sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O povo contra a corrupção



A Romênia fica nos confins da Europa Oriental, às margens do Mar Negro. Nos primórdios, uma província romana. Em comum com o Brasil, as respectivas línguas latinas. Enquanto a língua portuguesa é, a oeste [de Roma], a "última flor do Lácio" (Olavo Bilac), a língua romena é a flor derradeira, a leste. País cultivado, tornou-se uma potência em ginástica artística: nas olimpíadas de Montreal em 1976 sua estrela maior, Nadia Comaneci, maravilhou o mundo artístico-desportivo. Reverso da medalha, seu povo amargou por longos 25 anos a ditadura cavernosa de Nicolau Ceaucescu (como se fosse possível uma ditadura luminosa): o ditador terminou por morrer fuzilado, como sói acontecer com tantos tiranos.

O fim humilhante da ditadura de Ceaucescu não foi suficiente para livrar a Romênia da penúria econômica e da corrupção. Mas há robustas esperanças: o povo resolveu dizer "Basta!" diante da mais recente violência contra ele. No início de fevereiro, o governo social-democrata de Liviu Dragnea, chegado ao poder em dezembro último, elaborou uma imoral emenda constitucional visando a modificar o Código Penal para despenalizar delitos graves de corrupção. Uma mal disfarçada anistia aos corruptos (qualquer semelhança com o governo Temer não é mera coincidência). A formidável reação popular não se fez esperar: gigantescas manifestações obrigaram o governo a voltar atrás. Por prevenção contra delinquências futuras, o povo não arreda pé das ruas: centenas de milhares de romenos se reúnem todas as noites na Praça da Vitória e arredores, em Bucareste, para gritar sua rejeição à corrupção -- uma revolução branca.

Fim da era de resignação dos romenos. Opera-se uma profunda mudança de mentalidade, qual seja, o nascer de uma poderosa consciência cívica. Implicação total do povo nos destinos da nação. Muitíssimo importante, a cruzada popular não arremete unicamente contra a corrupção: a fria e anti-povo burocracia político-financeira está na mira, e como. Da mesma forma que o comunista Nicolau Ceaucescu em outros tempos, o social-democrata Liviu Dragnea vê interferência estrangeira em tudo, insistindo que as manifestações não têm nada de espontâneo; apressa-se a querer comprar o povo com promessas de aumento salarial e benefícios para os aposentados. Nada indica que o engodo vá funcionar: a revolução branca dá fortes mostras de assimilar que "o preço da liberdade é a eterna vigilância".

No Brasil, a gang do "vamos estancar a sangria da Lava Jato", incrustada nos poderes executivo e legislativo -- e com preocupantes ramificações no judiciário --, opera diuturnamente para proteger seus apaniguados, seja fabricando emendas à constituição "para ver se cola" a fim de impedir prováveis condenações, seja por tentativas de obstrução de investigações. A escancarada desfaçatez não tem limites: cite-se somente a declaração do inacreditável senador Edison Lobão -- afrontosamente, presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado --  de que o caixa 2 das campanhas eleitorais é constitucional (sic). O abominável foro privilegiado é encarado como um refúgio seguro para vilões investidos de mandato parlamentar, desmoralizando e descreditando o Supremo Tribunal Federal.

Para completar as desalentadoras perspectivas, o povo, última e invencível trincheira anti-corrupção, parece jazer entorpecido.

Opa! Não é bem assim: surgem sinais do despertar da letargia. Os dois principais movimentos pró-impeachment de Dilma Rousseff  -- Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua -- começam a se mexer de novo. O mote principal das mobilizações marcadas para o dia 26 de março são a defesa da Operação Lava Jato e o fim do foro privilegiado. Palavras do líder do MBL, Kim Kataguari: "Talvez a diminuída da temperatura das ruas tenha passado a impressão para o Congresso de que o povo não está mais atento ao andamento da Lava Jato". Rogério Chequier, que comanda o Vem Pra Rua, afirma que "... estão buscando impunidade para políticos, e isso o povo não pode tolerar". Outros grupos, como Nas Ruas e Movimento Liberal Acorda Brasil,  começam também a se reativar.

Além do combate sem tréguas à corrupção, a participação popular é imperiosa nas discussões ora em curso sobre as reformas da previdência, trabalhista e política. Que novos e vigorosos movimentos de rua floresçam, desfraldando suas bandeiras das reformas: deixá-las sob a exclusiva batuta do governo e do congresso, é certo que elas, as reformas, acabarão tendo feição anti-povo.

A democracia representativa em crise profunda, a democracia semi-direta toma impulso. A pressão popular se exerce sobre seus representantes políticos, exigindo-lhes atuar em sintonia com as reivindicações e anseios dos representados. A democracia semi-direta tem sido efetivamente praticada -- com mais ou menos intensidade -- na Tunísia, Romênia, Brasil, ... e também nos Estados Unidos e França. É auspicioso. Cabe aos politicólogos e sociólogos decorticar o fenômeno.  

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