sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Ser Politizado, Hoje



Até os anos 70, a sociedade convidava à politização. O mundo era ideologicamente bipolar: socialismo vs. capitalismo, revolução vs. reação, anti-imperialismo vs. imperialismo. (Esquerda e comunismo, direita e fascismo ficam de lado: são conceitos derivados.) Os jovens em maioria socialistas, revolucionários e anti-imperialistas se envolviam num grande embate ideológico frente aos capitalistas, reacionários e imperialistas. Outro modo de ver: tratava-se da peleja dos ' bons' (os primeiros) contra os 'maus' (os últimos). Os 'bons' eram bem intencionados porém carregados de maniqueísmo, força dos arroubos da juventude. O grande guru, no sentido escorreito, era o intelectual à Paul Johnson*, Karl Marx. O gigante Marx dissecara o capitalismo de seu tempo -- sim, o capitalismo se revelou mimético! --, assacando que é o sistema mais explorador que possa existir.

Eu fazia parte dos 'bons'. Éramos jovialmente muito afobados para proceder a uma leitura atenta de Marx. Ao fazê-lo finalmente, maturidade chegada, percebe-se claramente: Marx não acredita na bondade humana. Nada em sua obra o indica. As sociedades pós capitalistas seriam bem diferentes, mas não necessariamente melhores. A exploração do homem pelo homem poderia perdurar, de outras formas. A ênfase de Marx é que a história é suficientemente maleável para proporcionar escolhas políticas. Como modelar e construir uma nova sociedade, anti-capitalista? Questão em aberto, tarefa dos homens do porvir. Possibilidade ou impossibilidade. Enfim, Marx é antes de tudo um cientista social, não um profeta do socialismo!

Decorridas apenas algumas décadas, é como se os verbetes socialismo, revolução e imperialismo tivessem desaparecido dos dicionários. O capitalismo tem resistido sem contrapeso forte, arrastando as injustiças sociais de sempre. Já disseram que é mais fácil o mundo se acabar antes do fim do capitalismo. Então, ser politizado em nossos dias é trabalhar de alguma forma e com certa visão pelo aprimoramento da sociedade capitalista. Seja lá o que for assim entendido.

Para suportar a dura condição humana, conforta abraçar uma utopia, com o significado de "lugar ou situação ideais onde vigorem normas e/ou instituições políticas altamente aperfeiçoadas" [dicionário Aurélio]. As utopias podem ser críveis ou inviáveis quanto à realização, individualistas ou democráticas quanto ao envolvimento de pessoas. Salvo engano ou omissão, as utopias contemporâneas são críveis ou nem tanto, e individualistas. Três exemplos.

Shimizu Corporation, líder japonesa da construção civil, projeta para 2030 uma imensa esfera parcialmente imersa no mar, permitindo abrigar em seu interior habitações para 5.000 pessoas. Auto suficiência: dentro de uma tal esfera, todos poderiam trabalhar e se distrair, abastecidos por uma unidade industrial própria de exploração e produção de riquezas marinhas. A lamentar que essas esferas faraônicas inevitavelmente serão ocupadas por elites abastadas. Urgem concepções de urbanização mais abertas e democráticas.

Na mesma linha individualista, acham-se os ambiciosos projetos arquitetônicos das sedes das empresas GAFA**, no Vale do Silício, Califórnia. À prova do futuro, proclamam seus idealizadores: pensadas para serem reconfiguráveis ao sabor das tarefas e das inovações. No interior dessas utopias de vidro, os empregados se sentiriam levados ao florescimento espiritual, para além da mera satisfação do trabalho. Pena que sejam projetos desintegrados do ambiente exterior, por ignorar as pessoas e as cidades em volta.

Um miliardário filantropo, antigo presidente da Oracle big data Corporation, comprou uma ilha inteira do Havaí com 3.200 habitantes, com a intenção de transformá-la em uma comunidade 100% ecológica e economicamente sustentável. Renovação do parque hoteleiro, usina de dessalinização da água do mar, energia elétrica via painéis solares ou algas fotossintéticas, aplicação de novas tecnologias à agricultura, etc. Infelizmente, os ânimos do empreendedor arrefeceram. Segundo os insulanos, ele não chegou a compreender até que ponto o ecossistema local é delicado. Configura-se um caso de utopia inviável.

É hora de pôr em foco o Brasil. Nossa população, todas as classes confundidas, está indignada com os desmantelos da economia e da política, sem boas perspectivas à vista. Tem protestado intensamente, nas ruas, nas redes sociais, nas conversas. Todavia, os clamores precisam evoluir do exclusivamente "Abaixo!" para tornarem-se também propositivos. Utopias sim, inovadoras melhor ainda, à condição de serem viáveis e democráticas. Erguer bem alto uma agenda anti-crise aos poderes executivo e legislativo. Por que não?!


*- Intelectuais à Tchekhov e à Paul Johnson neste blog, publicado em 12/02/2015.
**- Os Visionários GAFA neste blog, publicado em 18/09/2015.

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