quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Pot-pourri Literário



Na Odisséia de Homero, há uma passagem em que o herói Ulisses exorta seus companheiros a não ter medo de se aventurar pelo desconhecido. Os homens, diz Ulisses, nasceram para conhecer e para compreender. Pois bem: a literatura é uma fonte de conhecimento e de compreensão. A pretensão é fazer, nestas poucas linhas, minha apologia da literatura. Apoio-me em dois grandes  literatos, os quais foram fundamentais para me inculcar o gosto pela literatura: o argentino Jorge Luis Borges* e o cubano-italiano Italo Calvino**. O formato é pot-pourri (expressão francesa que significa, neste contexto, uma mistura heteróclita de pequenos textos sobre literatura).

Alto e bom som, temos que aceitar o mal do mundo. Não se trata de resignação: o mal é sofrer uma violência gratuita, ou uma grande esperança desfeita, ou uma grande perda, ou tantas outras coisas. Para os religiosos -- e eles são a imensa maioria -- ainda há que adorar um Deus inalcançável e incompreensível. A literatura aborda o Mal de múltiplas formas: retenho a de Dante Alighieri, em sua Divina Comédia. Dante nos traz sua visão dos dogmas cristãos Inferno, Purgatório e Paraíso. Dante é religioso? Pode até ser, mas calma! No Inferno, ele conversa com dois condenados, Paolo e Francesca, que se amam e que estão juntos para sempre; assim, mesmo partilhando os horrores do inferno, eles vivem uma espécie de paraíso! Então, Dante é religioso, ou é anti-religioso? Dê sua interpretação: é bem provável que a pergunta perca o sentido.

Emanuel Swedenborg, que viveu no século XVI, era ao mesmo tempo um homem de ciência (professor da Universidade de Upsala, Suécia) e um homem prático (engenheiro militar). Eis que  torna-se também um místico e assenta as bases de uma nova religião. O interesse reside em que é uma religião que privilegia a inteligência! Ele prescreve, com todas as letras: a santidade é descartável;  é preciso investir-se de inteligência. Exemplifica com a história de um homem que se propôs ir para o céu: renunciou a todos os prazeres sensuais e então foi se empobrecendo. No céu, os anjos não sabiam o que fazer com  ele: embora justo, era um pobre mental. Reservaram-lhe um deserto. Swedenborg nos convida a todos a nos salvar mediante uma vida rica de justiça e de inteligência. É fácil entender por que sua religião não prosperou.

Em uma obra literária, tão importante quanto o conteúdo é o estilo. A falta de estilo pode comprometer toda uma grande ideia. Um bom estilo pode ser pesado ou leve.  Diversos grandes escritores são pesados (Dante o é),  enquanto outros são leves. De meu modesto lugar, eu prefiro a leveza. A leveza é firmemente calcada em nossa realidade atômica: somos um corpo pesado mas que é formado de partículas elementares sem peso. Desse extraordinário e aparente paradoxo, tiram-se lições de estilo: um assunto, por mais complexo que seja, pode ser decorticado, sem prejuízo do todo. Enfim, a função existencial da literatura, em busca da leveza como antídoto ao peso da vida.

Deve-se ler um livro pelo prazer de ler: hedonismo puro, por maior que seja a importância ou a transcendentalidade do tema. Um grande escritor teve a honestidade de dizer que abominou o consagrado Ulysses de James Joyce, exatamente porque não sentia prazer em sua  leitura. O prazer também é estético: pegar um livro pode suscitar uma diversidade de sentimentos e emoções. Cabe agora uma digressão: é possível discernir beleza em um livro digital (e-book)? Para mim, definitivamente não, sem ignorar que sou passível de contestação.

O que é um livro clássico? É um livro que nunca termina de dizer o que tem para dizer. Espero ter evidenciado que a Divina Comédia, de Dante Alighieri, é um clássico. Nossa vida moderna, infelizmente, nos deixa pouco tempo de prazer de leitura. A sugestão só pode ser (re)ler pouco e bem. Os clássicos estão aí para isso.


*- Borges Oral & Sete Noites, Companhia das Letras, 2011.
**- Por Que Ler os Clássicos, Companhia das Letras, 1993.
      Seis Propostas para o Próximo Milênio, Companhia das Letras, 1990.

8 comentários:

  1. Excelente texto, Marcus. veja o que Lllosa disse (original aqu: http://www.newrepublic.com/article/books-and-arts/78238/mario-vargas-llosa-literature)

    “E nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes, e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração.
    ...
    Uma pessoa que não lê, ou que lê pouco, ou que lê apenas porcarias, pode falar muito, mas dirá sempre poucas coisas, porque para se expressar dispõe de um repertório reduzido e inadequado de vocábulos. Não se trata apenas de um limite verbal; é, a um só tempo, um limite intelectual e de horizonte imaginário, uma indigência de pensamentos e de conhecimentos, porque as ideias, os conceitos, mediante os quais nos apropriamos da realidade e dos segredos da nossa condição, não existem dissociados das palavras, por meio das quais as reconhece e define a consciência. Aprende-se a falar com precisão, com profundidade, com rigor e agudeza, graças à boa literatura, e apenas graças a ela.”
    abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Um texto definitivo de adesão à literatura. Vargas Llosa é uma de minhas leituras obrigatórias, como você sabe.

      Excluir
  2. Sobre e-books.
    No início do século 20, as pessoas andavam a cavalo quando surgiu o automóvel, desconfortável, fedorento, sempre quebrando. Muitas gente dizia: "prefiro meu cavalo; gosto de cheiro de cavalo", etc. (aceno para o General Figueiredo). Mas o carro venceu e poucos andam a cavalo hoje, devido à imensa conveniência dos carros.
    Com o e-book, será a mesma coisa. Eu prefiro o cheiro do livro e a experiência tátil que proporciona. Mas, oh! Marcus! a conveniência do e-book. Deixe-me enumerar algumas vantagens:
    - Peso. Lei no meu iPhone (sim! não é pequeno demais). Muito mais leve do que um Moby Dick. Eu ando com uns 200 livros no meu iPhone.
    - Você pode ajustar o tamanho das letras. Útil demais, pois cada um tem suas preferência ou suas restrições de visão
    - Há um tradutor embutido. Você cruza uma frase em alemão ao ler uma biografia de Freud, peça tradução instantânea
    - Há um dicionário embutido, na língua no livro. Aponte para uma palavra e recebe a definição imediatamente.
    - Há acesso à Wikipedia ou pesquisa Google para qualquer termo com uma pressão de dedo
    - Você pode fazer anotações
    - Tem "search". Quando você lê Guerra e Paz e não lembra mais quem é Anna Pavlovna Scherer, uma simples pesquisa o leva para a primeira menção dela no texto.
    - Uma amostra de qualquer livro na Amazon (onde compro meus e-books) está disponível gratuitamente. Yes, free! Se gostar, compre.
    - Os e-books são bastante mais baratos. Raramente gasto mais do que $10
    - Há uma enormidade de livros grátis. Exemplo, tenho a obra completa de Dickens, Balzac, Conrad, de Maupassant, etc. grátis, ou a um preço baixíssimo (uns $2)
    - Posso comprar e baixar um livro novo que me interessa em menos de um minuto, sem sair de minha cama.

    Sinceramente, Marcus, e-books são imbatíveis. Convenientes demais. Já vendi meu cavalo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Perfeito, Caro Jacques. Na verdade, já aderi às publicações digitais: é inevitável. Minhas fontes jornalísticas habituais -- Folha de São Paulo, Courrier International e El Pais -- são edições eletrônicas. Meu Piketty (em inglês) é um e-book. Disponho de confortáveis ferramentas de acesso: Kindle, Leitor e SaraivaReader. O que desejo é que as edições impressas ainda sejam duradouras.

      Excluir
  3. Meus amigos. Agora que Marcus já sabe que não sou nenhum chinês de Macau mas um alemãozinho da Paraiba, vamos aos comentários.
    Isto que Jacques diz (apud Vargas Llosa) sobre a igualdade essencial de homens e mulheres em todo mundo, é uma verdade básica mas pouco considerada. Por acaso Gabriela contou hoje sobre uma entrevista na Deutsche Welle de um homem de negócios alemão que viajou muito pelo mundo e disse exatamente a mesma coisa. Ele abandonou todos os negócios, abriu uma cafeteria em Munique e colocou um cartaz bem grande, na porta: "Quem estiver com fome e não tiver o que comer, pode entrar que receberá algo sem ter que pagar". Ele disse que em uma cidade como Munique não é necessário que haja gente passando fome (mas há!). Para ele, dar um pedaço de pizza ali ou um salgado acolá, não representa nada mas, para que recebe isso, é muito.
    Voltando à literatura, concordo com Marcus de que o que faz uma boa obra obra literária é conteúdo e estilo. Por isso é que me fascino com escritores como Kafka, Guimarães Rosa, Dostoiévski e também Samuel Becket. Entre os atuais que eu conheço, a meu ver, só se sobressai José Saramago.
    Quanto aos e-books Jacques deve ter razão. O futuro dirá. Eu é irei aderir a essa modalidade só na próxima encarnação. Tenho em minhas estantes centenas de livros interessantes, não-lidos, não e-booquisados, que não darei conta em ler nesta encarnação.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Um dia, conversaremos sobre Dostoiévski.

      Gosto de Saramago, apesar de seu estilo pesado. Como afirmei, prefiro a leveza.

      Também tenho muitos livros para ler em minhas estantes.

      Excluir
  4. Sobre a leitura
    Temos na França uma nova ministra da cultura, quem foi formada nas melhoras "grandes escolas" do pais (ESSEC e ENA).
    Ela declarou que não teve tempo de ler um livro depois que ela é ministra, seja 2 anos.
    Vejo também nossos filhos que lêem bem menos livros do que nos a mesma idade.
    Sera que a literatura e o formato do livro de centenas de páginas desaparecem e forem substituídos por textos digitais mais curtos ?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vivemos um tempo de crise de conhecimento e compreensão. Ao mesmo tempo, a realidade é extremamente complexa. O que substituiria a literatura como fonte essencial de conhecimento e compreensão?

      No Brasil, posso afirmar que se vive um "boom" literário. A indústria editorial tem feito muitos lançamentos com boas vendagens, guardadas as proporções de um país onde ainda se lê pouco. Nas grandes cidades, boas e grandes livrarias têm surgido.

      Excluir