sexta-feira, 3 de julho de 2015

O Inferno Borgiano



Sanguinolência mortífera na Tunísia, no Kwait e na França; terrorismo branco nos Estados Unidos; emigrantes africanos se afogando no Mediterrâneo; Grécia exangue; Índia e Paquistão se torrando de calor; Nordeste brasileiro esturricado; governança global esquizofrênica; intelectualidade esterilizada; cultura alienada; política e economia brasileiras no volume morto. Não pára por aí. Corro revisitar a discussão A duração do inferno, de Jorge Luis Borges.

Borges é ateu e extremamente sensível a questões religiosas: afinal, mais de nove entre dez pessoas são de alguma forma ligadas a religião. Dispôs seu imenso talento lógico, sua aguda consciência da fragilidade humana e sua enorme erudição no afã de vislumbrar significâncias em dogmas religiosos. Vontade de crer, talvez.

A noção do dogma do Inferno, não importa a religião específica, se exprime assim: lugar de castigo eterno para os maus. A pena é infinita porque a culpa também o é por atentar contra o infinito Deus. Mas o argumento é um sofisma: a mesma culpa é santa porque Deus também é santo. Ou que, por exemplo, as ofensas feitas a um tigre devam ser raiadas.

Entre os filósofos, encontram-se ao menos duas belas e humanísticas posições contra a eternidade do Inferno. A imortalidade é um dom de Deus em Cristo (humano). Não pode se voltar contra a humanidade: quem a merecer, recebe o céu; quem é indigno de recebê-la, morre para morrer. A segunda é um raciocínio por absurdo: é um escândalo aceitar que o homem pecador e o Diabo possam provocar Deus para sempre.

O tema na literatura. Para Dante Alighieri, as labaredas do Inferno não fazem mais do que abrasar a paixão e o amor eternos de Paolo e Francesca. Baudelaire acha tão tresloucada a ideia de imperecíveis tormentos, que brinca de adorá-los. E há o debochado mór, Tertuliano de Cartago: "Que admiração sentirei, que gargalhadas, que comemorações, que alegria quando vir tantos reis soberbos sofrendo nas mais ínfimas prisões das trevas; tantos graves pregadores se consumindo em rubras fogueiras com seus ouvintes iludidos; ... ."

O inferno das religiões não deve existir. Todavia outros infernos existem. Para descrever um deles, Borges usa o recurso do meta sonho. Sonhou que saíra de um cataclísmico sonho, e que despertara num quarto mal iluminado e tétrico. Estava só. Pensava com medo onde estou? e compreendia que não sabia. Pensava quem sou? e não podia se reconhecer. Dizia-se: esta vigília sem destino será minha eternidade. Despertou. Tremendo.

Mais inferno? Nosso Mundo descrito no primeiro parágrafo.

2 comentários:

  1. Um dia, eu me achei num conto de Borges: eu acordei e, por alguns segundos, e não sabia quem eu era. Aterrorizante!
    Quanto ao inferno, o século 21 assusta cada vez mais.

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