quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Intelectuais à Tchekhov^ e à Paul Johnson^^

^ Anton Tchekhov - contista e teatrólogo russo e universal, viveu de 1860 a 1904. "A Dama do Cachorrinho" e "No Fundo do Barranco" estão entre seus inúmeros contos antológicos. "A Gaivota" e "Tio Vânia" são duas de suas obras-primas teatrais.
^^ Paul Johnson - escritor inglês contemporâneo, destaca-se como polemista, à frente sua coleção de ensaios "Os Intelectuais". Na qualidade de historiador enciclopédico -- "História dos Judeus", "História da Cristandade", "História do Povo Inglês", entre tantas outras histórias --, ele é menor.



O antigo senador mineiro Benedito Valadares  -- apelidado de raposa, imaginai! -- gostava de dizer que não existem fatos, só versões. A raposa política moldava a realidade à feição de sua politiquinha paroquial e patrimonialista. No entanto, ainda que por linhas muito tortas, Valadares não deixa de se aproximar de "O mundo é minha representação" do filósofo Schopenhauer*, isto é, que a essência dos objetos não está neles mas em como eles se parecem do exterior. Enfim, nada podemos fazer senão construir modelos esperançosamente aproximados de uma intangível realidade.

Interessa-nos investigar modelos de intelectual, em busca de um perfil de intelectual que seria desejável ao momento brasileiro. Os dois modelos em foco são das lavras de Tchekhov e Paul Johnson. Afora a importância destas duas personalidades, a notável simetria de seus modelos é outra boa razão para a escolha. 

Em tempos pré-revolucionários, Tchekhov não era entretanto um artista politicamente engajado. Coerentemente, modelou os intelectuais fora de partidos políticos: eram médicos, engenheiros, professores, estudantes. Ainda assim, sua obra se revelou muito mais eficaz à compreensão e ao conhecimento da Rússia czarista do que aquelas de escritores marcadamente políticos, como Maksim Górki (amigo de Lênin e principalmente de Stálin). A principal explicação é que os personagens de Tchekhov se ajustavam perfeitamente à sensibilidade de sua imensa galeria de leitores. Tchekhov era amado pelos russos: onde ele aparecia em público, recebia aplausos reconhecidos.

O intelectual tchekhoviano, seja nos contos seja no teatro, era invariavelmente uma pessoa decente, erudita e com ideias visando a minorar os sofrimentos do povo russo: época de servidão e de absolutismo czarista. Porém era incapaz de exercer influência esclarecedora e transformadora da sociedade: ao contrário, enclausurava-se em suas ideias, desta forma não passando de um devaneador.  Muito aproximado do que nos parece ser a realidade, não é mesmo? Em suma, Tchekhov passava a sensação de ser verdadeiro.

Vladimir Nabokov -- critico literário e autor do consagrado romance "Lolita" -- repetia que, em contraste com Tchekhov, Górki era falso, ou que seus personagens eram manequins pintados. Em outras palavras, o modelo de intelectual revolucionário de Górki lhe parecia inverossímil.

Oposto ao tchekhoviano, o intelectual de Paul Johnson é engajado, por definição: influencia poderosamente -- por ideias, quiçá também por ações -- o meio social em que vive, ou muito além. Para a construção de seu modelo de intelectual, Paul Johnson se organizou em torno de perguntas e respostas a um conjunto seleto de intelectuais de peso: que motivações profundas os levaram a suas convicções; em que medida suas vidas privadas combinavam com o discurso público; eram ou não bons chefes de família; como tratavam os amigos; de que modo encaravam o dinheiro. Na verdade, conservador e católico, Paul Johnson teme os intelectuais: no íntimo, considera-os sedutores e perigosos.   

Examinem-se famosos intelectuais, sob a ótica de Paul Johnson. Karl Marx: o furor contra o capitalismo tinha origem em seu ódio à usura e aos agiotas, reforçado por suas próprias dificuldades financeiras; em busca de argumentos para suas concepções, politizava acontecimentos de cunho marcadamente local ou reivindicatório; embora pregasse a solidariedade dos trabalhadores, seu egoísmo não permita que desse a atenção devida à esposa e às filhas; abusava da boa vontade e disponibilidade de seu grande amigo e parceiro de ideias, Friedrich Engels. Rousseau então era moralmente 'monstruoso'. Diversos outros intelectuais de grande alcance -- Shelley, Ibsen, Tolstoi, Hemingway, Brecht, Bertrand Russel, Jean-Paul Sartre, Edmund Wilson, Victor Gollancz e Lillian Hellman -- eram todos hipócritas, uns mais outros menos. Pronto: atacando dessa maneira os intelectuais, Paul Johnson se esforça por exorcizar seus terrores conservadores.  

Do que foi exposto, extraio meu modelo de intelectual: decente à Tchekhov e ativo à Paul Johnson. Utópico? Provavelmente, mas que sirva de paradigma. O Brasil, imerso em profunda sonolência existencial, precisa ser sacudido por intelectuais assim.


Nota - Este artigo resgata a literatura, fonte de compreensão e conhecimento. Fi-lo com o intuito de homenagear meus leitores, que tanto prezam a literatura: o artigo "Pot-pourri Literário" é o mais popular.

*- O Mundo como Vontade e Representação, Arthur Schopenhauer. Primeira publicação: 1818.


3 comentários:

  1. Marcus,
    Heróis intelectuais podem aparecer em qualquer época. Que tal examinarmos algumas figuras contemporâneas? Eis uma pequena lista dos meus gurus da atualidade (sem análise):
    Noam Chomsky (decente e ativo, Tchekov + Johnson?)
    Richard Dawkins
    Christopher Hitchens (meu favorito, infelizmente falecido)
    Sam Harris
    Mario Vargas Llosa
    H L Mencken (iconoclasta de primeira! mas não é contemporâneo ...)
    e por aí vai.
    Temos muitos intelectuais contemporâneos merecedores de nossa admiração.
    O que acha?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Com certeza, Jacques. Admiro-os todos, salvo Sam Harris, que não conheço. Que tal você escrever sobre eles?! À sua escolha. Seria sua luxuosa contribuição a meu blog.

      Excluir
  2. Grande Marcus!
    Excelente artigo. Na minha opinião cada Autor retrata o seu caráter, quando não existe nenhum interesse à vista. Entretanto, quando existe um interesse, tudo se passa como um jogo entre "o profeta da paz e diabo da guerra".

    ResponderExcluir