sábado, 18 de julho de 2015

O Inferno Brasileiro



Júlio Vitorino Figueiroa -- sobrinho de meu amigo e colega de trabalho, Ângelo Brayner -- é um valoroso jovem cearense. Professor da Faculdade Nordeste (FANOR), Mestre em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Doutorando em Comunicação pela UFBA. Vem de sofrer uma experiência terrificante, desde uma praia turística de Fortaleza até uma intimidante delegacia policial. Angústia além de kafkiana, porque impregnada de violência física policial; mais apavorante do que o inferno borgiano, posto que dolorosamente concreta. Uma ilustração, entre tantas outras, de um Brasil de costas para a civilização.

Abrem-se aspas para Júlio. 
Sábado, 11 de julho. Ato minha bicicleta dentro do Estoril (rua dos Tabajaras, 359, Praia de Iracema, Fortaleza) e espero dois amigos. Escoro-me na entrada de um estacionamento. De dentro, três pessoas -- policiais civis disfarçados, identificaram-se depois -- se aproximam numa postura que a minha reação primeira entende como suspeita: coisa estranha... estes caras tão procurando alguém pra brigar ou tão a fim de roubar alguma coisa. 
--- Ei! Ei! O que é que tu tava bilando* a gente ali, hein? (um dos policiais)
--- Como é? Bilando o quê!!? Num tava bilando nada não!”(eu)
--- Bilaaaando!! tu tava bilaaando!” (policial) 
Vejo que o policial empunha uma arma de fogo. O cara enche a mão com a minha camisa e me puxa pelo peito com violência, tentando me arrastar para dentro do estabelecimento, intensificando o tom da ameaça. Uma porrada vindo de algum lugar entra na lateral da minha cabeça, com gosto e muito peso. Fico atordoado. Mas é só a primeira. Outros golpes pesados entram em minha cabeça. 
--- SEU MERDA!!!! SEU DROGADO!!!! TU TÁ PENSANDO O QUÊ???? (policial)
--- O que é isso?!!! Vocês tão ficando doidos? (eu) 
Na nuca, têmpora, maxilar e costas. E entra mais um, dois e três golpes em cheio de mão aberta enquanto eles rasgam minha camisa pela força do puxão. Peito e ombro à mostra. Meu corpo é carregado para dentro do estacionamento, mais distante da rua, e derrubado no chão. Os chutes começam. Mais policiais estão ali. 
Me livro do que sobrou da blusa e respondo verbalmente negando as acusações de tráfico, recuperando aos poucos a energia e o entendimento para uma postura altiva e digna. Mexem nos meus bolsos, retiram celular, carteira e meu cantil, enquanto distribuem insultos gritados de drogado e vagabundo. Eu digo que estão vacilando, tão fazendo a coisa errada, que podem revistar o que quiserem o quanto quiserem. Tapa. Critico a abordagem e a ação, levo tapa. Contesto, tapa. Eu olho, é tapa. Não me comporto como se deveria esperar. Tapa. 
É transmitida a informação de que vou ser autuado por desacato e blá-blá-blá. Sou ordenado a ficar sentado ao lado de quatro adolescentes, já enfileirados no chão. “Eu sou usuário, mas me pegaram, porque tão dizendo que é pra vender”, foi o que o adolescente de blusa verde disse quando eu buscava entender. 
Chegam duas viaturas do ronda do quarteirão, que barram o estacionamento. Eu e o adolescente vamos na caçamba aberta de um veículo Hilux prata particular. Sou algemado junto ao jovem, e um policial sobe na caçamba com uma pistola preta em punho, mantendo-a abaixo do campo de visão de quem observa fora do carro. Durante o caminho, tento manter as algemas à vista para condutores e pedestres. “Tamo indo pra delegacia de narcóticos", diz o policial quando eu pergunto. 
Preencho uma ficha de comparecimento a uma audiência com uma delegada. O policial que me recebe na mesa mostra vários pertences. “O que é que é teu aqui?”. “Celular, carteira e cantil. Mas tem também minha camisa que eles rasgaram e ficou lá, junto com a minha dignidade" . Ele ri. “Olhaí, doutora. Ele disse que tem que devolver também a dignidade, oh”, voltando a abrir o sorriso. A delegada, de blusa gola polo preta com a marca da polícia bordada no peito, aparece e fica de pé apoiada na mesa, de frente pra mim. Ela age numa frequência semelhante à dos mais exaltados, só não me agride fisicamente.
--- Você não quer ser escutado?? Então pode começar a falar que eu tô escutando! (delegada, de pé, um tanto furiosa)
--- Eu quero saber o nome completo de todos os caras que me bateram pra denunciar (eu) 
--- Isso aí você vê na delegacia ‘tal’ segunda-feira, não é aqui não isso (delegada)
Mais um pouco e ela perde a paciência e desiste de me escutar. Abana a mão direita para o policial que preenche a ficha: “qualifica, qualifica”, desaparecendo pra não voltar mais.
Abre-se um momento de conversa entre alguns policiais ali presentes e eu. Minutos depois, por discordar, recebo insultos de “palhaço, cala boca (4x), burro (5x), vagabundo (?), vá com seus amigos baitolas, você é um ignorante, etc….”. Insultam-me, incansáveis, sem baixar o volume, de dentro do elevador até a saída da Delegacia de Narcóticos.
Fecham-se as aspas.

Refeito do trauma, na medida do possível, Júlio desabafa este libelo contra a situação geral na qual vivemos. "O problema da violência é enfrentado por todos nós, cidadãos engraxates, cidadãs donas de casa, cidadãos estudantes, cidadãos motoristas de ônibus, cidadãs professoras, cidadãos engenheiros, cidadãos desempregados, cidadãs dançarinas, cidadãos músicos, cidadãos policiais (sim, existem cidadãos policiais), cidadãos surfistas. Violência do ciclista contra o pedestre, violência do homem contra a mulher, violência do ônibus contra o ciclista. Justiça cada vez fora de moda, dentro e fora da polícia." 

O que fazer? Ser cidadão. Direitos e deveres. Não aceitar as agressões e as injustiças: reagir, protestar, botar a boca no trombone. Sem abdicar de respeitar os outros e o meio ambiente. Enfim, comportar-se assim como Júlio. Não há salvação, fora da consciência da cidadania.


*- Bilar: olhar fixamente. Gíria.

4 comentários:

  1. Você sabe minha resposta a esse triste cenário: a emigração. Sei que nem todos podem, mas cada vez mais jovens escolhem esse caminho.

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  2. Júlio levou a coisa à frente? Algum resultado?

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    1. Melhor deixar que o próprio Júlio responda. Alô, Júlio.

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    2. O Júlio, meu sobrinho, está levando sim o caso à frente. Difícil prevê o que acontecerá com os policiais agressores, já que a prática de tortura é pratica cotidiana do aparo policial no Brasil. Segue link de matéria do Jornal OPovo sobre o caso.
      http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2015/07/18/noticiasjornalcotidiano,3471934/professor-oficializa-denuncia-de-agressao-na-cgd.shtml

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