quinta-feira, 23 de abril de 2015

O Brasil de Gilles Lapouge


Gilles Lapouge é um jornalista literário francês, amoroso do Brasil. Chegado a nosso país em 1951, desde então colabora para o jornal O Estado de São Paulo. De volta à França bons anos depois, nunca deixou de manter um extremado vínculo com a brasilidade. Como ele mesmo gosta de enfatizar, sua sabedoria de Brasil abarca mais de sessenta anos. Publicou em 2011 Dictionnaire amoureux du Brésil, cuja primeira edição em português saiu recentemente*. Detentor de muita cultura e vasta erudição, seu regard sobre nós constitui um precioso cabedal de novos conhecimentos brasileiros, imperceptíveis a nosso olhar endógeno.

De seu dicionário amoroso do Brasil, escolhi ao acaso o 'verbete' "Proust nas favelas". Eis um resumo dele.

Na maior favela do Rio de Janeiro, Rocinha, uma magnífica professora (o adjetivo é meu) deu o livro Um Amor de Swann, de Marcel Proust, para a leitura de seus alunos adolescentes. Empreitada natimorta? Desvario da professora? Afinal, os garotos e garotas não crescem entre livros. São afeitos, força do ambiente, a pequenos delitos, mascatagem e ao diversionismo do carnaval. Como despertá-los para o mundo encantado da literatura?

Na verdade, Um Amor de Swann lhes foi apresentado de forma lúdica, porém -- muito importante -- sem vulgaridade. A proeza coube a Stéphane Heuet (Éditions Delcourt, França), que transformou o texto em uma história em quadrinhos, com grande atenção ao original de Proust. Primeiro, a concernente paisagem urbana de Paris é minuciosa e fielmente retratada. Segundo, os diálogos dos personagens reproduzem escrupulosamente os ditos de Proust. Os quadrinhos foram traduzidos para trinta países, entre os quais o Brasil. Os especialistas em Proust aprovaram o trabalho. Os moleques e molecas da favela da Rocinha gostaram!

E assim, a gente sofisticada do faubourg Saint-Germain desembarcou, lantejoulas e bagagens, em plena Rocinha. Não tem outro jeito senão reproduzir Gilles Lapouge: "Madame Verdurin ... seria até mesmo capaz de perder o início da temporada musical de Bayreuth para honrar o convite da professora carioca.". Em vez de sonata de Vinteuil, baile funk.

Como seria possível uma identificação entre os garotos da Rocinha e os parisienses de Proust? Pontos comuns, sempre os há. Por exemplo, o ciúme é um mal universal. Só diferem as formas de verbalizá-lo. Para Swann, o ciúme é a sombra de sua amada, que se carrega de amor por outro. A meninada rocinhense diria, de maneira direta: "A Odette de Crécy é uma puta, não?". Ou então: "Você não acha que esse Charlus é viado, hein?". O bacana é que as crianças da Rocinha compartilharam as tristezas de Swann.

No mais, a literatura labiríntica de Marcel Proust bem que pode se transformar, nas cabecinhas da Rocinha, em saborosa literatura fantástica.

Revisitarei Gilles Lapouge, de vez em quando. Faz-me bem, e creio que o fará também a meus leitores.


*- Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil, Gilles Lapouge, Editora Amarilys, 2014.


2 comentários:

  1. Caro Marcus,
    Obrigado por me dar vontade de ler o Dictionnaire amoureux du Brésil do Gilles Lapouge.
    Sobre a obra do Marcel Proust, devo confessar que ele é o único escritor que ainda não consegui a ler. Já tentei várias vezes mas tenho dificuldade com seu estilo.
    Abraços

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  2. Muito interessante, Marcus. Obrigado.

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