sexta-feira, 8 de julho de 2016

Fim dos Medos?!



As crises da psicanálise freudiana e da psiquiatria se explicam simplificadamente da seguinte forma: a psicanálise pode curar nossos males mentais -- nossos medos --, porém ao preço de um tratamento longuíssimo e caríssimo (quem muito pode faz psicanálise a vida inteira, auto-conhecimento é bom); a assistência psiquiátrica pode ser muito menos longa e muito menos cara, mas não cura, só alivia. Não surpreendem pois os intensos esforços de pesquisa científica em busca da cura do medo, de maneira rápida e barata. A psicóloga Merel Kindt, pesquisadora de psicologia clínica da Universidade de Amsterdan - Holanda, vem de desenvolver uma pílula contra o medo: é só tomá-la que o medo passa. Os testes têm sido tão positivos que sua comercialização está a caminho. Que maravilha!

Um exemplo de como a pílula funciona. Em uma certa noite, a pessoa X se deparou com um assaltante armado em seu quarto de dormir: não morreu, contudo se viu 'depenada' de valores materiais. Parecia-lhe impossível voltar à vida normal: X ficava nervosa em presença de gente desconhecida, assustava-se com o menor ruído, não conseguia dormir com o barulho do vento na cortina de seu quarto. Típico estado de estresse pós-traumático. Merel Kindt instou X a reviver a noite da agressão. As angústias de X foram então revividas, de forma intensa. Em meio ao descontrole, Merel Kindt a fez ingerir um comprimido, com um pouco de água. Nesse dia, X dormiu cedo e bem. Ao acordar, relembrou-se daquela noite, entretanto, pela primeira vez, as lembranças não lhe causaram nem sofrimento e nem pânico.

Tudo dentro das boas normas de validação estatística, a pílula de Merel Kindt funcionou bem em centenas de casos de estresse pós-traumático dos mais variados motivos, a ponto de merecer elogios rasgados e encorajadores de grandes nomes da pesquisa em psico-farmacologia. O princípio básico é o seguinte: em uma situação traumática, o cérebro, por meio de uma síntese de proteínas (não me perguntem sobre o que é exatamente isso!), armazena as lembranças para orientar o corpo sobre o comportamento a adotar. A ingestão da pílula em momento de tensão concernente mexe com o modus operandi cerebral: mais precisamente, a síntese original é manipulada, resultando agora em efeitos mais 'brandos' sobre o corpo. A manipulação é chamada de reconsolidação do medo. Palavras de Merel Kindt: O medo é uma emoção que tem uma função adaptativa muito importante.  

Um avanço incrível. Infelizmente, não cobre os medos mais desnorteadores, ou seja, os recalcados no inconsciente. Seja o exemplo do segundo parágrafo: a pessoa X não teve nenhuma dificuldade de se recordar do ladrão em seu quarto de dormir; tais medos objetivos podem ser curados ao ingerir um simples comprimido, Merel Kindt o demonstrou. Já os grandes medos inconscientes -- nossas neuroses -- permanecem à larga, necessitando de (longa) psicanálise para virem à tona e serem curados. Freud sobrevive.

É tempo de ressaltar que numerosos medos objetivos são benéficos a nossa sobrevivência e bem-estar: medo de gente objetivamente mal-intencionada, de covis de assaltantes e criminosos, de atravessar a rua sem a observância dos carros, de animais selvagens e carnívoros, etc., etc., etc. São medos que não devem ser reconsolidados de jeito nenhum, ou que não se tome a pílula de Merel Kindt contra eles.

Vontade de fazer uma saudação. Salve Freud e Merel Kindt!


Fonte -  Courrier International, 23-29 junho/2016.

Um comentário:

  1. Medo, cada dia mais presente no nosso cotidiano - que venha a pílula.

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