quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Pós-graduação e Inovação: O Descompasso Brasileiro



Um programa nacional de pós-graduação visa a capacitar graduados para a inovação científica e tecnológica (C&T), no pressuposto de que sem C&T forte não pode haver crescimento sustentável do país. No Exterior, os programas formam doutores ou PHDs; no Brasil, doutores e mestres.

É preciso, desde logo, refutar a opinião disseminada e muitas vezes mal intencionada de que a tecnologia e o capital estrangeiros seriam suficientes para arrancar um país do atraso tecnológico e inseri-lo com lastro no mundo competitivo global. Sem deixar de reconhecer a importância do investimento externo, trata-se no entanto de premissa falsa. China, Coreia do Sul, Taiwan e Índia -- conquanto países abertos ao capital estrangeiro -- entraram por conta própria no seleto rol dos países exportadores de produtos nacionais com alto teor tecnológico: é o resultado da decisão prioritária destes países de mobilizar os financiamentos e as instituições para a capacitação em C&T. Em suma, a difusão do conhecimento é o que permite a convergência entre países.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a China em 2011 já formava mais doutores por ano do que os blocos Canadá-EUA e União Europeia: a tendência é ela, China, deixar rapidamente na poeira os dois grandes blocos concorrentes. A Índia, comparativamente muito modesta, forma no entanto o equivalente a toda a América Latina.

Impõe-se saber onde os doutores estão ocupados nos países citados. Na China, em Taiwan, na Coreia do Sul e na Índia, os cientistas são largamente absorvidos pela indústria. Praticamente todas as empresas de tecnologia do Canadá-EUA e da União Europeia dispõem de centros de pesquisa e desenvolvimento, territórios de atuação do grosso dos doutores.
 
O Brasil, na questão C&T, vive uma situação descompassada. Em 2010, 11,3 mil brasileiros obtiveram o título de doutor e 39,6 mil, o de mestre (fonte: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI). São números ainda relativamente pequenos, mas há que considerar que as taxas de crescimento num caso e noutro têm sido razoáveis e praticamente estáveis desde 1987. Também, os grupos de pesquisa aumentaram de 11.760 em 2000, para 27.523 em 2010, um salto de quase 150% (ver tudo no gráfico).


O que fazem nossos doutores e mestres? Levantamento de 2011 do MCTI revela que 80% ficavam nas universidades e 16% na administração pública. Menos de 5% estavam nas empresas!?! Inexiste razão para supor que a situação em 2015 tenha mudado significativamente. Eis o descompasso de nossa pós-graduação: os doutores e mestres praticamente não trabalham na indústria, consequentemente pouco podem colaborar na inovação de produtos. Este estado de coisas se reflete na produção de nossos cientistas: um bom número de papers acadêmicos por pesquisador, porém  pouquíssimas inovações patenteadas.

Vão mal as empresas brasileiras de tecnologia: na contramão dos países modelares, a C&T é basicamente importada. As honrosas exceções se contam nos dedos. A Petrobras -- oh Petrobras! tão vilipendiada e corrompida por causa do aparelhamento partidário -- emprega em seu centro de pesquisas, Cenpes, mais de 600 mestres e doutores em atividades de pesquisa, desenvolvimento e engenharia básica, trabalhando em rede com cerca de 80 instituições brasileiras. A pesquisa no agronegócio é alavancada por outra estatal, a Embrapa. De empresa privada, só mereceria destaque a Embraer, fabricante de aviões.

O programa brasileiro de pós-graduação é também passível de ajustes. A Federação Nacional dos Engenheiros defende parcerias universidade - empresa para o desenvolvimento de teses de doutorado e de mestrado. Teses que seriam vinculadas a aplicações industriais, de forma a garantir que a inovação fosse transferida ao setor. Uma forma de contornar o pesado investimento em centros de pesquisa e desenvolvimento. É, no mínimo, uma proposta que mereceria amplo debate. Infelizmente, o ambiente atual é de letargia, tanto da parte do governo quanto da iniciativa privada.

Esperando Godot, o Brasil permanece essencialmente um exportador de "commodities", à semelhança dos países africanos. Assim sendo, seu programa de pós-graduação torna-se desnecessariamente muito oneroso.


4 comentários:

  1. Meu caro Marcão

    Como sempre, tenho adorado ler seus artigos. Esse agora, me faz lembrar dos tempos do DSC.
    Realmente, há mais de 30 anos que ouço e leio a respeito e parece que, até agora, apesar de já ter feito muita coisa, o Brasil não deslanchou em fazer da C&T um fator de desenvolvimento sustentável do país.
    Durante os anos 90, quando era chefe do DSC, participei de inúmeras reuniões e conversas no próprio departamento, cnpq, eventos, paqtc, etc., onde era recorrente a discussão do que fazer para tal. Várias iniciativas estavam sendo levadas a efeito à época, com nossos Gentil e Eratostenes mais Silvio Meira e outros à frente: ProTem-CC, Softex, RNP, os principais programas institucionais na área de Informática. Me lembro de dois dos principais objetivos do ProTem: (1) Elevar a quantidade e a qualidade do pessoal formado em nossas instituições para patamares compatíveis com as necessidades nacionais e, em particular, com as necessidades dos segmentos industrial e de serviços e (2) Promover efetivamente um amplo processo de cooperação nacional entre grupos de pesquisa e entre estes e o setor industrial, através da realização de projetos temáticos multiinstitucionais em torno de temas/problemas estratégicos nacionais. Cito esses apenas para destacar a preocupação com a efetiva participação da industria no processo.
    Essas iniciativas institucionais realmente conseguiram elevar o nosso palmarés em produção científica com incremento dos grupos de pesquisa e melhoria da qualidade da pesquisa realizada e incentivaram a criação e o desenvovimento de empresas de produção de TI.
    Também em outras áreas consideradas como prioritárias como Física e Matemática, por exemplo. Na verdade, os físicos controlam e detêm a maior parte das decisões e recursos mas também são os campeões em publicação de qualidade. Quando ainda militando no IQuanta, me surpreendi com o poder e a excelencia dos laboratórios e grupos de pesquisa das universidades e institutos federais e estaduais país afora. Em Matemática, basta ver o IMPA para se convencer da capacidade instalada no país. Aliás, nosso “Nobel” em Matemática vem de lá.
    Também durante esse tempo as iniciativas em olimpíadas científicas no ensino fundamental e médio se multiplicaram no país, hoje realmente uma “febre” nacional. Meu filho mais novo, João, vem colecionando medalhas em algumas delas, principalmente em Matemática.
    Ou seja, a meu ver, houve (há) uma decisão de mobilizar os financiamentos, as instituições e as pessoas para a capacitação em C&T. É bom lembrar, que pelo menos nesse setor, a “política” não pode ser acusada de ser a culpada: o esforço vem desde os anos Sarney e passou por todos os que vieram a seguir, indistintamente.
    Então, não se pode deixar de perguntar: depois de todos os esforços (não negligenciáveis), por que o Brasil passado esse tempo todo não dá sinais de que vá efetivamente deixar de ser um país essencialmente exportador de "commodities"?
    Nesse mesmo tempo, os “tigres asiáticos” deram as caras, se desenvolveram e correm hoje soltos à “conquista do oeste”. Lembro-me de cabeça (perdí o “link”) de várias públicações à época comparando a situação de Coréia do Sul, Brasil e México onde apesar das curvas de recursos aportados e de publicação científica equivalentes, a curva de produção de patentes do Brasil era ridícula face as outras (o México também é um caso a parte). Voltando ao nosso caso do ProTem: apenas preocupação com a participação da indústria é suficiente?
    Sempre que penso nisso, me volto para o nosso microcosmo campinense e a mesma pergunta me vem à mente: por que Campina Grande, depois de tantas iniciativas em C&T, com, segundo Alexandre Moura, a maior densidade de doutores do país, e com tantos e tantas, também não faz desses “atouts” um fator de desenvolvimento sustentável da cidade e do estado, recuperando as glórias do passado?
    O que nos falta?

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  2. Excelentes texto e comentário dos amigos Marcus e Bernardo.
    Algumas observações sobre a situação brasileira, opiniões pessoais, claro. Acho que algumas delas podem esclarecer por que os doutores ficam na academia.

    1. É muito, muito difícil ser empresário no Brasil. Então embora no exterior os doutores abram empresas a um ritmo alucinante e giram inovação, qual é o incentivo para o doutor brasileiro fazer o mesmo? Tem que ser meio masoquista para ser empresário no Brasil. Então o comodismo ganha e o doutor prefere a academia e a produção de papers de pouco ou nenhum valor agregado.
    2. Um exemplo que demonstra a dificuldade de abrir empresas no Brasil é que os investidores externos com capital de risco procurando oportunidades de investimento examinam empresas brasileiras de forma diferente devido ao alto risco envolvido. Para dar um exemplo: os bens *pessoais* de um investidor podem ser reclamados na justiça se a empresa falir. Que investidor topa um risco desses? Resultado: investidores só colocam dinheiro em empresas que estão num estágio mais avançado, já têm faturamento, etc. Para a startup: nada! Como ser empresário pequeno (um doutor querendo inovar na sua própria empresa) nessas condições? Os prgramas governamentais para startups ajudam, mas os recursos (centenas de milhares de reais) não são suficientes para fazer uma empresa deslanchar (precisam-se de alguns milhões, tipicamente).
    3. Examinemos a Coreia como exemplo do resultado de políticas governamentais. Ao receberem incentivos do governo - leia-se "proteção", como na época da reserva de mercado de informática no Brasil - as empresas coreanas se voltaram para o mercado *externo* e adquiriram competência de nível internacional. fazia sentido, pois o mercado interno coreano era (é) pequeno. O mesmo poderia ter acontecido com as empresas brasileiras mas o maior tamanho do mercado brasileiro e a burocracia acapachante para exportação foram suficientes para que as empresas se voltassem para o mercado interno. Oportunidade perdida. Décadas perdidas para a inovação. Houve pouca demanda por doutores para inovar num ambiente desses.
    4. Finalmente, a demanda por educação superior é tão grande no Brasil que pipocam concursos para professor universitário. Quem não adora ser funcionário com estabilidade, salário bom (para nível Brasil), pago pelo governo federal? Até nós, caros amigos ...

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  3. Excelente artigo! Na minha opinião, o Brasil é um dos Países menos competitivos do mundo por várias razões, sendo que uma das razões mais significantes é o fato de que grande parte dos Empresários Nacionais, não possuem mentalidade suficiente para entender, que sem um constante aprimoramento não só da tecnologia utilizada, mas também do uso de planejamento e controle eficientes, estarão cada vez mais distante de seus concorrentes mundo afora. Os doutores e mestres deste País bem que poderiam ser de fundamental importância, se tivessem a oportunidade de poder contribuir para o aumento da competividade dessas referidas Empresas. Por outro lado, apesar de realmente existirem vários projetos para pós-graduação no Brasil, falta o essencial, ou seja, programas realmente eficazes para incentivar a contratação de mestres, doutores e até PhDs por parte dos Empresários. No seu artigo também foi focalizado o fato de que existem poucas solicitações de patente no Brasil. Eu concordo, porém gostaria de afirmar que também falta no Brasil uma política de aproveitamento das invenções nacionais, i.e., preferem trazer tudo do exterior em detrimento do que existe aqui, mesmo sabendo-se que por aqui existem excelentes ideias patenteadas. Eu mesmo estarei dando entrada em uma memória óptica nanofotonica, na esperança de no futuro, algum empresário estrangeiro precise adquiri-la, se é que existe realmente alguma política de segurança para relacionar as patentes conseguidas no Brasil com o que os Empresários estrangeiros (realmente competitivos) estão produzindo por lá. Estou até pensando se não seria o caso de obter essa patente na Europa, E.U.A. ou até nos “tigres asiáticos”... Como são muitos os outros fatores que contribuem para a falta de competividade no Brasil, esse assunto poderia ser inserido no seu blog.

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    1. OK, Junior, voltarei a discorrer sobre a falta de competitividade do Brasil.

      Um abraço.

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