para as instituições tecnocráticas doravante mais prestigiadas, tais como a Escola Politécnica e a Escola Nacional de Administração. Uma espécie de transição tecnocrática quanto à formação da intelectualidade. (Ressalte-se que a pretensa incompatibilidade humanismo vs. tecnocracia não resiste aos fatos. Por ininterruptos trinta anos desde o fim da segunda guerra mundial, a França viveu o apogeu de seu crescimento econômico -- Os Trinta Gloriosos. Da mesma forma, trinta gloriosos anos da ENS.)  Alto e bom som, a tecnocracia usurpou a filosofia. Quem lê filosofia francesa contemporânea?

A cultura universalista e prospectiva -- especificidade francesa -- se retrai. Passa a prevalecer a visão americana ou anglo-saxã do mundo: desnudada de componente inquiridor, centra seus valores imediatos no poder político, na economia de mercado e no individualismo. Humanidade sem filosofia, ilusões perdidas.


*- Entrevista concedida ao jornal online londrino Spiked -- spiked.com --, publicada em 01/02/2017.

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