sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Desamparada América Branca



É mais do que certo que arrogância, simplismo e desprezo dissimulam medo, insegurança e ódio. Enquanto a parte instruída da América Branca surfa nas ondas otimistas e revigorantes do progresso tecnológico --  "Os EUA são uma fonte impressionante de inovação. Acabei de fazer uma série de entrevistas na Amazon em Seattle e senti a inovação no ar ...", diz peremptoriamente meu amigo Jacques Sauvé --, a outra parte precariamente capacitada e desamparada da América Branca -- a América profunda -- disfarça seus medo, insegurança e ódio com manifestações de arrogância, simplismo e desprezo para com o mundo inteiro. Tudo isso se passando na principal potência nuclear do planeta, às voltas com sintomas de uma ressurgente guerra fria com a nuclearizada Rússia (e nem se fale da China). É de apavorar, sem fingimento.

Um cidadão da América profunda dificilmente encontra um bom emprego. Vê seus filhos morrerem de overdose. Não consegue confiar nas médias, nem nas elites políticas, nem em ninguém. Tem acesso a portais de notícias ultraconservadores como Breitbart News, que difunde que o presidente Barack Obama é um terrorista estrangeiro. Quase impossível a ascensão social, em uma cultura que encoraja a degradação social em vez de combatê-la. É pois falacioso afirmar que as causas da deterioração da sociedade norte-americana se devem primordialmente à economia globalizada que rouba empregos locais: pertencer à baixa classe média e à pobreza por si só engendra motivos específicos e determinantes para a degeneração.

Números estarrecedores. O consumo de heroína nos meios da América branca e pobre quadruplicou nos últimos dez anos. Não é exagero reconhecer a existência de uma verdadeira epidemia da droga, sem excluir outras pesadas como a cocaína. O fenômeno dilacera particularmente pequenas cidades e zonas rurais norte-americanas. Entre os estados mais atingidos, figuram New Hampshire (vizinho dos resplandescentes estados de Nova Iorque e Massachusetts), os estados do Meio-Oeste e aqueles da região dos Montes Apalaches.

Não deveria pois surpreender que o cidadão da América profunda detesta os detentores do poder: os Clinton, Barack Obama e os banqueiros de Wall Street. Campo fértil para dar ouvidos às grosserias sem peias de Donald Trump contra pessoas e instituições. Muitos também encontraram guarida em Bernie Sanders -- o rival de Hillary Clinton quando das eleições primárias do Partido Democrata -- que, com um discurso politizado, posicionou-se veementemente contra o establishment.

Se é bem verdade que as tensões raciais se multiplicam, ou que o racismo se escancara, é igualmente certo que grassa um processo de isolamento cultural e social das gentes da América profunda. Em sua coluna na FSP de 03/11/2016, o articulista Clóvis Rossi vai na mesma linha: "Ao contrário de culpar os eleitores quando uma derrota eleitoral se afigura, é mais razoável sugerir que se estude a alma deles [dos eleitores de Trump], para compreender -- e eventualmente corrigir -- esse difuso mal-estar que gera o 'trumpismo'".  


Principal fonte - Courrier international, 3-9/11/2016. 

2 comentários:

  1. Seus sábios pensamentos sobre o povo dos E.U.A. são muito preocupantes, pois o mundo depende desse País... E povo dos EUA regredindo, ao lado da evolução tecnológica, em sua maior parte apoiada por brilhantes cientistas de todas as partes do mundo, significa um futuro imprevisível.


    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É isso aí, Caro Junior. Os historiadores do futuro terão muito o que contar / analisar sobre nosso mundo de hoje, se o mundo sobreviver até lá.

      Excluir