sexta-feira, 22 de maio de 2015

Literatura Brasileira


   Quando o português chegou
   Debaixo de uma bruta chuva
   Vestiu o índio Que pena!
   Fosse uma manhã de sol
   O índio tinha despido
   O português                    Oswald de Andrade


Acabo de reler Os Rios Inumeráveis, de Álvaro Cardoso Gomes, Editora Topbooks, 2010. A alma de um degredado português da esquadra descobridora de Pedro Álvares Cabral se reencarna sucessivamente em personagens de episódios emblemáticos de nossa História: herói negro (Quilombo dos Palmares), traidor dos inconfidentes (Inconfidência Mineira), herói jagunço (Guerra de Canudos), nazi-fascista (Integralismo), alienado (Golpe Militar de 1964). Usos e costumes: obcecado sexual travestido de boto, mulher-objeto e cangaceiro. Como se vê, um amálgama de 'bons' e 'maus', como convém ao caráter ambíguo da identidade brasileira. Nós somos a confluência, o delta desses 'rios'. Um momento de epifania da ficção brasileira de hoje, nos dizeres do prefaciador José Paulo Paes.

Este belo roman fleuve merece muitos leitores. Contudo tem sido praticamente ignorado. Três explicações: (1) indisponibilidade; (2) falta de divulgação; e (3) tendência prevalente de desdenhar o que é nosso. Testei achar o livro nas três mega livrarias de Fortaleza -- Cultura, Leitura e Saraiva --: a mesma resposta "esgotado no fornecedor" (sic). Cadê matérias a respeito, nas seções especializadas das mídias? No site da Amazon Brasil (só como ebook Kindle), ausência de avaliações de leitores (sinal de escassa procura). De uma maneira geral, observa-se muito mais 'agitação' de leitores ao redor de literatura estrangeira: eis um motivo para digressionar sobre universalidade da literatura.

Para nossos propósitos, a literatura de um país é universal na medida em que ela se projeta pelo exterior. Sem demérito, a projeção se faz pela importância do país. No tempo em que a França era o país farol de nossas elites -- século XIX e primeira metade do século XX --, sua luxuosa literatura era absorvida aqui tanto quanto lá. No original. A galeria de 'nossos' autores franceses é imensa. Com receio de graves omissões, cito 'apenas': Balzac, Hugo, Baudelaire, Flaubert, Proust, Gide, Sartre, Simone de Beauvoir, Jean Genet, Camus e Foucault. Machado de Assis, o maior nome de nossas letras, emulou Emma Bovary de Flaubert na construção de sua personagem Capitu, do romance Dom Casmurro.  Em nossos dias, a França divide influência literária com outros grandes países, a começar pelos Estados Unidos: Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura de 2014, não reluz como os demais citados. Fim da digressão.

A literatura brasileira não é universal porque o Brasil é pequeno, no concerto das nações. Ensaiou ser grande nos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula: ficou no caminho. Fogo-fátuo. (Ora, direis: Jorge Amado foi traduzido para mais de 35 países. Não é contraditório? Na verdade, ele é um escritor que se internacionalizou por ter sido um influente comunista, na época mais forte do comunismo: segunda guerra mundial e pós guerra. Não por acaso ele é (foi) lido sobretudo na Rússia, na Europa Oriental e na Ásia Central. Sem desmerecer sua obra, frise-se.)

Nossa literatura se tonificou com o movimento modernista e antropofágico da década de 1920, comandado pelos intelectuais Mário de Andrade, Oswald de Andrade (lindos versos seus estão no alto da página) e Paulo Prado. O lema central é "Tupi or not tupi, eis a questão". Comer, digerir e defecar a cultura europeia. Devorar simbolicamente o 'inimigo' [a cultura europeia] para que suas virtudes passem para nós. Gilles Lapouge -- que conhece o Brasil bem mais e melhor do que eu (ver postagem a respeito dele, de 23/04/2015) -- conta que Monteiro Lobato, o principal nome da literatura infantil brasileira, exclamava, furibundo: "Enjoei do francês!"; "Minha biblioteca é de uma pobreza inacreditável em livros de língua portuguesa. Quase tudo em francês. Uma vergonha".
 
O grupo modernista produziu ao menos um livro maior e um ensaio suntuoso e corrosivo. O livro: Macunaíma (um herói sem nenhum caráter), de Mário de Andrade. O ensaio: Retrato do Brasil (que começa com "Numa terra radiosa vive um povo triste"), de Paulo Prado. O fogo espalhado pelo movimento aqueceu os talentos de brasilidade de Graciliano Ramos -- Vidas Secas, sobre a seca do Nordeste --, de Érico Veríssimo -- a saga O Tempo e o Vento da colonização do Sul do Brasil --, e de Guimarães Rosa --  canta os vaqueiros e cangaceiros dos sertões de Minas Gerais em Grande Sertão: Veredas. Literatura infantil: O Pica-pau Amarelo e Urupês, entre outras consagradas obras infantis de Monteiro Lobato. Na esfera sociológica, notabilizam-se Gilberto Freyre -- Casa Grande & Senzala --, e Sérgio Buarque de Holanda -- Raízes do Brasil.

Não é permitido esquecer que a literatura brasileira já brilhava antes dos modernistas. Estão aí para confirmar o extraordinário Machado de Assis -- Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, entre outras obras primas --,  e o portentoso Euclides da Cunha que, em Os Sertões, marca-nos a ferro com a tragédia da guerra civil de Canudos.

A respeito da contemporaneidade, Os Rios Inumeráveis foi resenhado no primeiro parágrafo. Cito ainda, sem muita convicção, Pornopopeia, de Reinaldo Moraes. Com certeza, deve ter muito mais, porém meu conservadorismo cultural (preguiça?, falta de tempo?), admitido em postagem de 29/01/2015, me impossibilita de avançar no tema.

Quando o Brasil se tornar grande, sua grande literatura será muito mais apreciada pelos brasileiros, e se projetará pelo Mundo.

 

2 comentários:

  1. O que diz de Paulo Coelho, sucesso internacional estrondoso?
    Sugiro que você seja primeiro a fornecer uma avaliação do livro na Amazon. Também sugiro deixar a avaliação em goodreads.com
    Quanto à disponibilidade do livro nas livrarias, você me deu mais um argumento a favor das edições digitais: não esgotam.

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    Respostas
    1. Você tem razão sobre Paulo Coelho: ele tem suas redes de influência. Li "O Alquimista" e não gostei: não é grande literatura.
      Vou divulgar "Os Rios Inumeráveis" nos canais sugeridos.

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