sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Ai de Ti, Beira Mar!*



Tenho o privilégio de morar em Fortaleza a cento e cinquenta metros do ponto emblemático de sua famosa Av. Beira Mar, a Volta da Jurema. De lá, pode-se ainda apreciar um inolvidável pôr do sol (adiante, explico o porquê do 'ainda'): eu gostaria de ter poesia na veia, para cantar todos os matizes de cores que inundam o céu e o mar de Iracema. Jangadas e saveiros completam a deslumbrante festa da natureza.

Enumeremos outros trunfos da Beira Mar. Calçadões largos, em boa parte de sua extensão. Boa arborização. Iluminação adequada, à noite. Quadras de esporte e dança. Teatro de arena. Água de coco e milho verde. Sorvete. Um excelente restaurante de frutos do mar. A Praça dos Estressados: desestressa, realmente. A Feira de Artesanato. O Jardim Japonês. O espigão da Praia de Iracema. Gente, muita gente, cobrindo todo um espectro humano. Porém, para zelar pela Beira Mar, é preciso estar bem alerta para reagir às ameaças passadas e futuras a sua integridade. (Evoco Jorge Luis Borges: o presente é tão impalpável quanto o ponto geométrico; o ponto não tem dimensão; o presente não tem duração.)
  
Quando eu era estudante secundarista, a enseada do Mucuripe, na extremidade leste da Beira Mar, era emoldurada por altas dunas, sensuais e imaculadas. Águas límpidas. Passar a tarde no Mucuripe era tão relaxante quanto o eram as tardes de Itapoã de Vinícius de Moraes e Toquinho. Já antevemos o trágico fim da praia do Mucuripe: as dunas estão enclausuradas por alta muralha de edifícios de concreto, ao gosto de nossa iconoclasta classe média; suas águas são impróprias para banho. O que existe por trás da muralha? Favelas. Está claro que o nascer do sol do Mucuripe morreu.

O pôr do sol da Volta da Jurema sobrevive porque se aproveita de uma brecha existente no paredão de concreto. Literalmente. Até quando? A fúria imobiliária, com a conivência corrupta de todas as prefeituras, põe em xeque os derradeiros espaços abertos. Afora as agressões à natureza, perfilam-se outros problemas. O calçadão é sujo: qual seria sua cor? (Lembro-me com inveja de Montpellier, França: ao terminar uma feira livre, caminhões equipados com vassouras e pás gigantes logo apareciam. Esfregavam, limpavam, enxugavam e perfumavam o ambiente.) Mais sobre o calçadão: os buracos aparecem cada vez mais: consertos toscos, quando são consertados. Em certos trechos, os pedestres, caminhando por estreitas calçadas, são constrangidos pelos carros. Não há espaços adequados às crianças. As barracas de bebidas e guloseimas são feias, malcuidadas e sem padronização. De um modo geral, a impressão é de desleixo.
   
Há esperança para a Beira Mar? Sim e não. Sim, porque existe um ótimo projeto de sua requalificação, a cargo dos renomados arquitetos Ricardo Muratori e Fausto Nilo. (Fausto Nilo foi um bom amigo dos meus tempos universitários, e das noitadas de artes musicais e de boemia na São Paulo dos anos setenta. A arte, bem entendido, é dele, Fausto Nilo: além de arquiteto, fino compositor.)  Os trabalhos preveem pavimentação das vias de tráfego de veículos, estacionamentos, passeios, ciclovias, construção de um aterro hidráulico e um espigão, além de tratamento paisagístico, melhoria da Feira de Artesanato, novo Mercado dos Peixes, embarcadouros, área de manutenção de jangadas, quiosques e instalação de um bonde elétrico. A concepção do projeto pode ser apreciada em
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/10.109/3559?page=3 .

Vistosas placas se erguem ao longo da avenida, anunciando pomposamente o início da execução do projeto em março / 2013, com duração prevista de dois anos. Estamos praticamente no término do prazo, e o resultado é lamentável: somente o Mercado dos Peixes e o espigão, ambos inacabados. A explicação é o contingenciamento das verbas federais. A esperança empalidece. Atrasos em obras significam mais e mais lucros para as empreiteiras, mais e mais custos ao erário público, e superfaturamento de aditivos de contrato geradores de corrupção de agentes públicos. Sem me referir aos chamados grandes empreendimentos estruturantes deste imenso país carente, todos em compasso de espera.

Se fosse jovem, ensaiaria comandar um movimento de massas pela imediata requalificação da Beira Mar, incluindo sua manutenção permanente. 


*-  Paráfrase de Ai de Ti, Copacabana!, do grande cronista Rubem Braga.

2 comentários:

  1. Bela Crônica. Parabéns. Só não concordo quando você cita que o atraso do cronograma implica em ganhos substanciais para o construtor. De fato é prejuízo para os dois lados.
    Aproveitando, estou aguardando "Ecos de sua viagem ao Icó". Abraços

    ResponderExcluir
  2. Caro Euler,

    Se uma obra é contratada por X e recontratada por 10X por conta de paralisações não previstas, então isto configura um cenário propício a superfaturamento. Refinaria Abreu e Lima e Ferrovia Transnordestina são dois exemplos extremados.

    Sobre nosso Icó, você não é o primeiro a pedir. Mas não será para já: preciso antes voltar lá, com calma e tempo.

    Um abraço.

    ResponderExcluir