sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Renda Mínima Universal



A persistente crise socioeconômica mundial e o vazio de ideias renovadoras nos domínios da economia e da sociologia, dois fenômenos que caminham pari passu. Insuportável o discurso recorrente dos 'economistas do mercado': loucura senoidal das bolsas de valores, enchendo os bolsos de uns e esvaziando os de outros; loas aos 'criativos' que ganham dinheiro com o aquecimento global; como enriquecer ainda mais com a recessão; PIB importa muito, distribuição de renda importa pouco; mais lucros, menos salários; superávit fiscal para remunerar os rentistas. Em resumo, o mundo que lhes parece interessar é o mundinho dos endinheirados e dos especuladores. Bancam avestruz diante da bomba relógio da explosão social: ignoram (mal-intencionados?, comprometidos?) a crescente perda de qualidade de vida ou completa marginalização da imensa maioria das populações, bem como não se incomodam com a rápida deterioração do planetinha. Os sociólogos, quanto a eles, onde estão?

O economista britânico Guy Standing, da Universidade de Londres, chama a massa dos desafortunados da desigual ordem socioeconômica de a perigosa nova classe das gentes em estado de precariedade (título de seu recente livro: The Precariat: The New Dangerous Class). Os precários "escutam o canto das sereias do populismo neofascista, interpretado atualmente por Donald Trump". E por Marine Le Pen, et caterva.

Diante de um contexto tão desalentador, o surgimento por si só de propostas novas no sentido do social merece toda a atenção. É bem o caso da renda mínima universal, objeto deste artigo.

A ideia de Guy Standing é singela: uma dotação sistemática a todos os adultos, não importando a situação financeira. É isso mesmo, até os ricos receberiam: zero burocracia seletiva, e pronto; ou nenhum custo de implantação. Ele enumera os principais pontos a favor: (1) justiça social, citando em apoio Thomas Paine, o intelectual franco-americano que no longínquo 1795 preconizava um "donativo cidadão" a toda pessoa privada da herança natural de bens da mãe-terra, perda causada pela propriedade individual; (2) erradicação da pobreza extrema; e (3) um alívio à insegurança crônica provocada pela desigualdade crescente.

Dois contra-argumentos e sua contestação. Primeiro, os custos de um tal programa seriam exorbitantes. Cita-se o exemplo dos Estados Unidos: em 2013, o país contava 242 milhões de adultos. Supondo que cada um recebesse 10.000 dólares anuais, as despesas chegariam a 2 trilhões e 420 bilhões de dólares, ou seja, três vezes o montante atual dos gastos sociais do governo norte-americano. Esquece-se, como acentua Guy Standing, que a renda mínima universal substituiria todos os programas sociais existentes; ou seja, a renda universal seria o único programa social. A mais, Guy Standing advoga a criação de fundos soberanos com a finalidade de financiar parte do programa, nos moldes dos congêneres já existentes no Alasca e na Noruega, abastecidos com royalties do petróleo (no caso da Noruega, é uma reserva antecipada para os tempos pós-petróleo). Outras fontes de financiamento, indicadas sobretudo para países sem petróleo: taxação de abastados rentistas e de proprietários de opulentos patrimônios, adquiridos ou herdados.

Segundo contra-argumento. A renda mínima estimularia a indolência e o abandono do trabalho. Em verdade, a crítica cabe aos sistemas vigentes de ajuda aos pobres: não vale a pena abrir mão de dotação estatal em troca de emprego ou subemprego mal pago e ainda passível de encargos; trocando em miúdos, o líquido do baixo (sub)emprego seria inferior ao amparo social. Ao contrário, com uma renda básica decente e assegurada, todo emprego -- não importando sua qualidade e as obrigações trabalhistas decorrentes -- implica necessariamente em renda adicional, o que encorajaria as pessoas a procurar trabalho.

Guy Standing não tem sido o único a propugnar pela renda mínima compulsória, longe disso. A exemplar Finlândia já pratica sua modalidade de renda básica. Na França, a nova estrela política Benoît Hamon, nascida dos escombros do Partido Socialista, tem sua proposta de renda mínima. Universal como a de Guy Standing, ele sugere que o dinheiro venha em parte de um "imposto robô"; mais precisamente, as empresas que dispensam recursos humanos por automação devem pagar um imposto social compensatório.

Aqui no Brasil, o denodado ex-senador Eduardo Suplicy -- um petista sem mácula -- tomou repetidos e deselegantes chás de cadeira da então presidente Dilma Rousseff, na tentativa frustrada de convencer a presidente a operar para por em prática sua Lei Suplicy de renda mínima.  Isto mesmo: Lei 10.835 de janeiro de 2004, aprovada pelo Congresso e sancionada, instituindo a renda básica de cidadania. Pela lei, todos os brasileiros e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no país devem receber um benefício monetário suficiente para atender às despesas mínimas com alimentação, educação e saúde. Programa à prova de corrupção, posto que universal. Desnecessários o bolsa família e todos os demais programas sociais existentes. Como se vê, um dos problema do Brasil não é a falta de leis, mas sim a não observância a leis.

Se até há pouco tempo os defensores da renda mínima eram considerados uns "loucos solitários" -- em pindorama, muitas pessoas se referiam pejorativamente ao ínclito Eduardo Suplicy como "o chato da renda mínima" --, hoje não é mais assim: a renda mínima está na ordem do dia nos mais diversos cantos do mundo. Que o debate em torno prospere!

2 comentários:

  1. A propósito:
    http://www.economist.com/news/leaders/21716027-india-should-replace-its-thicket-welfare-payments-single-payment-india-debates-case

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    1. Caro Jacques,
      A Índia também em fase com a renda mínima universal.
      Um abraço,
      Marcus

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