sexta-feira, 5 de junho de 2015

Blaise Cendrars



Blaise Cendrars (1887 - 1961), natural da Suíça e francês de adoção, é poeta e romancista. Sem ser guindado à fama (no Brasil, ao menos), era muito respeitado e influente nos meios literários da França e dos Estados Unidos. Apollinaire, o poeta modernista maior, dizia que muito aprendera com Blaise Cendrars (Cendrars, doravante), de quem era amigo. Finamente inteligente, iconoclasta e livre no sentido spinoziano*, pondero que vale a pena trazer a meus leitores um pouco da personalidade de Cendrars**.

Cendrars era amoroso do Brasil. Amigo de nossos modernistas, especialmente Oswald de Andrade, morou uns tempos aqui, e nos revisitou várias vezes. Detestava e adorava São Paulo. Este seu poeminha nos ajuda a entender a ambivalência:
    Disseram-me,
    Cendrars, não vá a São Paulo
    É uma cidade horrorosa, é uma cidade de italianos, é uma
    cidade de bondes e de poeira
    Mas é a única cidade no mundo em que os italianos
    não se parecem italianos,
    Não sei o que os paulistas fizeram mas
    conseguiram moldar o italiano e principalmente a italiana, aqui são
    boas pessoas e a italiana quase sabe se vestir
    Isso é uma grande vitória
Não é mais adorar do que detestar?! Os italianos não deveriam se queixar.

Como nossos modernistas andavam em guerra com o romantismo, para eles alienador e europeizante, achavam que Cendrars blefava quando ele honestamente se extasiava -- "Que maravilha!" -- diante de nossas belezas: pássaros, rios, montanhas, o pôr-do-sol ... . Cendrars se desilude. Rejeita o falatório dos antropofágicos. Para ele, o modernismo nativo é um vasto equívoco, como o são, sempre na opinião dele, os movimentos europeus expressionismo, dadaísmo, futurismo e até mesmo o surrealismo. Cendrars certamente exagera, muito embora o legado da turma de Mário de Andrade e Oswald de Andrade tenha sido, a rigor, produzir o húmus cultural que fertilizou a posteriori um seleto grupo de pináculos literários.

A vida não era tão dourada na Belle Époque. Apollinaire esperou meses, anos, antes de poder ser dignamente remunerado. Para ganhar o pão, ele enveredava pela pornografia. De duas, uma: ou se batia à porta de uma agência de empregos que nunca se abria, ou para o inferno com a vida decente. Cendrars e Apollinaire davam risadas. A vida nas ruas tinha seus encantos: as garotas de Paris eram bonitas.

Cendrars conheceu Ernest Paris est une fête Hemingway no famoso bar-restaurante La Closerie des Lilas. Beberam, beberam. Os bêbados gostam de conversar. Conversaram muito. A muita altura, convidou Hemingway a sair para fechar a bebedeira com bouillabaisse, uma saborosa sopa marselhesa. Mas Hemingway perferiu ficar bebendo até exaurir a caudalosa sede. Como americano, Hemingway não sabia apreciar a boa comida; os americanos não têm uma boa comida em seu próprio país, não sabem o que é. Palavras de Cendrars.

De livre arbítrio, Cendrars chegou a passar fome em Nova Iorque, onde viveu por algum tempo. Quando arranjava um emprego, saía com o primeiro pagamento. Leitor insaciável, praticamente morava na biblioteca pública da cidade. Bem que tentava encontrar seus amigos literatas americanos, habitués de Paris, mas a resposta era sempre "Não está!". Será que eles, ao regressar da Europa, se envergonhavam das peraltices cometidas lá, pensava Cendrars. Veio a Páscoa. Amarrotado, barba por fazer e cabelo comprido, entrou numa igreja presbiteriana onde havia um oratório, A criação de Haydn. Só gente perfumada e bem-vestida. Um pastor chato sentou-se a seu lado para 'convertê-lo', sempre de olho em seu bolso para ver se conseguia lhe surrupiar um dólar ou dois, sacudindo a sacola da coleta bem em seu nariz. Dessa circunstância agourenta brotou seu celebrado (entre os poetas) poema Les pâques à New York (Páscoa em Nova Iorque). Comprou uma passagem bem barata em um navio de gado e voltou para Paris.

Cendrars não escrevia para os outros. Deixou de publicar uma coletânea de poemas que muito amava, não por timidez ou orgulho, mas por amor. Queimou livros já escritos, prontos para publicação, para a tristeza de seus editores. Não lhe eram importantes, ponto final.

A escrita é um panorama do espírito. O espírito de Cendrars era livre e arguto. A leitura era sua droga ("Eu me drogo com tinta de impressão!"). Só pode resultar grande literatura. Ela está em minha agenda.


*- A liberdade é o conhecimento da necessidade.
**- Fontes:
   Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil, Gilles Lapouge, Amarilys, 2014.
   Os Escritores - As Históricas Entrevistas da Paris Review, 5. Blaise Cendrars, Volume 2,
      Companhia das Letras, 1989.

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